O direito marítimo é um ramo específico e complexo, regulado por normas internas – de caráter público e privado – de diferentes épocas e hierarquias (leis, decretos, portarias, regulamentos), além de acordos e convenções internacionais. Uma de suas principais fontes é o Código Comercial, promulgado em 25 de junho de 1850, o qual, em sua segunda parte, versa sobre o comércio marítimo.
A gama de assuntos tratados nesse ramo jurídico é vasta e será tema do VIII Congresso Nacional de Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro, que acontece nos dias 3 e 4 de outubro no auditório do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O evento tem o objetivo de fomentar a discussão sobre os principais temas relacionados ao transporte marítimo e à sua regulação.
Realizado desde 2012, o congresso tem programação extensa e contará com a participação de ministros do STJ, autoridades do Executivo, representantes da advocacia e da iniciativa privada.
Por envolver um conjunto esparso de normas, frequentemente com implicações em questões de direito portuário e aduaneiro, as demandas sobre direito marítimo que chegam ao Judiciário, e ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), são muitas vezes complexas e exigem grande esforço de interpretação dos magistrados.
Preço de praticagem
Em 2017, a Segunda Turma decidiu que a autoridade marítima brasileira não pode fixar valores máximos, em caráter permanente, para os preços do serviço de praticagem prestado nas zonas portuárias. Na ocasião, o colegiado ressaltou que o poder público pode intervir na atividade para garantir a sua continuidade no caso de interrupção do regular andamento do serviço.
O entendimento foi definido no julgamento do REsp 1.662.196, interposto pelo Sindicato dos Práticos dos Portos e Terminais Marítimos do Paraná, que questionava a possibilidade de fixação de preços máximos pela Comissão Nacional para Assuntos de Praticagem, conforme previsto no Decreto 7.860/2012.
Segundo o ministro relator, Og Fernandes, o serviço de praticagem, regulado pela Lei 9.537/1997, é de natureza privada, confiado ao particular que preencher os requisitos estabelecidos pela autoridade pública para sua seleção e habilitação, sendo entregue à livre iniciativa e concorrência.
No artigo 12, o serviço é definido como o conjunto de atividades profissionais de assessoria ao comandante requeridas por força de peculiaridades locais que dificultem a livre e segura movimentação da embarcação.
O relator explicou que, posteriormente à lei, foi editado o Decreto 2.596/1998 para tratar da segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional, bem como para regulamentar a questão dos preços da praticagem, ressaltando o caráter excepcional da intervenção da autoridade marítima para os casos em que fosse ameaçada a continuidade do serviço.
Em 2012, lembrou Og Fernandes, o Decreto 7.860/2012 criou nova hipótese de intervenção na formação dos preços, agora de forma permanente e ordinária. Para o relator, no entanto, a interpretação sistemática dos dispositivos da lei “só pode conduzir à conclusão de que apenas na excepcionalidade é dada à autoridade marítima a interferência na fixação dos preços dos serviços de praticagem, para que não cesse ou se interrompa o regular andamento das atividades, como bem definiu a lei”.
O ministro observou que a doutrina e a jurisprudência estão firmadas no sentido de que a interferência do Estado na formação do preço somente pode ser admitida em situações excepcionais de total desordem de um setor de mercado e por prazo limitado, sob o risco de contrariar o modelo concebido pela Constituição de 1988.
“É inconcebível, no modelo constitucional brasileiro, a intervenção do Estado no controle de preços de forma permanente, como política pública ordinária, em atividade manifestamente entregue à livre iniciativa e concorrência, ainda que definida como essencial”, ressaltou.
Crime em navio
Em 2015, a Terceira Seção entendeu que a Justiça Federal é competente para processar e julgar crime cometido a bordo de navio ancorado em um porto brasileiro. O CC 118.503 foi suscitado pelo juízo de Paranaguá (PR) após o juízo federal declinar da competência para apurar a suposta prática do crime de desenvolvimento clandestino de atividades de telecomunicação no interior da embarcação, ao argumento de que não configuraria lesão a bens e serviços de interesse da União.
O relator do conflito, ministro Rogerio Schietti Cruz, explicou que o artigo 109, IX, da Constituição Federal aponta expressamente a competência da Justiça Federal para processar e julgar os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar.
“Em razão da imprecisão do termo ‘navio’, utilizado no referido dispositivo constitucional, a doutrina e a jurisprudência construíram o entendimento de que ‘navio’ seria embarcação de grande porte – embarcação seria gênero, do qual navio, uma de suas espécies –, o que evidentemente excluiria a competência para processar e julgar crimes cometidos a bordo de outros tipos de embarcações, isto é, aqueles que não tivessem tamanho e autonomia consideráveis que pudessem ser deslocados para águas internacionais”, disse.
No entanto, o relator lembrou precedente do STJ no sentido de que é preciso considerar também, para a configuração da competência federal, que a embarcação deve se encontrar em situação de deslocamento internacional ou, ao menos, em situação de potencial deslocamento.
Schietti observou que a interpretação jurisprudencial é a de que a embarcação deve estar apta a realizar viagens internacionais – o que se verificou na hipótese em análise. De acordo com ele, os tripulantes que se beneficiavam da utilização de centrais telefônicas clandestinas pertenciam à embarcação em trânsito no Porto de Paranaguá, o que caracteriza situação de potencial deslocamento e, portanto, configura a competência federal para o caso.
Prescrição de cobrança
No julgamento do REsp 1.340.041, a Segunda Seção definiu que o prazo prescricional para o ajuizamento de ações de cobrança por sobre-estadia de contêineres (demurrage) no transporte de cargas unimodal é de cinco anos – quando há prévia estipulação contratual da cobrança –, ou de dez anos – quando não há essa previsão.
O recurso teve origem em ação de cobrança de uma companhia de navegação contra uma fabricante de fertilizantes para receber valores relativos a despesas de sobre-estadia de contêineres. A companhia de navegação celebrou contrato de transporte marítimo com a fabricante, no qual foi estabelecido prazo de 10 dias para a devolução dos contêineres após desembarque no porto de destino, com aplicação de multa em caso de descumprimento do prazo – o que ocorreu na hipótese.
Para o juízo de primeiro grau, a pretensão de cobrança estaria prescrita, conforme a regra do artigo 449, inciso 3, do Código Comercial, que prevê o prazo de um ano para o ajuizamento da ação. Contudo, o Tribunal de Justiça de São Paulo deu provimento à apelação da companhia, ao entendimento de que o prazo de um ano se referiria apenas aos casos de transporte multimodal de cargas.
Segundo o relator do recurso interposto pela fábrica de fertilizantes, ministro Villas Bôas Cueva, o advento do Código Civil de 2002 é marco temporal de significativa importância para a questão porque, até então, prevalecia na jurisprudência a orientação de que a devolução tardia da unidade de carga (contêiner) se equiparava à sobre-estadia do navio, aplicando-se, assim, o mesmo prazo prescricional de um ano, previsto no artigo 449, 3, do Código Comercial.
O ministro explicou que o artigo 449 do Código Comercial foi revogado expressamente pelo Código Civil de 2002 (artigo 2.045), o que ensejou a necessidade de reexame da legislação vigente para definir o prazo prescricional a ser aplicado em casos como o da hipótese. Segundo ele, no transporte multimodal aplica-se o prazo de um ano, previsto no artigo 22 da Lei 9.611/1998, que trata especificamente desse tipo de transporte.
Para o ministro, ainda que haja similaridades nas atividades desempenhadas entre os tipos de transporte, é incabível a aplicação por analogia do artigo 22 da Lei 9.611/1998 no caso do unimodal, uma vez que o ordenamento jurídico não admite a interpretação analógica ou extensiva em regras sobre prazos prescricionais.
Responsabilidade restrita
O relator ressaltou que, no caso do transporte unimodal (marítimo), a responsabilidade do transportador é restrita ao percurso marítimo, que se inicia após o recebimento da carga a bordo do navio no porto de origem, cessando imediatamente após o içamento das cargas e o consequente desembarque no porto de destino.
Villas Bôas Cueva explicou que os demais serviços e atos correlatos são de responsabilidade do afretador, o que pode resultar no atraso da devolução dos contêineres utilizados no transporte da carga ao transportador – situação que não ocorre no transporte multimodal, cuja carga, em nenhum momento, deixa de estar sob a posse e o controle do operador de transporte.
“Assim, em se tratando de transporte unimodal de cargas, quando a taxa de sobre-estadia objeto da cobrança for oriunda de disposição contratual que estabeleça os dados e os critérios necessários ao cálculo dos valores devidos a título de ressarcimento pelos prejuízos causados em virtude do retorno tardio do contêiner, será quinquenal o prazo prescricional. Caso contrário, ou seja, nas hipóteses em que inexistente prévia estipulação contratual, aplica-se a regra geral do artigo 205 do Código Civil, ocorrendo a prescrição em 10 anos”, concluiu o relator.
Visto em cabotagem
Em outubro de 2010, no RESp 1.173.220, a Segunda Turma do STJ entendeu que cabe exclusivamente à empresa transportadora estrangeira que realiza a navegação de cabotagem obter o visto da respectiva tripulação, não podendo a empresa brasileira que contrata esse serviço ser responsabilizada pela ausência do documento.
Na ocasião, o colegiado analisou recurso interposto pela Fazenda Nacional contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), que deu provimento à apelação da Petrobras para afastar multa imposta à empresa pelo Departamento de Polícia Marítima, Aeroportuária e de Fronteira, em virtude da presença de estrangeiros sem o devido visto temporário em embarcação internacional a serviço da companhia.
Ao fundamentar o voto, o TRF1 apontou que a Convenção 108 da Organização Internacional do Trabalho admite a entrada em território nacional de qualquer marítimo portador de carteira de identidade de marítimos válida. Consignou, ainda, que a Lei 9.432/1997 não estabelece a necessidade de visto temporário para os tripulantes estrangeiros, além de ser vedado à administração, por força do artigo 37 da Constituição, restringir direitos sem autorização legal. A Fazenda Nacional alegou que o acórdão violou os artigos 11, 13, V, e 125, VII, da Lei 6.815/1980.
Previsão legal
O relator do caso, ministro Humberto Martins, destacou em seu voto que o enquadramento legal da infração alegado pela Fazenda Nacional está em desconformidade com o conteúdo do artigo 11 da Lei 6.815/1980, já que o dispositivo prevê que a empresa transportadora deverá providenciar, ainda no exterior, o visto do estrangeiro que ingressará no país, e, no processo, a Petrobras não agiu como empresa transportadora.
“A recorrida, por sua vez, segundo se colhe do acórdão recorrido, não constitui ‘empresa transportadora’. Ela contratou algumas empresas transportadoras para realizar a navegação de cabotagem para transporte de petróleo e derivados.”
O magistrado ressaltou também que o ato administrativo que impôs a pena de multa é nulo, visto que não há amparo legal na autuação.
Segundo Humberto Martins, ainda que se admitisse a corresponsabilidade entre a Petrobras e as empresas estrangeiras contratadas para a navegação de cabotagem, isso deveria ser expressamente previsto em lei e invocado para a aplicação da multa.
Hipoteca marítima
No REsp 1.705.222, o STJ reconheceu a eficácia da hipoteca de um navio-plataforma registrado na Libéria. A embarcação, pertencente a uma empresa holandesa, corria o risco de ser vendida por meio de hasta pública para quitar dívida de mais de 27 milhões de dólares junto a um banco. No entanto, a Quarta Turma do STJ admitiu a validade da hipoteca dada em favor de uma companhia norueguesa, com base em acordos internacionais assinados pelo Brasil, e concluiu que a hasta pública não poderia ser realizada.
O pedido de reconhecimento da hipoteca pela empresa norueguesa havia sido negado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), sob a fundamentação de que Libéria não era signatária dos tratados e das convenções internacionais a esse respeito a que o Brasil havia aderido – logo, não se poderia verificar a existência de costume internacional nesse sentido.
Ao STJ, a corporação alegou que o navio se enquadrava na definição de bem móvel, conforme o artigo 8º, I, da Lei de Introdução à Normas do Direito Brasileiro, para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes – sendo, portanto, correta a aplicação da lei holandesa, país de domicílio tanto do proprietário quanto de seus bens móveis.
Asseverou ainda que o Brasil é signatário do Código Bustamante, da Convenção de Bruxelas e da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, sendo que tais tratados reconhecem a validade e a eficácia de hipotecas marítimas outorgadas sobre embarcações estrangeiras.
Tradição
O relator do recurso, ministro Luis Felipe Salomão, explicou em seu voto que o direito brasileiro e as legislações estrangeiras admitem, por tradição, os casos de hipoteca envolvendo embarcações de grande porte em razão do vulto dos financiamentos necessários para sua construção e manutenção.
De acordo com o relator, a hipoteca, nesse caso, é válida por causa dos tratados internacionais que têm adesão do Brasil, mesmo que não apresentem a assinatura de outros países.
“Não bastasse a clareza do artigo 278 do Código Bustamante, o artigo 1º da Convenção de Bruxelas, na mesma linha, também estabelece que as hipotecas sobre navios regularmente estabelecidas segundo as leis do Estado contratante a cuja jurisdição o navio pertencer, e inscritas em um registro público, tanto pertencente à jurisdição do porto de registro, como de um ofício central, serão consideradas válidas e acatadas em todos os outros países contratantes”, concluiu o relator.
Drawback
Outro importante marco na jurisprudência que afeta o transporte marítimo de mercadorias foi a edição da Súmula 569/STJ, em 2016, pela Primeira Seção. Segundo o enunciado, “na importação, é indevida a exigência de nova certidão negativa de débito no desembaraço aduaneiro, se já apresentada a comprovação da quitação de tributos federais quando da concessão do benefício relativo ao regime de drawback“.
No REsp 1.041.237, o relator do caso, ministro Luiz Fux (hoje no Supremo Tribunal Federal), conceituou a drawback como a operação pela qual a matéria-prima ingressa em território nacional com isenção ou suspensão de impostos, para ser reexportada após sofrer beneficiamento. Destacou também que o artigo 60 da Lei 9.069/1995 exige a certidão na concessão ou no reconhecimento do incentivo, e não em ambos os momentos.
“Ressoa ilícita a exigência de nova certidão negativa de débito no momento do desembaraço aduaneiro da respectiva importação, se a comprovação de quitação de tributos federais já fora apresentada quando da concessão do benefício inerente às operações pelo regime de drawback“, destacou o magistrado.
STJ-29/09/2019