Neste cenário de incerteza e dificuldades causadas pela pandemia da covid-19, temos visto que, apesar do distanciamento social, comunidades carentes, hospitais e outras instituições de assistência social têm sido abraçadas por exemplos de solidariedade e altruísmo.
Exemplo dessas ações beneficentes é manifestado pela doação de produtos por muitos fabricantes de alimentos e principalmente produtos de limpeza e higiene pessoal, como álcool e sabonete. Registre-se, inclusive, que grandes empresas do setor privado alteraram sua linha de produção para focar em itens que se tornaram fundamentais nesse triste cenário. É o que aconteceu com a maior fabricante de cervejas do país, que passou também a produzir álcool em gel, e com uma importante indústria de cosméticos, que redirecionou sua linha de produção para aumentar a oferta de sabonetes, conforme noticiado na imprensa.
Estes e outros fabricantes estão doando mercadorias, operações que, em princípio, estariam sujeitas à incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias (ICMS). Portanto, além de suportar custos com insumos e força de trabalho, o generoso empresário deve arcar com tributos incidentes sobre as saídas de mercadorias de seu estabelecimento, ainda que destinadas aos abandonados pelo omisso e ineficiente Estado.
Para evitar essa injusta oneração do empresário solidário, o antigo Convênio ICM 26/75, prorrogado pelo Convênio ICMS 151/94, estabelece que as doações de mercadorias a entidades governamentais e assistenciais consideradas de utilidade pública, para assistência a vítimas de calamidade pública reconhecida em ato de autoridade competente, ficam isentas do ICMS, sendo assegurada a manutenção do crédito do imposto. Da mesma forma, a prestação de serviço de transporte interestadual e intermunicipal dessa mercadoria é desonerada do ICMS.
Vale observar que a obtenção da declaração de utilidade pública da entidade destinatária das doações como requisito para a fruição do benefício fiscal é bastante polêmica e limitadora da desoneração.
Isso porque o título de Utilidade Pública, reconhecimento da União aos relevantes serviços prestados pelas associações e fundações constituídas no País que servem desinteressadamente à sociedade, apenas pode ser pleiteado pelas entidades sem fins lucrativos que, dentre outras condições definidas no Decreto nº 50.517/61, (a) promovam a educação ou exerçam atividade de pesquisa científica, cultura, artística ou filantrópica, de caráter geral ou indiscriminado, predominantemente, e (b) comprove a ausência de remuneração dos cargos de diretoria, distribuição de lucros, bonificações ou vantagens a dirigentes, mantenedores ou associados.
Diferentemente do que dispõe a legislação do ICMS, a desoneração das doações pelo IPI depende de atos normativos específicos, em geral editados de forma discricionária pelo Poder Executivo com fundamento no art. 150, § 1, da Constituição Federal.
Recentemente o governo federal reduziu a zero a alíquota do Imposto de Importação e do IPI para determinados produtos relacionados, respectivamente, na Resolução Câmara de Comércio Exterior 17/2020 e no Decreto 10.285/2020, dentre os quais álcool etílico com um teor alcoólico, em volume, igual ou superior a 70 % vol, impróprio para consumo humano, desinfetantes em formas ou embalagens exclusivamente para uso direto em aplicações domissanitárias, gel antisséptico, à base de álcool etílico 70%, próprio para higienização das mãos, vestuário e seus acessórios de proteção, de plástico, como luvas, e aparelhos de oxigenoterapia e respiratórios de reanimação e respiradores automáticos (estes apenas com benefício de Imposto de Importação).
Essa desoneração dos impostos federais é restrita aos produtos listados nos referidos atos normativos, não amparando doações de quaisquer mercadorias a quem tanto necessita. Vale lembrar que, em oportunidades anteriores, o governo federal reduziu a zero a alíquota do IPI para doações de quaisquer produtos desde que destinados àqueles que, por desastres naturais, precisaram de ajuda tanto do Estado quanto da iniciativa privada. É o que ocorreu em 2008 e em 2011, com relação às vítimas de enchentes, respectivamente, nos Estados de Santa Catarina (Decreto 6.677/2008) e Rio de Janeiro (Decreto 7.437/2011).
Diante da grave crise econômica decorrente do quarentena imposta ao país e do medo de contágio principalmente enfrentado pela população mais carente, que não dispõe sequer de saneamento básico adequado, o que se dirá do acesso ao álcool em gel, é o caso do governo federal repensar a limitação do benefício de IPI previsto no Decreto 10.285/2020, para estender a alíquota zero a quaisquer produtos doados durante a pandemia da covid-19.
Da mesma forma, a isenção do ICMS prevista no Convênio ICMS 151/94 precisa ser revista no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária no que concerne à necessidade do título de utilidade pública conferido ao donatário da mercadoria.
Enfim, tanto o benefício do ICMS quanto do IPI não depende de procedimento administrativo, sendo de aplicação imediata. A questão é que a alíquota zero do IPI é restrita a alguns produtos doados, enquanto a isenção do ICMS é limitada a determinados donatários. A questão é se a desoneração irrestrita das doações pelos governos federal e estadual não seria o mínimo que se espera nesse momento de angústia e grave recessão.
Por Carolina Romanini Miguel
*Carolina Romanini Miguel, sócia do escritório Machado Associados, doutora em Direito Econômico e Financeiro USP e mestre em Direito Tributário PUC/SP.
Fonte: Jornal O Estado de S.Paulo – 28/03/2020.