O novo Código de Processo Civil (CPC) comemorará dois anos de vigência em março deste ano. Realizando-se um balanço, especialmente no que tange ao novo regime de precedentes, nota-se que, apesar de necessárias, as mudanças introduzidas ainda estão longe de ter a aplicabilidade prática e coesa almejada.
Lembrando, o novo código não só tornou obrigatória a uniformização e a manutenção da jurisprudência, como a sua observância por juízes e tribunais inferiores. Anteriormente, a vinculação às decisões dos tribunais superiores era limitada, opcional e mediata: os tribunais inferiores podiam se retratar ou não para adequação de suas decisões a julgados de casos repetitivos; não eram obrigados a seguir súmulas, senão vinculantes; também não precisavam aceitar a orientação do plenário ou do órgão especial a que estavam vinculados.
Ademais, a obrigatoriedade não se estendia aos juízes de primeira instância. Permitia-se, deste modo, a proliferação de decisões desconexas e controversas na solução de lides semelhantes. Adicionalmente, o novo código introduziu o incidente de resolução de demandas repetitivas, mais conhecido como IRDR. Uma vez instaurado, o mecanismo leva à suspensão de todos os processos semelhantes, pendentes no Estado, na região ou, mediante requerimento, no país. Julgado o incidente, a tese jurídica é aplicável a todos os processos sobre idêntica questão de direto em trâmite nos tribunais, garantindo-se o julgamento uniforme já em segunda instância. Isto antes não se verificava: os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais eram tidos, muitas vezes, como tribunais “de passagem”.
É difícil a mudança da cultura processual civilista brasileira, fundamentada, principalmente, em um regime de precedentes
As regras processuais brasileiras, bem como seus aplicadores, careciam de um modelo de precedentes estruturado e efetivo, que trouxesse maior celeridade processual e, principalmente, segurança jurídica aos jurisdicionados. O novo código caminhou nesta direção. Porém, diversos fatores dificultam a aplicação do regime por ele introduzido.
Primeiramente, é difícil a mudança da cultura processual civilista brasileira, fundamentada, principalmente, na codificação de um regime de precedentes que limita o princípio do juiz natural. Adicione-se a esta dificuldade, a peculiaridade da metodologia adotada pelo código brasileiro, em que precedentes são criados em abstrato, por meio do julgamento de casos paradigmas. Diferente é o modelo do common law, em que um julgado somente assume mencionada característica, após a aplicação de sua tese jurídica em concreto.
Não se pode olvidar, também, a subjetividade que tangencia a formação dos precedentes. Para que ele possa ser aplicado, superado ou diferenciado dos casos em julgamento, com propriedade, é imprescindível a participação consciente de todos os interessados na solução da matéria. Há que se ter conhecimento das consequências sobre os demais litigantes e, portanto, o compromisso com a qualidade técnica necessária. Do contrário, corre-se o risco de aumentar, ao invés de diminuir a insegurança jurídica.
Exemplo da falta de aplicabilidade prática e coesa do regime de precedentes, pode ser extraído da discussão travada no Superior Tribunal de Justiça acerca da possibilidade de retirada, da base de cálculo do ICMS, das tarifas de uso dos sistemas de distribuição ou de transmissão de energia elétrica (TUSD/TUST) – um dos temas tributários com maior repercussão no tribunal nos últimos tempos.
Até 2017, o STJ possuía jurisprudência predominantemente favorável aos contribuintes. Em março do mesmo ano, entretanto, contradizendo suas próprias decisões, a 1ª Turma decidiu contra o contribuinte. Poucas semanas depois, em abril, coube à 2ª Turma voltar à posição tradicional, afastando a incidência do tributo. A delimitação final sobre o tema continua suspensa, já que a matéria foi submetida ao regime de julgamento de recursos repetitivos.
Resta saber, agora, se a resolução da lide trará a segurança jurídica e a isonomia perseguidas pelas disposições do novo CPC. É certo, contudo, que este resultado somente será alcançado se a escolha e o julgamento do caso paradigma forem suficientes para criar um precedente sólido e estruturado, com abrangente argumentação e discussão, no qual possam ser encontrados todos os fundamentos específicos, essenciais à tese jurídica a ser aplicada.
A expectativa é de que um novo ano traga mais maturidade aos magistrados, aos litigantes e a todos os interessados no desenvolvimento do processo civil brasileiro. Não adiantam mudanças, muito menos ferramentas para alcançá-las, se não houver a compreensão e o comprometimento de todos com os valores ansiados. Longe de suprir todas as lacunas existentes, as disposições do novo Código Processual Civil (CPC) são apenas notas introdutórias a um capítulo em construção.
Bruna Camargo Ferrari é advogada e contadora, mestre em Direito Tributário pela FGV.
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Por Bruna Camargo Ferrari
Fonte : Valor-28/02/2018