No que se refere ao contencioso administrativo tributário no âmbito do Estado de São Paulo, temos que no julgamento é vedado afastar a aplicação de lei sob alegação de inconstitucionalidade, ressalvadas as hipóteses em que a inconstitucionalidade tenha sido proclamada (i) em ação direta de inconstitucionalidade; (ii) por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, em via incidental, desde que o Senado Federal tenha suspendido a execução do ato normativo e (iii) em enunciado de Súmula Vinculante (art. 28 da Lei nº 13.457, de 2009).
Assim, com exceção dessas hipóteses expressamente previstas em lei (lembrando que a competência dos órgãos administrativos de julgamento de litígios tributários decorre de lei), não há a obrigatoriedade de o julgador administrativo paulista seguir o posicionamento exarado pelos tribunais superiores, como aquelas proferidas pelo STF e pelo STJ, respectivamente, em sede de repercussão geral e pela sistemática dos recursos repetitivos.
Em vista dessa “peculiaridade” da legislação paulista, muitas vezes o julgador administrativo decide determinada matéria contrariamente ao posicionamento dominante dos tribunais superiores, sob o fundamento de que inexiste autorização legal que o obrigue a observar referida jurisprudência. Muitas das autuações fiscais mantidas, inclusive, versam sobre questões que a própria Procuradoria Geral do Estado de São Paulo não mais recorre, nos termos das Orientações Normativas Sub G-CTF nº 1[1] e nº 2[2] de 1 de julho de 2016 (em especial acerca dessa última).
Esse procedimento do julgador administrativo paulista é passível de severas críticas, visto que a não observância de uma decisão proferida pelos tribunais superiores em matérias já pacificadas, contraria, dentre outros, os princípios constitucionais da segurança jurídica, legalidade, moralidade e eficiência, além de contrariar também o espírito do novo CPC, aplicável ao processo administrativo tributário de forma subsidiária, que procura privilegiar a observância de precedentes jurisprudenciais vinculantes. Trata-se, ademais, de procedimento a ser evitado, sob pena de onerar o Erário em caso de demanda judicial acerca do tema, a qual, fatalmente, condenará a Fazenda em honorários de sucumbência.
Felizmente, em dois precedentes recentes, a Câmara Superior do TIT decidiu de acordo com a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, atuando, nesse mister, de modo a reduzir a litigiosidade existente em nosso sistema jurídico tributário.
No AIIM nº 4.060.786-0, publicado em 30.07.p.p., discutia-se a extensão da imunidade do art. 150, VI, “c” e § 4º da CF/88[3], na hipótese de importação de equipamentos médicos por entidade beneficente de assistência social sem fins lucrativos.
A decisão “a quo” havia cancelado a autuação fiscal e foi prestigiada pela Câmara Superior, a qual concluiu ser possível a aplicação da imunidade constitucional do artigo 150, VI, “c” e § 4º da CF/88 ao ICMS e às operações de importação.
A primeira questão analisada era se o ICMS poderia ser abarcado pela imunidade prevista no artigo 150, inciso VI, alínea “c” e § 4º, da Constituição Federal de 1988. Sustentou o Fisco, em seu recurso especial, que essa imunidade só seria aplicável aos impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços, e não para a importação de mercadorias ou bens, entendendo que essa operação por ser espécie de circulação de mercadorias (desembaraço aduaneiro de mercadoria/bens importados do exterior) não estaria abrangida pela imunidade constitucional.
Nesta interpretação mais restritiva, não haveria possibilidade de albergar o ICMS, pois este não é um imposto que incide juridicamente sobre o patrimônio (v.g., IPVA, IPTU, ITR), nem sobre a renda (v.g., IR); nem sobre os serviços (v.g., ISS).
Além disso, foram analisados se, no caso concreto, os requisitos para a fruição desta imunidade estariam preenchidos. Concluiu-se que todos os requisitos da CF/88 e do CTN foram observados: (i) ser entidade de assistência social; (ii) sem fins lucrativos; (iii) atendimento ao disposto nos incisos I a III do artigo 14 do CTN; e iv) que o patrimônio, a renda ou os serviços devam estar relacionados com as suas finalidades essenciais.
A Câmara Superior, assim, prestigiou uma interpretação teleológica do dispositivo constitucional, em relação a vedação de instituição de impostos sobre “patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades”. Foi aduzido que
“No caso, o legislador constitucional, ao falar de impostos sobre “patrimônio, a renda e os serviços”, adotou uma classificação econômica destes tributos, uma vez que o objetivo e finalidade da norma de imunidade é proteger o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com as finalidades essenciais da entidade de assistência social. Assim, quando a norma de imunidade fala em impossibilidade de instituição de imposto sobre o patrimônio relacionado com a atividade da entidade, no caso concreto, temos que reconhecer que a eventual e equivocada incidência do ICMS (seja na importação ou em uma aquisição interna) relativo a uma compra de ativo imobilizado utilizado na atividade da entidade de assistência social gravaria diretamente seu patrimônio. Nesse sentido, trazemos lições basilares da própria contabilidade, uma vez que na situação em que uma entidade não-contribuinte do ICMS adquire um ativo imobilizado as normas contábeis apontam para a necessidade de inclusão do valor do ICMS (tributo no caso, não-recuperável) no valor de contabilização do custo do próprio ativo imobilizado – que posteriormente comporá o custo da entidade através do mecanismo contábil da depreciação do bem do ativo imobilizado. Nesse sentido colacionamos o item 16 do Pronunciamento Contábil CPC nº 27: 16. O custo de um item do ativo imobilizado compreende: (a) seu preço de aquisição, acrescido de impostos de importação e impostos não recuperáveis sobre a compra, depois de deduzidos os descontos comerciais e abatimentos; Portanto, é evidente que a aquisição (seja no mercado nacional ou internacional) de ativo imobilizado utilizado na atividade essencial da entidade beneficente grava o patrimônio da entidade, de modo que a incidência do ICMS (como quer o auto de infração) por entidade não-contribuinte do imposto acabaria por gravar o patrimônio da entidade. Ou seja, aumentaria o custo de aquisição deste ativo imobilizado utilizada em atividade essencial pela entidade. Dessa forma, tendo em vista a melhor interpretação teleológica do dispositivo constitucional, há de se reconhecer a impossibilidade desta incidência por conta da vedação constitucional”.
Ademais, quanto à imunidade reconhecida em favor das entidades assistenciais com relação ao ICMS nas operações de importação, inúmeros são os precedentes do STF que confirmam essa orientação:
“TRIBUTÁRIO – IMUNIDADE – ICMS – ENTIDADE DE ASSISTÊNCIA SOCIAL – IMPORTAÇÃO. É imune de Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços a importação, por entidade de assistência social, de bens destinados à consecução da finalidade essencial. Precedente: recurso extraordinário nº 608.872, relatado no Pleno pelo ministro Dias Toffoli, acórdão publicado no Diário da Justiça de 10 de abril de 2013” (AI 621828 AgR, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 25/06/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-171 DIVULG 06-08-2019 PUBLIC 07-08-2019).
“DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. ICMS. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA. ENTIDADE SEM FINS LUCRATIVOS. IMPORTAÇÃO DE EQUIPAMENTOS MÉDICOS. CONSONÂNCIA DA DECISÃO RECORRIDA COM A JURISPRUDÊNCIA CRISTALIZADA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO QUE NÃO MERECE TRÂNSITO. RECURSO MANEJADO SOB A VIGÊNCIA DO CPC/1973. 1. O entendimento da Corte de origem, nos moldes do assinalado na decisão agravada, não diverge da jurisprudência firmada no Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a imunidade insculpida no art. 150, VI, “c”, da Constituição Federal se aplica ao ICMS. 2. As razões do agravo regimental não se mostram aptas a infirmar os fundamentos que lastrearam a decisão agravada. 3. Agravo regimental conhecido e não provido” (RE 596.885 AgR-terceiro, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, DJe de 28/9/2016).
O outro caso analisado pela Câmara Superior do TIT, foi o AIIM nº 4.026.032-0, publicado em 07.08.p.p., que trata de autuação fiscal decorrente de operações de remessa e retorno de mercadorias a destinatário considerado inidôneo (empresa com inscrição estadual considerada inativa e inexistente pelo Fisco desde a data de sua abertura). A empresa autuada foi considerada solidária pelo pagamento do imposto não recolhido pela remetente das mercadorias, além de ter sido acusada de ter emitido documentos fiscais a empresa inativa e inexistente (o que configuraria declaração falsa).
A decisão “a quo” havia cancelado a autuação fiscal aplicando o entendimento do STJ[4], sobre a tese do contribuinte de boa-fé, mediante análise das provas carreadas pelo contribuinte aos autos.
O recurso especial da Fazenda alegou que a aplicação da tese da boa-fé deveria ocorrer exclusivamente nos casos de crédito indevido.
A Câmara Superior, entretanto, entendeu aplicável a tese da boa-fé aos casos de recebimento de mercadoria desacompanhada de documentação fiscal em razão da decretação de inidoneidade do remetente.
Nos termos do AIIM nº 4.010.225-7, citado como reforço ao posicionamento do caso concreto ora analisado, concluiu-se que “a infração por recebimento de mercadoria é muito semelhante ao do crédito indevido. Além do mais, a jurisprudência do TIT pacificou o entendimento de que é possível reconhecer a boa-fé do contribuinte, conforme Súmula 509 do STJ para esta espécie de infração, até porque, nas infrações de crédito indevido também há o recebimento de mercadorias emitidas por empresa inidônea”.
Percebe-se, assim, dois exemplos de julgados administrativos[5] que privilegiaram a jurisprudência do STF e do STJ sobre diferentes assuntos, sendo que o resultado é a racionalização do nosso sistema jurídico, ao evitar demandas judiciais despiciendas e cujo resultado já se conhece.
Esse comportamento da Câmara Superior do TIT na observância da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, mesmo em hipóteses não previstas no art. 28 da Lei nº 13.457, de 2009, é bastante louvável, visto que só assim ela estará atuando na função estatal de pacificar litígios, conferindo segurança e isonomia a todos os jurisdicionados[6].
[1] Orientação Normativa SubG-CTF n° 01, de 1º de julho de 2016: autoriza a não interposição de recursos em face de decisão judicial que afasta a aplicação dos juros previstos na Lei 13.918/09, limitando-os à SELIC.
[2] Orientação Normativa SubG-CTF n° 02, 1º de julho de 2016: autoriza a não interposição de recursos em face de decisão que reconhece a não incidência do ICMS sobre o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte, mesmo na hipótese de serem estabelecimentos localizados em diferentes estados da federação.
[3] “CF/88-Art.150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(…)
VI – instituir impostos sobre:
(…)
- c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; (…)
- 4º – As vedações no inciso VI, alíneas “b” e “c”, compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas”.
[4] “PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. TRIBUTÁRIO. CRÉDITOS DE ICMS. APROVEITAMENTO (PRINCÍPIO DA NÃO-CUMULATIVIDADE). NOTAS FISCAIS POSTERIORMENTE DECLARADAS INIDÔNEAS. ADQUIRENTE DE BOA-FÉ.
- O comerciante de boa-fé que adquire mercadoria, cuja nota fiscal (emitida pela empresa vendedora) posteriormente seja declarada inidônea, pode engendrar o aproveitamento do crédito do ICMS pelo princípio da não-cumulatividade, uma vez demonstrada a veracidade da compra e venda efetuada, porquanto o ato declaratório da inidoneidade somente produz efeitos a partir de sua publicação (…)
- A responsabilidade do adquirente de boa-fé reside na exigência, no momento da celebração do negócio jurídico, da documentação pertinente à assunção da regularidade do alienante, cuja verificação de idoneidade incumbe ao Fisco, razão pela qual não incide, à espécie, o artigo 136, do CTN, segundo o qual “salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato” (norma aplicável, in casu, ao alienante).
(…)”
(REsp 1148444/MG, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 14/04/2010, DJe 27/04/2010).
Súmula 509 do STJ: “É lícito ao comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda”.
[5] Não se tem notícia, até o momento da confecção desse texto, que os processos administrativos analisados estejam formalmente encerrados. Eventual recurso da Fazenda, entretanto, só é cabível na hipótese de haver erro de fato no julgado.
[6] Outra alternativa para acabar (ou, ao menos, minimizar essa situação) seria a alteração na legislação paulista, de modo a abarcar hipóteses mais abrangentes, como no âmbito de CARF, cujo regulamento interno determina que “as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional, na sistemática dos arts. 543-B e 543-C da Lei nº 5.869, de 1973, ou dos arts. 1.036 a 1.041 da Lei nº 13.105, de 2015 – Código de Processo Civil, deverão ser reproduzidas pelos conselheiros no julgamento dos recursos no âmbito do CARF” (§ 2º do art. 62 do atual Regimento Interno do CARF, aprovado pela Portaria MF nº 343, de 09 de junho de 2015).
Por Luiz Carlos Fróes Del Fiorentino
Luiz Carlos Fróes Del Fiorentino é formado em Direito e Administração; cursou especialização em Direito Tributário no Instituto Brasileiro de Direito Tributário/Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET); mestre em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP); e advogado do escritório Dias de Souza Advogados Associados em São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 15 de setembro de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-set-15/opiniao-camara-superior-tit-segue-tribunais-superiores