Um caso paradigmático: advogados são como profetas ou vates
No texto anterior, foram postas as seguintes questões: a) que posição ocuparia, no ordenamento jurídico, as normas individuais e concretas editadas pelos juízes e tribunais? b) que tipo de retroatividade (mínima, média, máxima) o desrespeito à coisa julgada implica? c) poderia a ação rescisória flexibilizar a coisa julgada ou a irretroatividade das normas jurídicas, em nome da estabilidade, da coerência e da integridade da jurisprudência (artigo 927 do CPC), bem como em nome da força dos precedentes? Abaixo, tentamos respondê-las a partir de um caso tributário paradigmático.
No dia 7/3/2003, determinada indústria metalúrgica ajuizou, perante a Justiça Federal do Rio Grande do Sul, demanda cuja pretensão era o aproveitamento de créditos do IPI, oriundos da aquisição de insumos NT (material de embalagem, matéria-prima e produtos intermediários), ou seja, isentos, imunes, não tributados ou com alíquota zero.
Na primeira instância, a sentença, proferida no dia 3/10/2003, foi de improcedência. No âmbito do Tribunal de Apelação, no dia 2/3/2004, o caso foi revertido em favor do contribuinte, e o direito ao aproveitamento dos créditos escriturais acima referidos foi acolhido. Houve recurso especial e extraordinário, porém, como não foram admitidos, houve o trânsito em julgado e a baixa do feito para a primeira instância, para cumprimento do julgado. Em razão de agravos interpostos na tentativa de forçar a admissão dos dois recursos de natureza extraordinária não admitidos na origem, a intimação para que o contribuinte requeresse o cumprimento do julgado somente ocorreu em 25/1/2007.
Todavia, o Fisco, não se dando por vencido, no dia 8/2/2007, ajuizou ação rescisória perante o tribunal de apelação, sob o fundamento de ofensa à literal dispositivo legal, nos termos do artigo 485, V, do CPC de 1973. No caso, não somente houve provimento da demanda como houve a concessão de tutela antecipada liminar, para impedir o cumprimento do julgado.
Em sua defesa, o contribuinte argumentou que não seria possível se falar em violação a literal dispositivo de lei, uma vez que a matéria, desde pelo menos 1998, era extremamente controvertida no âmbito da Justiça Federal, tanto de primeiro quanto de segundo grau, sendo controvertida, inclusive no âmbito do próprio STF, de modo que aplicável o entendimento sedimentado no enunciado da Súmula 343 da mencionada corte: “Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”. Não custa lembrar que esse entendimento foi sumulado no dia 13/12/1963. Há mais de 50 anos, portanto.
Não ocasião, o TRF da 4ª Região entendeu que, embora fosse o caso de se reconhecer a controvérsia na interpretação da lei federal tributária em discussão, não seria o caso de se acolher o argumento e aplicar o entendimento consagrado na Súmula 343. A razão do acolhimento é sintomática e bem demonstra a visão do ordenamento jurídico ainda mantida por muitos: “Não se aplica ao caso vertente a orientação contida na Súmula n° 343 do STF, uma vez que está pacificado pela Súmula n° 63 deste Tribunal Regional Federal ser inaplicável aquele enunciado nas ações rescisórias versando matéria constitucional”.
A razão fundamental é a seguinte: se a controvérsia se resolve, no âmbito do STF, no sentido da inconstitucionalidade de determinada lei, a qual, portanto, é expurgada do ordenamento jurídico, toda e qualquer decisão nela fundada, não importa se tornada imutável pela coisa julgada, torna-se carente de fundamento legal, de modo que não pode subsistir.
A tese parece sedutora, porém não é fácil admitir que o expurgo da norma declarada inconstitucional possa infirmar as relações jurídicas estabilizadas a partir de decisão tomada com base nela e transitada em julgado. Ainda mais levando-se em conta o grau de controvérsia a que a matéria estava submetida. Além disso, é importante mencionar que o efeito vinculante, próprio dos recursos repetitivos, entre outros aspectos incorporados pelo controle de constitucionalidade concreto no Brasil, está cada vez mais a aproximar seus efeitos daqueles observados no controle abstrato.
Para se ter uma ideia do grau de controvérsia dessa matéria tributária, o STF, no dia 5/3/1998, nos autos do RE 212.484, entendeu devido o aproveitamento dos créditos nos casos de insumos isentos, ao passo que, no dia 18/12/2003, concluiu pelo aproveitamento nos casos de insumos sujeitos à alíquota zero, bem como insumos não tributados: RE 350.446, RE 353.668 e RE 357.277. Por fim, no dia 25/6/2007, o STF reviu seu posicionamento quanto aos insumos não tributados e sujeitos à alíquota zero. Mesmo diante desse overruling e apesar da proposta apresentada pelo ministro Lewandowski no sentido da modulação dos efeitos dessa mudança paradigmática, esta não foi acolhida. Não é preciso muito esforço para imaginar a quantidade de sentenças e acórdãos em diversos sentidos no espaço destes 10 ou 15 anos em que essa temática foi imensamente discutida perante a Justiça Federal.
Sensível a essa questão, o STF, no dia 23/10/2014, apreciando recurso extraordinário interposto contra a citada ação rescisória julgada pelo TRF da 4ª Região, entendeu que, sim, seria o caso de se aplicar o entendimento há décadas firmado no enunciado da Súmula 343, não importando se a controvérsia envolvia ou não norma constitucional: “Não posso admitir, sob pena de desprezo à garantia constitucional da coisa julgada, a recusa apriorística do mencionado verbete, como se a rescisória pudesse “conformar” os pronunciamentos dos tribunais brasileiros com a jurisprudência de último momento do Supremo, mesmo considerada a interpretação da norma constitucional. […] A verdade é que, diante do quadro decisório revelado até então, o acórdão rescindendo não pode ser visto como a violar a lei, mas como a resultar da interpretação possível segundo manifestações do próprio Plenário do Supremo Tribunal Federal”.
Não sendo assim, selar-se-ia a institucionalização da retroatividade máxima das normas jurídicas no Brasil, ou seja, para atingir situações consolidadas. Vê-se que, por vezes, é preciso que os advogados sejam mesmo bons profetas, e os contribuintes, muito pacientes.
Todavia, essa discussão perante o STF, levada a termo com base no CPC anterior, não foi suficiente para demover o legislador a incluir o já citado artigo 525, parágrafo 15, trazendo novo retrocesso ao tema do (des)respeito à coisa julgada.
O lugar no ordenamento jurídico ocupado pelas normas construídas pelo Poder Judiciário
Na visão tradicional, considerando o ordenamento jurídico como formado apenas pelos textos de lei provenientes do Poder Legislativo, parece bem simples encontrar o lugar de cada norma: a Constituição, as leis infraconstitucionais, previstas no artigo 59 da CR/88, e as normas infralegais, quais sejam, em regra, os atos administrativos normativos.
Entretanto, quando se trata de situar, no plano do ordenamento jurídico, as normas provenientes das decisões judiciais, o critério utilizado é totalmente diferente. Qual seria ele?
Em regra, o critério é o da sujeição, ou seja, quais sujeitos estão obrigatória e legalmente submetidos à norma jurídica produzida na decisão judicial para a resolução do caso. Por sua vez, para encontrar com precisão os parâmetros para a compreensão do âmbito dessa sujeição, necessário o exame dos limites subjetivos e objetivos da coisa julgada, instituto jurídico que torna imutável a norma de decisão, ou seja, a norma individual e concreta. Aqui, importante apenas lembrar que essa norma de decisão também pode ser geral e abstrata, quando oriunda do controle abstrato de constitucionalidade.
A princípio, pela visão tradicional, apenas as partes do processo no qual fora tomada essa decisão estariam a ela submetidas. No máximo, os terceiros por ela afetados, segundo o permissivo legal, como no caso do assistente litisconsorcial (artigo 124 do CPC), por exemplo.
Entretanto, com a nova mudança de mentalidade que hoje o CPC convoca a comunidade jurídica a assumir, especialmente o Poder Judiciário, surge um novo personagem absolutamente submetido às decisões judiciais, ou seja, em grau máximo. Quem seria ele? Ora, não é outro senão o próprio prolator dela: o juiz.
Essa constatação parece elementar, mas ela é tão simples quanto inobservada no Brasil, e por pelo menos três motivos bastante relevantes: a) impera a cultura entre os magistrados em geral no sentido de que o dever do magistrado é aplicar a lei com justiça; disso deriva a ideia de que o juiz não cria a norma que aplica, mas aplica a norma criada pelo legislador; daí também deriva a ideia de que a justiça é a forma como o magistrado corrige ou calibra, no caso concreto, eventuais injustiças do legislador; b) ao aplicar a lei com justiça, o juiz, em verdade, age, construindo a norma de decisão, dentro dos limites legais que entende presentes, impondo sua vontade, pois, por justiça aqui, entenda-se seus padrões éticos e morais, além de suas crenças, valores, afetos e, em casos extremos, também seus interesses; c) o conceito de decisão judicial, para muitos, ainda é baseado apenas na ideia de silogismo lógico, no qual, a partir de premissas fáticas e legais, o juiz chega, por subsunção e mediante o uso da dedução e do emprego de métodos tradicionais de interpretação, a conclusões lógicas e, portanto, necessárias.
Assim, como, por um lado, o juiz, em verdade, (i) cria a norma de decisão e não simplesmente a aplica, e, por outro, é sempre preciso enfatizar, (ii) o conceito de justiça é determinável, porém nunca definível, (iii) a vontade é elemento extremamente variável com pouca ou quase nenhuma possibilidade de padronização, mesmo no âmbito das decisões tomadas pelo mesmo juiz, (iv) e o silogismo somente funciona em casos extremamente simples, há, de forma indiscutível, uma enorme dificuldade de o próprio magistrado ser coerente, estável e íntegro no que diz respeito ao universo de suas decisões, por mais dedicado e bem intencionado que seja.
Dessa forma, a par das conclusões acima, e também da inferência segundo a qual as normas judiciais integram o ordenamento jurídico, quando se transporta essa realidade para o plano dos tribunais de apelação e para os tribunais superiores, cujas decisões possuem, em alguns casos, efeito vinculante e até efeito erga omnes, não é difícil concluir que é acentuado o viés de insegurança jurídica atualmente. Não é difícil encontrar exemplos hodiernos no STF, nos quais o Plenário tem um entendimento, mas seus integrantes, monocraticamente, o ignoram e aplicam o seu próprio, em uma explícita demonstração do irrestrito uso da vontade no exercício da jurisdição, ou seja, na construção da decisão judicial e, pois, da norma jurídica de decisão (ver artigo do professor Conrado Hubner).
Assim, como na atualidade, quadra da história na qual abundam as demandas de massa, com milhares de casos versando sobre o mesmo tema, não é difícil imaginar que um mesmo magistrado que decide centenas delas em um único trimestre, se não tiver a consciência de que é, ele próprio, sujeito às normas criadas por suas decisões, o ordenamento jurídico, além de complexo, apresenta-se caótico, impossível de ser lido pelo cidadão, pelos empreendedores, pelos advogados, por outros juízes e, principalmente, por estrangeiros que desejam entender como funciona legalmente o país.
Em suma, o lugar que as normas produzidas pelo Poder Judiciário ocupam deve seguir o critério da sujeição, de modo que as normas dos juízes singulares sujeitam as partes, eventuais terceiros e o próprio magistrado, enquanto as normas dos tribunais de apelação, se tomadas no âmbito dos incidentes de inconstitucionalidade (artigo 948 do CPC), de assunção de competência (artigo 947 do CPC ) e de resolução de demandas repetitivas (artigo 976 do CPC), submetem o próprio tribunal e, nos dois últimos casos, os juízes de primeiro grau a ele vinculados. Sobretudo, as decisões tomadas no âmbito dos tribunais de apelação sujeitam os juízes do próprio tribunal e, fora dos casos em que submetem os juízes de primeiro grau, nos termos acima, são para estes últimos fortemente recomendáveis ou sugestivas, ou seja, embora não obrigatórias, constituem-se ou criam excelente oportunidade para os juízes de primeiro grau adotarem a postura do stare decisis (valorização do já decidido), de modo que eles, se assim não agirem em tais casos, assumem o ônus da argumentação contrária.
No plano dos tribunais superiores, o grau de sujeição é extenso, em razão do efeito vinculante e do efeito erga omnes, ambos previstos no artigo 28, parágrafo único, da Lei 9.868/99, e artigo 10, parágrafo 3º, da Lei 9.882/99, ambos presentes no controle abstrato de constitucionalidade, além do “efeito vinculante” previsto para as demandas repetitivas, tanto no âmbito do controle de constitucionalidade concreto quanto nas demandas decididas pelo STJ, em sede de recurso especial, nos termos do artigo 1.040, II, do CPC. Por fim, o artigo 927 do CPC ainda sujeita todos os juízes e tribunais às súmulas do STF e do STJ, bem como às decisões tomadas, em qualquer caso, pelo órgão especial do STJ.
Apesar de todo esse aparato, desenhado pelo CPC como forma de otimizar a produção de normas no âmbito do Poder Judiciário, como dito acima, os próprios juízes do STF e do STJ, em alguns casos relevantes, não se sentem submetidos ou vinculados nem mesmo às próprias decisões, imagine-se às decisões dos órgãos fracionários que integram ou do Plenário.
Em tais termos, a perplexidade não está em admitir essa visão legiferante do Poder Judiciário nem a visão dinâmica e complexa do ordenamento jurídico, mas na constatação de que, em geral, juízes e tribunais ainda não se sentem vinculados às próprias decisões.
Posto o critério, apesar das dificuldades para estabilizar esse universo de normas, conclui-se no sentido de que, como integrantes do ordenamento jurídico, as normas judiciais vão, através do sistema recursal, alterando-se umas às outras, ficando a salvo dessa dinâmica apenas as normas judiciais tornadas imutáveis, ou seja, protegidas pela coisa julgada.
Todavia, para além das dificuldades apontadas, conta-se, agora, com uma mais, que é a previsão explícita trazida pelo próprio CPC, no artigo 525, parágrafo 15, no sentido da aplicação da retroatividade máxima no Brasil, bem como a interpretação equivocada que alguns estão fazendo sobre o parágrafo 12 desse mesmo artigo, no sentido de que é inexigível a decisão judicial transitada em julgado, quando fundada em norma tida como inconstitucional pelo STF, mesmo que a conclusão da corte suprema tenha sido posterior ao trânsito em julgado.
Por derradeiro: advogados não precisam ser como vates, basta que impeçamos a sandice do senhor Calvino e do senhor Duchamp, no sentido de quererem, por pura vontade, fixar as regras para decidir quem venceu somente após o jogo já ter sido jogado.
Por Bianor Arruda Bezerra Neto
Bianor Arruda Bezerra Neto é juiz federal na 5ª Região, doutor pela PUC-SP e professor do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).
Revista Consultor Jurídico, 25 de fevereiro de 2018.
https://www.conjur.com.br/2018-fev-25/bianor-arruda-jogo-tributario-irretroatividade-precedentes