É imperioso que o Judiciário permaneça atento aos impactos concorrenciais de suas decisões, garantindo o princípio da livre concorrência.
Decorrência da crise econômica que se instaurou no país a partir de 2014, ganhou grande relevância o debate em torno das ações de recuperação judicial, tendo como questão imanente o deferimento de recuperações sem a exigência de demonstração da regularidade fiscal da empresa, afastando mandamento expresso da própria Lei nº 11.101, de 2005.
As discussões a respeito, ordinariamente, têm-se conduzido sob a ótica da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que autorizava o processamento da recuperação judicial sem a obediência ao artigo 57 da referida lei, que tinha por ponto fulcral a ausência de regulamentação do parcelamento específico de empresas em recuperação judicial, o que já não se observa na atualidade com o acréscimo do artigo 10-A à Lei nº 10.522, de 2002, fato que por si só demandaria uma nova análise da temática.
É imperioso que o Poder Judiciário permaneça atento aos impactos concorrenciais de suas decisões.
Entretanto, vem passando ao largo dessa discussão a análise dos efeitos da homologação do plano de recuperação judicial, sem a demonstração de regularidade fiscal da empresa, sobre o mercado e sob a ótica concorrencial, notadamente se considerarmos que o STJ, no julgamento do tema 987, determinou a suspensão de todos os atos constritivos nas execuções fiscais, até a definição daquela questão debatida sob a sistemática do microssistema de resolução de demandas repetitivas.
Nesse contexto, visualizamos situação permissiva a empresas que se lhe tenham deferidas recuperações judiciais sem a apresentação das certidões de regularidade fiscal, recebendo verdadeira moratória posto que as Fazendas Públicas, não poderão cobrar seus créditos, quer por não participarem das recuperações judiciais, quer por estarem suspensos os atos de garantia das execuções fiscais.
Insofismável que quando empresas conseguem a redução de seus custos, repassando-a a seus preços, claramente aumentam as chances de acrescer sua participação no mercado, sendo forma eficaz e conhecida o enfrentamento tributário. A teoria econômica, no ponto, inadmite controvérsias: todo tributo acaba por modificar o sistema de preços relativos e absolutos, desconhecendo-se, no plano da realidade, o que teoricamente se chama “imposto neutro”.
O impacto em termos de custos da tributação, sejam diretos pela incidência tributária, sejam indiretos com os chamados custos de conformidade com as atividades administrativas necessárias para o adequado cumprimento pela empresa das obrigações tributárias, variará entre os agentes produtores considerada sua natureza, as características do mercado onde atua e as particularidades dos tributos que lhes atingem. Fato induvidoso, entretanto, é que o impacto existe e é relevante.
Calha destacar que na exposição de motivos da Lei nº 11.101, de 2005, já havia a preocupação pela proteção da ordem jurídica e da ordem econômica, sendo elemento integrante dessa última a proteção da concorrência, daí provindo a preocupação do legislador em exigir a regularidade fiscal da empresa pleiteante da recuperação judicial, a demonstrar sua capacidade em concorrer de maneira idônea no mercado e mesmo de se recuperar e voltar a atuar regularmente.
Nesse quadro, ganha relevo a necessária aferição dos impactos concorrenciais pela atividade julgadora no processamento e concessão de recuperações judiciais.
Atento à matéria, o Tribunal de Justiça do Estado do Pará impediu a inscrição de empresário com débitos decorrentes de infração ambiental no Cadastro de Exploradores e Consumidores de Produtos Florestais, em relevante precedente que, conquanto dirigido ao adimplemento de exigência ambiental, é perfeitamente adaptável à questão das recuperações judiciais (processo nº 2015.030 66857-85), valendo destacar o quanto apontado pelo relator ao observar “que tais empresários – o cumpridor e o descumpridor das normas ambientais – estarão em desigual capacidade de concorrência no mercado interno, uma vez que o infrator poderá praticar preços abaixo do mercado, sem sequer levá-lo a patamar inferior ao custo”.
A Corte assentou de forma escorreita que autorizar o cadastro de empresários com multas ambientais, em detrimento dos cumpridores das obrigações, poderia gerar “underselling ambiental”. Como se sabe, a referida infração – também denominada como “preço predatório” – consiste em praticar, no mercado nacional, venda de mercadorias abaixo do preço de custo ou sem razoável margem de lucro, com o fito de prejudicar os concorrentes e, após, dominar o mercado aumentando arbitrariamente o preço.
Nesse contexto, haveria figura ainda mais gravosa tanto no caso abordado pelo precedente judicial, quanto na recuperação judicial, uma vez que nessas hipóteses o empresário sequer precisaria operar em prejuízo para gerar os efeitos deletérios na concorrência.
É imperioso, portanto, que o Judiciário permaneça atento aos impactos concorrenciais de suas decisões, garantindo o princípio da livre concorrência e proeminência do player mais eficiente, e não daquele que atua pela chancela de moratória não prevista pelo espírito legal e contrária ao dever fundamental de pagar tributos.
Valor Econômico – Por Aleksey L. Cardoso e João Gabriel M. C. de M. Ribeiro – 27 de março de 2020