Pelo menos cem processos discutem no Judiciário o voto de qualidade do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) – desempate de julgamento por um representante da Fazenda. Há, por ora, dez decisões vigentes favoráveis a empresas. Duas liminares foram concedidas recentemente, dando fôlego à discussão travada com a Receita Federal.
O balanço é da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), que colocou o tema sob acompanhamento especial. No total de cem ações, pode haver casos ainda sem julgamento.
O voto de qualidade é comum em processos de valor elevado ou que envolvem teses complexas. Em 2018, a 2ª Turma da 4ª Câmara da 2ª Seção manteve, por meio do instrumento, uma autuação fiscal de R$ 9 bilhões aplicada ao Santander em decorrência da compra do Banco ABN Amro. Também foi por meio de desempate que a Câmara Superior manteve uma cobrança bilionária da BM&FBovespa em 2017.
Como os presidentes das turmas julgadoras são sempre representantes do Fisco, advogados alegam que a medida beneficia a Receita Federal, além de contrariar o Código Tributário Nacional (CTN) e a Constituição. Por meio desse argumento, a Delta Airlines obteve recentemente liminar na 13ª Vara Federal do Distrito Federal (processo nº 1001136-39.2017.4.01.3400).
O caso envolve três multas por registro fora do prazo de dados de embarque de cargas destinadas à exportação, relativos a três voos, segundo a Receita. A 1ª Turma da 2ª Câmara da 3ª Seção do Carf havia cancelado a cobrança de R$ 15 mil em 2012. A Fazenda recorreu e, no desempate, em 2016, a 3ª Turma da Câmara Superior manteve a autuação.
No processo, a Delta Airlines alega que o julgamento desrespeitou princípios constitucionais, uma vez que o presidente da Câmara votou duas vezes, alterando “substancialmente” o resultado. A empresa faz um paralelo com o direito penal e cita o “in dubio pro contribuinte”, que seria previsto no artigo 112 do Código Tributário Nacional. O dispositivo indica que, em caso de dúvida, caberia a adoção da decisão mais favorável ao contribuinte.
Na liminar, a juíza Edna Márcia Silva Medeiros Ramos considera que “nem de longe” o voto de qualidade pode significar o poder de o presidente votar duas vezes. “Aceitar tal entendimento, significa, na prática, que quase todas as questões polêmicas, que gerem entendimentos divergentes, sejam decididas unicamente pelo presidente”, afirma.
A decisão suspende a exigência do crédito tributário até manifestação no mérito ou nova sessão de julgamento do processo, sem a possibilidade de voto duplo do presidente da sessão.
Com base em argumentos semelhantes, a American Airlines obteve liminar para suspender o andamento de processo administrativo até o julgamento final do mandado de segurança (nº 1009633-76.2016. 4.01.3400). A decisão do juiz federal substituto da 20ª Vara Federal do Distrito Federal, Renato Borelli, foi contrária ao voto de qualidade da 3ª Turma da Câmara Superior.
Para o juiz, casos de empate na votação revelam dúvida sobre o direito aplicável. Entende que o voto de qualidade para fins de desempate não pode ser desfavorável ao contribuinte. Borelli cita o artigo 112 do CTN e a movimentação de instituições contra a prática – como a Ordem dos Advogados (OAB), que levou a questão para o Supremo Tribunal Federal (STF).
Há decisões esporádicas reconhecendo a inaplicabilidade do voto de qualidade, segundo o advogado das empresas, Lucas Siqueira dos Santos, do escritório Bernardi & Schnapp Advogados. “Houve empate, isso indica que houve dúvida”, diz.
Na segunda instância, porém, já há precedentes a favor da União. A PGFN lista decisões do Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região (nº 0005472-98.2016.4030.000), do TRF da 4ª Região (nº 5073051-59.2014.4.04. 7100) e do TRF da 5ª Região (nº 0809162-14.2017.4.05.0000) que aprovam o mecanismo.
“O voto de qualidade no Carf é legítimo. Decorre da natureza do processo administrativo fiscal”, afirma Moisés de Sousa Carvalho, coordenador da atuação da PGFN no Carf. Segundo o procurador, o voto de qualidade sempre existiu, mas não havia essa controvérsia.
De acordo com o coordenador, o empate não significa dúvida e, nesse caso, as autuações devem ser mantidas pela presunção de legalidade. Em caso de derrota no Carf, apenas o contribuinte pode recorrer ao Judiciário.
Segundo a advogada Ana Paula Lui, do escritório Mattos Filho, apesar dos precedentes contrários, a tese sobre o voto de qualidade não perdeu força, como mostram as liminares. “Se há dúvida, não cabe ao contribuinte provar que não deve ser penalizado. Cabe ao Fisco demonstrar que o contribuinte não recolheu imposto”, afirma. Para ela, “o conselheiro só poderia ser chamado a votar se não tivesse participado da votação”.
Ainda é cedo para se falar em jurisprudência, segundo o advogado Fabio Calcini, do Brasil Salomão e Matthes Advocacia. “Os contribuintes estão se mobilizando para questionar o tema, mas ainda é pulverizado.”
Em nota, o Carf afirma que não há estudos para mudar o formato adotado “há quase um século”. As companhias aéreas não retornaram até o fechamento da edição.
Fonte: Valor-03/04/2018
Por Beatriz Olivon | De Brasília