A crise econômica decorrente da epidemia do coronavírus gerou problema de caixa para empresas e motivou a busca por soluções emergenciais. Dentre elas estão os pedidos de substituição de depósito judicial feito em demanda tributária, uma medida que daria fôlego aos contribuintes, mas tem sido negada justamente para manter suprido o caixa do Poder Público, tendo em vista o combate à Covid-19.
Conforme a Lei 9.703/1998, os depósitos são repassados pela Caixa Econômica Federal para a Conta Única do Tesouro Nacional ou dos Tesouros Estaduais e permanecem indisponíveis até o trânsito em julgado da demanda. A partir daí, é incorporado pela Fazenda Nacional ou devolvido acrescido de juros ao contribuinte, de acordo com o resultado processual. É a aplicação literal deste dispositivo que tem sido desafiada no Judiciário.
Última palavra do Direito infraconstitucional, o Superior Tribunal de Justiça tem negado pedidos de tutela provisória e petições pela substituição do depósito judicial por seguro-garantia ou fiança bancária. Prevalece a jurisprudência segundo a qual eles não se enquadram em nenhuma das hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, previstas no artigo 151 do Código Tributário Nacional.
A indisponibilidade do depósito também é justificada em decisões monocráticas de ministros da 1ª Seção do STJ pelos seus efeitos mais práticos.
“Em meio à pandemia, o levantamento dos depósitos sem decisão judicial transitada em julgado pode comprometer a implementação, pelo Poder Público, de políticas sociais e medidas econômicas anticíclicas. Claro está, pois, o risco à economia pública e à ordem social”, aponta a ministra Assusete Magalhães.
“Decerto, fossem liberados todos os depósitos judiciais efetivados em garantia de ações tributárias por todo o Brasil, o Poder Público restaria privado de importantes recursos que já estão sendo utilizados em diversas políticas públicas de combate à pandemia e seus efeitos de toda ordem”, concorda o ministro Mauro Campbell Marques.
“A crise gerada durante a pandemia do novo coronavírus é grave e reclama soluções técnicas e coordenadas, inclusive juridicamente, sob pena de novos conflitos”, aponta o ministro Og Fernandes. É o posicionamento reinante entre os membros da 2ª Turma.
Na 1ª Turma, entende-se que o STJ não tem competência para autorizar a substituição de depósitos judiciais por seguro-garantia, o que só poderia ser feito pelo juízo de origem na fase de cumprimento de sentença — após o trânsito em julgado, conforme a Lei 9.703/1998, portanto. Assim, não se conhece dos pedidos levados aos ministros.
Razoabilidade e constitucionalidade
A ideia de liberar a substituição dos depósitos judiciais na crise é amplamente defendida por tributaristas, como mostrou a ConJur. O advogado e professor Fernando Facury Scaff, em coluna publicada, sugeriu-a ao ministro da Economia, Paulo Guedes. Ele poderia pedir à Advocacia-Geral da União e à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, órgãos que lhe são vinculados, que aceitem todos os pedidos.
“Hoje, em face da correta postura combativa dos advogados públicos federais, essa troca de garantias vem ocorrendo a conta-gotas, a depender do entendimento de cada magistrado, nas diversas instâncias judiciais. Se for adotada essa orientação pelo ministério da Economia, a medida será republicana”, afirmou.
Luiz Carlos Americo dos Reis Neto, tributarista do escritório Ogawa, Lazzerotti e Baraldi Advogados, pede olhar mais profundo por parte do Judiciário e da Fazenda Pública. E chama a atenção para a literalidade da interpretação do artigo 1º, parágrafo 3º, da Lei 9.703/1998.
“Vale ressaltar, ainda, que a própria e escorreita interpretação conduz à inequívoca conclusão de que os contribuintes possuem o efetivo direito ao levantamento e, consequentemente, à substituição dos valores depositados judicialmente em todos os processos judiciais em que já houve o encerramento da lide (entendida como discussão sobre o mérito), que não se confunde (à luz da própria legislação de regência), com o encerramento do processo litigioso”, acrescenta.
Para Felipe Grando, sócio do escritório Rossi, Maffini, Milman e Grando Advogados, a análise por parte do Judiciário deve ser levar em conta princípios constitucionais que se encontram hierarquicamente acima das leis: a preservação das empresas, a livre iniciativa e o princípio da razoabilidade.
“Se a empresa demonstra fragilidade econômica causada pela pandemia somada à apresentação de uma garantia com liquidez, por instituição financeira de credibilidade, não me parece que o Fisco tenha qualquer prejuízo. A garantia que o depósito lhe trazia vai ser mantida. E isso temperado por princípios constitucionais que vêm à tona e ganham relevo diante da pandemia”, apontou.
Sem impacto real
Além do arcabouço doutrinário, a defesa da possibilidade de substituição do depósito judicial no contexto tributário passa também pelo fato de que não há prejuízos na sua execução. “Tal proposta não interfere nem um milímetro no mérito das discussões em curso. O que estava sendo discutido permanece em discussão, sem nenhuma alteração de conteúdo”, disse Scaff.
Americo dos Reis Neto pede um olhar mais profundo para a questão. Para ele, a matéria ultrapassa o simples interesse privado para, de fato, proteger o próprio interesse público, “vinculado à manutenção das atividades empresariais dos contribuintes e, consequentemente, aos milhares de empregos que se encontram, nesse momento, inegavelmente ameaçado”.
Nem mesmo a suposta diminuição de caixa no Tesouro Público poderia justificar a negativa em momento de crise, segundo Felipe Grando. “Se o argumento é que o depósito não pode sair da conta vinculada porque há disposição literal em lei, não se pode justificar a negativa da substituição pelo fato de o ente público usar esse recurso para despesas ordinárias. Se tem que ficar congelado, que fique para ambos os lados”, opina.
Direito Privado e Trabalhista
Também em artigo , Daniel Cunha Canto Marques, sócio do Pimentel & Rohenkohl Advogados Associados, defendeu como legítimo o pedido dos contribuintes, com vistas em outros dois ramos do Direito em que a prática é difundida inclusive no contexto da pandemia.
Na seara do Direito Privado, o próprio STJ tem promovido uma atualização da jurisprudência construída na vigência do Código de Processo Civil de 73, diante das alterações para versão mais recente, de 2015.
Pelo CPC/73, a penhora em dinheiro é preferencial na ordem de gradação legal. Já o CPC/2015 equiparou as duas modalidades, desde que o valor seja acrescido em 30% no seguro-garantia. A 3ª Turma da corte tem decisão nesse sentido.
A Justiça do Trabalho também permite a substituição, hipótese reforçada por recente decisão do Conselho Nacional de Justiça, que manteve a suspensão dos artigos 7º e 8º do Ato Conjunto nº 1/2019 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) e Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho (CGJT).
“Embora ainda não seja posição firmada pelo Judiciário, o pleito dos contribuintes é legítimo e a excepcional situação de estado de calamidade dá razão para o seu acatamento”, concluiu.
REsp 1.698.164
AREsp 1.475.786
AREsp 1.525.342
AREsp 1.642.604
REsp 1.762.409
EAREsp 655.024
Por Danilo Vital
Danilo Vital é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 11 de julho de 2020.
https://www.conjur.com.br/2020-jul-11/epidemia-barra-substituicao-deposito-judicial-tributario