Sob a perspectiva tributária, não há previsão legal sobre o correto tratamento aplicável às hipóteses de alienação fiduciária de bens.
As captações de recursos garantidas por alienação fiduciária de bens são bastante comuns no dia a dia empresarial. Também são cada vez mais recorrentes as operações de reestruturações de dívida das companhias que terminam em um pedido de recuperação judicial, extrajudicial ou, nos casos de dívidas garantidas por alienação fiduciária, a excussão do bem pelo credor.
A despeito dessa realidade e da sensibilidade do tema, não há qualquer clareza sobre o tratamento tributário – especialmente para as pessoas jurídicas – decorrente da eventual diferença entre o valor original (contábil) dos bens e o valor a eles atribuído para fins da alienação fiduciária.
Sob a perspectiva tributária, não há previsão legal sobre o tratamento aplicável às hipóteses de alienação fiduciária de bens.
O instituto da alienação fiduciária pressupõe a transferência da propriedade resolúvel do bem e o desdobramento da posse entre o credor fiduciário e o devedor fiduciante. Caso vencida e não quitada a dívida, o primeiro ato para a execução da garantia ocorre com a consolidação da propriedade plena pelo credor, ação necessária para permitir a alienação do bem nos leilões públicos.
Uma vez consolidada a propriedade plena, o credor fica obrigado a vender o bem para terceiros, judicial ou extrajudicialmente. Os recursos provenientes da venda são então utilizados para quitar a dívida, sendo que o valor excedente deve ser necessariamente entregue ao devedor; e, se o valor for insuficiente para a quitação integral, o devedor permanece, como regra, obrigado pelo remanescente, embora sem necessidade de garantia.
Sob a perspectiva tributária, não há previsão legal sobre o correto tratamento aplicável às hipóteses de alienação fiduciária de bens, tampouco jurisprudência administrativa e/ou judicial sobre o tema, mormente nas situações nas quais o custo do bem dado em alienação fiduciária é menor que o valor da dívida garantida.
Em linhas regais, as seguintes questões são objeto de controvérsia: o momento da ocorrência do potencial acréscimo patrimonial do devedor, caso existente, e a quantificação desse ganho.
Há um precedente administrativo (acórdão Carf 1301-003.629, de 12.12.2018) que tratou de certos pontos. Nessa ocasião, o Carf decidiu que transferência de propriedade na instituição da alienação fiduciária teria natureza meramente acessória, com finalidade de garantia, de forma que não haveria, ao menos nesse momento, acréscimo patrimonial para devedor.
O voto vencedor concluiu que não haveria ganho enquanto não realizada a consolidação da propriedade, mas não foi definido quando ocorreria esse acréscimo – na própria consolidação pelo credor fiduciário ou somente na alienação/adjudicação do bem, com a consequente liberação do devedor.
Nesse contexto de incerteza da legislação e da jurisprudência tributárias, o momento de realização e a quantificação do ganho pelas pessoas jurídicas devem ser analisados à luz da legislação cível e, subsidiariamente, quando não conflitantes, das atuais normas contábeis.
Sob a perspectiva cível, a constituição da propriedade fiduciária não representa efetiva “alienação” do bem, mas somente a instituição de garantia e a transferência da propriedade em caráter resolúvel. Como o credor não é titular da propriedade plena, para a excussão da garantia é necessário que ele promova a consolidação da propriedade como meio de propiciar a venda para terceiros em leilão. A quitação (ainda que parcial) da dívida ocorre somente com a alienação do bem objeto da garantia ou com a adjudicação definitiva pelo credor.
Sob a perspectiva contábil, considerando que no momento da consolidação da propriedade a dívida ainda não é quitada, o passivo financeiro não deve ser baixado, o que se verificaria apenas com a venda ou adjudicação do bem. Consequentemente, não haveria também um resultado contábil positivo por baixa de passivo até a efetiva quitação da dívida e liberação do devedor.
Fazemos apenas ressalva que, a depender da natureza do bem, a consolidação da propriedade pelo credor fiduciário pode impor a reclassificação contábil.
No caso específico de participação societária relevante, a consolidação da propriedade pelo credor poderia ainda causar para o devedor o reconhecimento de uma perda de controle sobre a participação entregue, com a baixa do investimento e constituição de novo ativo a valor justo (financeiro ou não circulante mantido para venda), além de eventual reconhecimento de ganho contábil.
Para fins fiscais, todavia, os eventuais efeitos contábeis em conta de resultado decorrentes da baixa/reclassificação do ativo na consolidação da propriedade devem ser neutralizados e diferidos para o momento de quitação da dívida – e correspondente baixa do passivo.
Com base nessas premissas, sustenta-se que tanto a instituição da alienação fiduciária quanto a consolidação da propriedade não representariam eventos jurídicos suscetíveis de apuração de acréscimo patrimonial tributável; e o potencial ganho do devedor fiduciante ocorreria somente na efetiva alienação ou na adjudicação do bem pelo credor, com a correspondente quitação da dívida, momento em que também seria efetivamente possível quantificá-lo.
Apesar de não haver lei ou jurisprudência acerca do tratamento tributário aplicável às operações de alienação fiduciária de bens, as conclusões pela tributação de potencial acréscimo patrimonial do devedor somente na efetiva quitação da dívida possuem maior conformidade com os conceitos de aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica previstas art. 43 do Código Tributário Nacional.
Valor Econômico – Por Renato Coelho e Renato Stanley – 15 de outubro de 2019