A nova redação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), em vigor desde abril deste ano, tem provocado uma sequência de debates no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Está em debate o alcance da norma: para empresas, a nova regra faria com que o tribunal fosse obrigado a julgar casos de acordo com a jurisprudência à época da operação realizada, o que garantiria vitórias, por exemplo, em processos que tratam da amortização de ágio.
O ponto central da discórdia é o artigo 24. O texto determina a revisão “nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época”.
Desde então, é possível comparar o efeito da nova redação – dada pela Lei nº 13.655/2018 – no Carf a uma moeda: advogados tributaristas enxergam no novo artigo 24 a cara, com seu valor de face e uma interpretação que poderia dar novo entendimento a importantes casos em análise pelo tribunal administrativo.
Já parte considerável dos conselheiros do tribunal administrativo, em sua maioria representando a Fazenda Nacional, enxergam uma coroa totalmente distinta, reiterando que o novo texto não se aplica ao processo administrativo, servindo apenas em questões envolvendo os gestores de órgãos públicos. Em três meses, já houve decisões que buscaram atender os contribuintes, enquanto a 2ª Câmara Superior, última instância do tribunal, já deliberou em junho que a Lei não tem efeitos práticos em processos ali apreciados.
Por isso a opinião de Floriano de Azevedo Marques é relevante ao debate. Como um dos redatores do anteprojeto, o diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Manesco, Ramirez, Perezz Azvedo Marques Sociedade de Advogados é um dos responsáveis pela cunhagem desta “moeda” que, ele explica, começou a ser discutida no segundo mandato do ex-presidente Lula, mas só foi promulgada durante o governo de Michel Temer.
Quando perguntado pelo JOTA sobre a posição do Carf de não aplicar o dispositivo da LINDB, Azevedo Marques definiu o entendimento como “a coisa mais despropositada que já ouviu em relação à Lei”.
Para empresas autuadas em operações de ágio, para usar o exemplo mais recorrente, há a comum justificativa de que tais operações, analisadas pelo tribunal hoje, foram feitas se baseando em uma jurisprudência que assim permitia aos contribuintes se posicionar – segundo advogados que costumam defender tais causas no Carf, o entendimento começou a se inverter em 2015, após a Operação Zelotes.
Com isso, a nova redação do artigo, ordenando a aplicação da jurisprudência à época que os fatos ocorreram, pode salvar um grupo significativo de empresas do pagamento de cobranças bilionárias, algumas bastante sensíveis em seus balanços.
E, segundo Floriano, deve-se esperar que o debate cresça – saindo da esfera administrativa e alcançando outros setores. “Se alguém achar que existe algum órgão que é imune à aplicação das Leis de Introdução”, ponderou, “este alguém está dizendo que algum órgão está imune à aplicação das regras do Direito”.
Abaixo, trechos da entrevista:
Como foi o processo de gestação desta nova redação da LINDB?
Ela começa mais ou menos em 2008, 2009, quando eu e o Carlos Ari [Sundfeld, professor da FGV Direito em São Paulo] começamos a refletir sobre alguns problemas da administração pública. Depois, uns três anos depois, fomos nomeados para integrar uma comissão, constituída pela Presidência da República, para revisitar o Decreto-Lei nº 200, de 1967. Este trabalho se desenvolveu ao longo de 2009, 2010 e, havendo uma proposta de revisão do Decreto-Lei, nos apercebemos que, além da necessidade de atualizar as regras sobre a administração pública, havia também uma defasagem da forma como o Direito e a aplicação do Direito enfrentavam o desafio do Direito Público.
A comissão concluiu seu trabalho, o projeto não foi enviado ao Congresso, mas continuamos a discutir sobre realidades e percepções que se revelavam mais presentes no debate contemporâneo. Basicamente, de um lado, os testes de parâmetro da aplicação do Direito muito centrado nos Direitos Privado e Civil, num mundo em que o Direito Público ganhou uma importância brutal.
De outro lado, a preocupação com fatos circunstanciais: primeiro que as normas do Direito Público não são mais aplicadas só pelo Judiciário, mas sim por uma complexa rede de órgãos que têm competência para aplicar o Direito Público e poderem dar decisões vinculantes – e aí falamos em tribunais administrativos, tribunais de contas, Ministério Público – e o Direito que usamos e aplicamos não é mais o Direito do século XIX, uma norma precisa e minimalista, de conteúdo muito claro, baseado em soluções precisas.
O Direito hoje é um conjunto complexo de normas, para muito além da Lei, e muitas vezes baseadas em conceitos e princípios abstratos, em conteúdos valorativos.
Concluímos que havia uma falha nas normas que disciplinam a aplicação do Direito. Não propriamente o conteúdo do Direito, mas a norma que a disciplina. E passamos a trabalhar com os grandes temas que mereciam o endereçamento legislativo. Entendemos que o ideal era produzir algumas normas para atualizar e complementar a antiga Lei de Introdução ao Código Civil, que já tinha sido rebatizada para Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).
Desse esforço surgiram os 11 artigos que compunham nosso anteprojeto, e que foram submetidos ao senador Anastasia [Antônio Anastasia, do PSDB de Minas Gerais], que é um professor de Direito Administrativo. Ele se convenceu da necessidade e se impressionou com a iniciativa, adotando como patrocinada por ele no âmbito do Senado.
Alguns advogados em tribunais administrativos como o Carf, desde a aprovação da nova redação, pugnam pelo artigo 24 da Lei, considerando que os julgadores levem em consideração a jurisprudência da época. O senhor esperava este tipo de interpretação dentro do processo administrativo fosse utilizado?
Sem dúvida. É exatamente para isso, entre outras coisas, que a LINDB previu esta regra. Dentro do contexto e da redação da própria Lei, há de se notar que ela faz deferência às esferas judiciária, administrativa e controladora.
A expectativa de que isto fosse entregue, no âmbito do processo administrativo, fazia parte inclusive do objetivo da Lei. Talvez eu não tivesse avaliado de maneira anterior que esta discussão de aplicação da LINDB, que surgirá em vários cantos, fosse ser tão fortemente impulsionada justamente no âmbito, que é onde há a notícia de que as discussões estão mais avançadas.
Mas isso, se eu tivesse refletido, era algo de se esperar. Primeiro porque o âmbito tributário tem um tribunal administrativo muito atuante e, em segundo lugar, porque os tributaristas são grandes estudiosos da Lei.
O Carf já negou acolher a aplicação da Lei, entendendo que a redação seria válida apenas para a administração pública, e não aos processos. Como o senhor analisa este entendimento? O artigo 24 vale para o Carf?
Este entendimento [do Carf] é a coisa mais despropositada que eu já ouvi em relação à Lei. Te digo o porquê: se não se aplica ali, ele se aplica onde? O Carf é um tribunal administrativo. Se essa norma se aplica ao processo administrativo, porque a imunidade?
Salvo engano, o tribunal administrativo não é um órgão estranho à aplicação mandatória da Lei
Ou ele é uma instância administrativa, ou jurisdicional, ou controladora de contas. Não existe possibilidade constitucional de situar o Carf fora disso. A esfera em que ele atua é esta.
E há outro ponto: a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro trata da aplicação da norma por todo o órgão que o faça no exercício de competência estatal. Me surpreende que este argumento tenha sido utilizado para gerar uma imunidade à Lei de Introdução – ou por acaso o Carf não utiliza a regra da Lei de Introdução sobre a vigência? Aplicar a LINDB na contratação ou exoneração de servidor público? Esta é uma interpretação contra legis.
Para o senhor, esse artigo 24 pode ser utilizada em outros tribunais judiciais ou administrativos?
Novamente: a LINDB é aplicada, diariamente, pelo juiz. Se alguém achar que existe algum órgão que é imune à aplicação das Leis de Introdução, este alguém está dizendo que algum órgão está imune à aplicação das regras do Direito. Efetivamente, não consigo ver lastro constitucional para se defender isto.
Fonte: Jota-06/08/2018
GUILHERME MENDES – Repórter de Tributário