O Regulamento Aduaneiro prevê o arbitramento do valor aduaneiro apenas em caso de fraude, sonegação ou conluio, o que sequer foi aventado no caso julgado.
O Supremo Tribunal Federal (STF), em recente decisão ao julgar o RE 1090591, fixou a tese de repercussão geral de que “É constitucional vincular o despacho aduaneiro ao recolhimento de diferença apurada mediante arbitramento da autoridade fiscal” (Tema 1042).
Com a recente interposição do recurso de embargos de declaração pelo importador, aspectos jurídicos relevantes para a solução desse conflito poderão então ser devidamente considerados no julgamento derradeiro do Tema 1042, cuja importância sugere que este aconteça por meio presencial, e não virtual.
O Regulamento Aduaneiro prevê o arbitramento do valor aduaneiro apenas em caso de fraude, sonegação ou conluio, o que sequer foi aventado no caso julgado.
No caso julgado, a Receita Federal do Brasil (RFB) reteve inicialmente as mercadorias importadas por ao menos 90 dias. Até aquele momento, extrapolando os prazos previstos para o despacho aduaneiro, a RFB sequer havia iniciado procedimento especial de controle aduaneiro que lhe autorizasse – em hipóteses excepcionais de suspeita de fraude – reter por tanto tempo as mercadorias.
Apenas meses após o início do procedimento de desembaraço aduaneiro é que as autoridades fiscais, finalmente, indicaram as exigências cujo cumprimento permitiria ao importador concluir o despacho aduaneiro: a retificação do valor das mercadorias e o recolhimento de multa e tributos.
Ocorre que o Brasil é membro signatário dos acordos da Organização Mundial de Comércio (OMC). O denominado Acordo de Valoração Aduaneira (AVA) da OMC determina aos países signatários que sigam um procedimento próprio e regulamentado para se determinar a correta valoração aduaneira, e que não deve impedir a continuidade do despacho aduaneiro das mercadorias.
É o que diz o artigo 13 do AVA e o artigo 31 da IN SRF327/03, que disciplina as normas e procedimentos para o controle do valor aduaneiro de mercadoria importada. O termo “controle” é o mesmo que consta no artigo 237 da CF, e que serviu de pilar central da decisão do STF sobre o Tema 1042.
O controle e a fiscalização sobre o comércio exterior autorizados pela CF, porém, não outorgam poderes às autoridades fiscais para que, mediante arbitramento, apurem diferenças de natureza tributária-aduaneira que possam impor aos importadores o recolhimento dos tributos como condição para a conclusão do despacho aduaneiro.
O próprio Regulamento Aduaneiro (RA) prevê o arbitramento do valor aduaneiro apenas em casos de fraude, sonegação ou conluio, o que sequer foi aventado no caso julgado. Aliás, é difícil vislumbrar como poderiam as autoridades fiscais apurar a ocorrência de fraude, dolo ou conluio na determinação do valor aduaneiro feita pelo importador, sem que antes dessem início ao procedimento fiscal de valoração aduaneira previsto no AVA, cujas regras o próprio RA e a IN SRF 327/03 determinam que sejam seguidas.
A aplicação do artigo 571 do RA – citado na decisão do STF – também deve ser questionada, eis que sua redação não é a mesma das leis que indica como base. Ao contrário, referidas leis versam sobre como mercadorias importadas que tenham exigência fiscal pendente poderão ser desembaraçadas. Por ser um decreto, o RA não pode regulamentar de forma extensiva ou conflitiva com a Lei.
A Súmula STF 48, também citada na decisão do STF, aponta ser “legítima a cobrança do ICMS por ocasião do desembaraço aduaneiro”.
É claro que o importador tem obrigação de recolher todos os tributos incidentes na importação para que as mercadorias possam ser desembaraçadas, porém, jamais com a exigência de inclusão de multas ou diferenças a maior desses tributos simplesmente por serem entendidas como devidas pela autoridade aduaneira, e sem que antes se percorra o devido processo legal. Qualquer outra interpretação implicaria violação a princípios constitucionais cujo guardião é o próprio STF.
Deve-se ainda mencionar a nova ordem econômica estabelecida a partir da Constituição, com a observância de princípios como o da propriedade privada, livre concorrência e busca do pleno emprego. A Lei da Liberdade Econômica, por sua vez, estabelece entre seus princípios norteadores a liberdade como uma garantia no exercício das atividades econômicas e a boa-fé do particular perante o poder público.
Assim, nos termos da Súmula STF 48, o importador deve, sim, recolher todos os tributos calculados com base no valor aduaneiro da mercadoria importada que ele, de boa-fé, indicou nos documentos de importação. Quaisquer adicionais somente poderão ser exigidos como garantia para o desembaraço, ou após o devido processo legal. Há também previsões nesse sentido no Acordo de Facilitação de Comércio da OMC e no Protocolo de Revisão da Convenção de Quioto, dos quais o Brasil é signatário.
Por fim, não é demais lembrar que a CF dispõe sobre a preservação dos direitos e garantias previstos nos tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte. De acordo com o Código Tributário Nacional, os tratados internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna e serão observados pela que lhes sobrevenha. Há, ainda, o evidente caráter de lei especial conferido ao AVA para tratar do valor aduaneiro de mercadoria importada.
Assim, com a interposição de embargos de declaração em face da decisão proferida no julgamento do RE 1090591, espera-se que, no julgamento desses embargos, possa o Supremo debater a fundo todos esses aspectos jurídicos intrínsecos à discussão do Tema 1042, e ao final reconhecer a inconstitucionalidade na vinculação do despacho aduaneiro ao recolhimento de diferença apurada mediante arbitramento.
FONTE: Valor Econômico – Por Mauro Berenholc, 26/10/2020.