O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) continuou aplicando o voto de qualidade nos seus julgamentos mesmo com a publicação de lei contra essa prática. Desde que as sessões foram retomadas, em junho, tem sido proferidas decisões pelo critério antigo de desempate, inclusive da Câmara Superior, a última instância administrativa.
O Carf entende que a nova norma não abarca todos os tipos de processo analisados pelos conselheiros, o que acabou sendo endossado pelo Ministério da Economia. O órgão publicou portaria na última sexta-feira que cria exceções para a lei que colocou fim ao voto de qualidade, aprovada em abril pelo Congresso.
Trata-se de uma interpretação mais restritiva da nova lei e frustra a expectativa das empresas, que já perderam disputas bilionárias por causa do critério de desempate usado no Carf.
O chamado voto de qualidade é ruim para o contribuinte porque apesar de o tribunal administrativo ser um órgão paritário – com representantes de ambos os lados – cabe ao presidente da turma julgadora, representante da Fazenda, desempatar os julgamentos.
Com a Lei nº 13.988, do mês de abril, essa lógica se inverteu. Um novo artigo, o 19-E, foi incluído na Lei nº 10.522, de 2002, prevendo que em caso de empate o contribuinte sairia vencedor. A redação dada ao 19-E, no entanto, acabou dando margem para interpretações diferentes.
O dispositivo libera do voto de qualidade o “processo administrativo por determinação e exigência de crédito tributário”. O Carf, nos seus julgamentos, tem dito que o texto envolveria apenas uma parcela dos processos julgados: os decorrentes de autos de infração.
Para o Conselho, o chamado voto de qualidade ainda pode ser aplicado nos julgamentos de embargos e outros de natureza processual. São casos em que os julgadores avaliam se o recurso apresentado pelo contribuinte está de acordo com o regimento para, a partir de então, votar o mérito.
O mais grave, na visão dos advogados, no entanto, é que o voto de qualidade também está sendo mantido para as discussões relacionadas à compensação (pagamento de tributo com crédito fiscal) e pedidos de restituição e ressarcimento de valores pagos a mais pelas empresas.
“O volume de processos relacionados à compensação e restituição é grande e muito representativo para os contribuintes”, diz o advogado Julio Janolio, sócio do escritório Vinhas & Redeschi. Praticamente todas as grandes empresas, afirma, discutem créditos de PIS e Cofins, por exemplo, e relacionados a Imposto de Renda e CSLL.
São dezenas de decisões já proferidas no Carf com a interpretação restritiva dada à nova lei. Uma clínica médica que discutia o pagamento de Imposto de Renda por meio de compensação está entre os contribuintes que tiveram processo decidido por do voto de qualidade n a 1ª Turma da 2ª Câmara da 1ª Seção (processo nº 10580.902216/2008-47). Já na Câmara Superior, uma distribuidora de combustíveis com discussão semelhante foi afetada (processo nº 10580.911430/2009-75).
“Esses julgados foram limitando o escopo da norma. Então hoje, no Carf, temos um cenário em que as decisões têm dois critérios de desempate, o do voto de qualidade, previsto no Decreto nº 70.235, e o que favorece os contribuintes pelo 19- E da Lei 10.522”, diz a advogada Diana Piatti Lobo, do escritório Machado Meyer.
A Portaria nº 260, publicada pelo Ministério da Economia, teria sido uma resposta à consulta feita pelo Carf. A norma referenda o entendimento de que o voto de qualidade só deixou de ser aplicado aos processos decorrentes de autos de infração. Diz ainda que a nova lei cabe apenas para julgamentos realizados a partir de 14 de abril, a data de publicação do artigo 19-E.
E vai além. Segundo consta na portaria, o voto de qualidade continua valendo para os julgamentos que envolverem o responsável solidário – o diretor da empresa, por exemplo.
Se houver empate no julgamento do auto de infração que foi aplicado à empresa, vale a nova lei, de acordo com o Ministério da Economia. Ou seja, o voto de qualidade é afastado e o contribuinte vencerá a disputa. A cobrança, nesta hipótese, deixará de existir tanto para a companhia como para o responsável solidário.
Mas se o auto de infração contra a empresa for mantido pela turma por maioria de votos ou unanimidade e houver um empate entre os julgadores sobre a responsabilização do sócio, a nova lei não será aplicada. Valerá a regra antiga, portanto, em relação ao responsável solidário pelo tributo.
“O Ministério da Economia está fazendo uma interpretação restritiva porque a nova lei fala em contribuinte apenas. Só que essa palavra, contribuinte, não é um rigor técnico. É só uma expressão equivalente a sujeito passivo. A portaria, ao meu ver, está impondo uma restrição que a lei não previu”, diz Leandro Cabral, sócio do Velloza Advogados.
A Portaria nº 260 está sendo fortemente criticada pelos advogados dos contribuintes. “É grave. Limita a lei”, afirma Tiago Conde, sócio do escritório Sacha Calmon. Para ele, o artigo 19-E não depende de regulamentação para ser aplicado.
“O teor da normativa é claro. Quando o legislador quer a regulamentação, ele coloca uma vírgula no texto e fala que será regulamentada”, acrescenta o advogado, afirmando que a questão provavelmente terá que ser tratada no Judiciário. O Ministério da Economia, por meio de nota, afirma que o artigo 19-E “gerava inúmeros questionamentos e, portanto, fazia-se necessário uma regulamentação”.
“A portaria representa a interpretação que o órgão de consultoria jurídica do Ministério da Economia confere ao dispositivo legal”, diz.
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) concorda. Moisés de Sousa Carvalho Pereira, que coordena a atuação do órgão no Carf, afirma que a redação do 19-E “não é de aplicação tão óbvia” e que havia necessidade de regulamentação, especialmente por existir dúvidas entre os conselheiros.
Ele entende que o artigo 19-E criou uma exceção para a aplicação do voto de qualidade. Não revogou expressa ou tacitamente. “Trata de uma categoria de processos. Se o legislador quisesse revogar, teria dito ou, mais simples, teria revogado o dispositivo que estabelece o voto de qualidade. Mas não, manteve o artigo e criou uma regra para usar de forma alternativa. O artigo 19-E contempla os processos mais relevantes do Carf e isso está mantido na portaria.”
O raciocínio é o mesmo, ele diz, sobre a exclusão do responsável solidário da norma. O 19-E fala em contribuinte e não sujeito passivo. “A lei tributária, sempre que quer atingir os dois, usa a expressão sujeito passivo. O que é publicado em lei tem que ser interpretado tecnicamente.”
FONTE: Valor Econômico – Por Joice Bacelo — De Brasília – 6 de julho de 2020