Introdução
É inegável que os planos de participação nos lucros (PLR) têm sido utilizados, cada vez com mais frequência, como excelentes instrumentos de atração e retenção de talentos e também como mecanismos de alinhamento de interesses entre as empresas e os administradores.
No entanto, a adoção dessa estrutura de remuneração, especificamente no caso de administradores sem vínculo empregatício, pode trazer problemas práticos para as empresas, em especial consequências financeiras pesadas no campo previdenciário e tributário. Por essa razão, é relevante comentar sobre os principais reflexos desses pagamentos. Ao tratarmos de administradores sem vínculo trabalhista, do ponto de vista previdenciário, a principal controvérsia gira em torno da incidência da contribuição previdenciária sobre esses valores, e, sob o viés tributário, a discussão mais relevante diz respeito à dedutibilidade da PLR, para fins de IRPJ e CSL, no caso de empresas sujeitas ao lucro real.
Aspectos previdenciários
A PLR é um instituto jurídico previsto nos artigos 7º, inciso XI, e 218, parágrafo 4º da Constituição Federal. Ambos os dispositivos estipulam que a PLR, enquanto direito dos trabalhadores e mecanismo de incentivo, está desvinculada da remuneração.
Embora o assunto não seja totalmente pacífico, a jurisprudência administrativa do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e a doutrina já se manifestaram no sentido de que o benefício fiscal concedido aos pagamentos a título de PLR têm natureza jurídica de imunidade. O Supremo Tribunal Federal tem adotado o entendimento no sentido de que a imunidade da PLR depende de lei disciplinadora.
Essa exigência de regulamentação foi endereçada pela Lei 10.101/2000, que determina os aspectos formais e objetivos mínimos de um plano de PLR. No âmbito previdenciário, a legislação1 expressamente estabelece que não serão incluídos na base de cálculo da contribuição previdenciária os pagamentos efetuados pela empresa a título de PLR, desde que feitos de acordo com a legislação específica.
Acontece que a Receita Federal2 tem entendido que os valores pagos a título de PLR a administradores sem vínculo empregatício deveriam sofrer a incidência de contribuição previdenciária.
No seu entendimento, a Lei 10.101/2000 buscou regulamentar a PLR apenas dos empregados, haja vista que essa lei (i) somente permite a dedução do lucro real dos valores pagos aos empregados (conforme será visto abaixo) e (ii) faz menção de que a PLR deve ser negociada entre a empresa e seus empregados3.
Ademais, a Receita alega que o termo “trabalhadores” utilizado no caput do artigo 7º da CF refere-se apenas aos empregados, uma vez que esse dispositivo elenca direitos que estão disponíveis apenas aos empregados. De acordo com essa interpretação, os administradores, como é o caso dos diretores estatutários sem vínculo empregatício, não estariam abarcados por esse dispositivo.
Assim sendo, valendo-se do entendimento do STF no sentido de que o artigo 7º, inciso XI da CF tem eficácia limitada e a imunidade da PLR dependeria de lei disciplinadora, as autoridades fiscais argumentam que a isenção tributária prevista na Lei 10.101/00 não se estenderia aos administradores sem vínculo empregatício.
Porém, entendemos que esse racional pode ser questionado. Isto porque o benefício previsto no artigo 7º, inciso XI4 da CF desvincula a PLR da remuneração paga aos “trabalhadores urbanos e rurais”, e não apenas para “empregados”, que seriam uma espécie do gênero “trabalhador”.
A nosso ver, considerando que a Lei 10.101/2000 é norma hierarquicamente inferior à CF, ela deve ser interpretada de modo a comportar todos os delineamentos trazidos pela Constituição. Tanto é que o seu próprio artigo 1º dispõe que tal lei se presta a regulamentar a participação dos trabalhadores (e não empregados).
Ora, em se tratando de uma “isenção” tributária, deve se aplicar o disposto no artigo 111, inciso II, do Código Tributário Nacional, segundo o qual se interpreta literalmente a legislação tributária que disponha sobre outorga de isenção.
Por interpretação “literal” a que se refere o artigo 111 do CTN, temos uma interpretação segundo o significado gramatical ou uma interpretação “sintática”, de forma que se deve buscar o conteúdo semântico dos vocábulos utilizados pelo legislador.
Nesse sentido, interpretar o dispositivo mencionado acima como pretende a Receita — inferindo que trabalhador estaria sendo usado no sentido de empregado —, a nosso ver, implicaria ampliação do seu conteúdo, de maneira a inserir requisitos para a concessão da isenção que não estão previstos na CF.
Na esfera administrativa, embora o tema ainda não seja pacífico, a boa notícia é que o Carf tem se manifestado no sentido de que a PLR é também extensiva aos ocupantes de cargo de liderança (sem vínculo de emprego), pois estes contribuem diretamente para o resultado da empresa, não havendo razão para distinção entre eles e os empregados subordinados.
No âmbito tributário, contudo, a situação é ainda pior para os administradores sem vínculo empregatício, já que as autoridades fiscais entendem que, ainda que os administradores sejam empregados, os valores pagos a título de PLR não seriam dedutíveis. Vejamos.
Aspectos tributários
Embora a Lei 10.101/2000 permita que as empresas deduzam, do lucro real, os valores pagos aos empregados a título de PLR como despesas operacionais, as autoridades fiscais têm adotado interpretação bastante restritiva no que tange aos pagamentos feitos a administradores empregados, contratados com vínculo empregatício.
A discussão sobre dedutibilidade nessa hipótese de administradores empregados decorre da vedação legal que expressamente impede a dedutibilidade de gratificações e PLR quando atribuídas a administradores de empresas5. Essa vedação encontra-se nos artigos 44, parágrafo 3º da Lei 4.506/1964 e 58 do Decreto-Lei 1.598/1977, que cuidam do IRPJ.
Entendemos que essa vedação não poderia ser aplicada de forma irrestrita para negar a dedutibilidade em todas as situações. Pelo contrário, deveria ser interpretada e aplicada com parcimônia.
Aliás, cabe desde já ponderar: por que o legislador, na década de 1970, se preocupou em inserir tal vedação? O receio era evitar que as empresas pudessem manipular o pagamento de gratificações e PLR, garantindo um “benefício” tributário de dedução na ordem de 34%? Ou seria porque o pagamento dessas despesas consistiria sempre em liberalidade por parte da empresa?
Seja qual for o racional do legislador à época, é preciso reconhecer que, na sociedade atual, tecnológica, globalizada e competitiva em que as empresas se inserem, o pagamento de PLR se faz não apenas necessário, mas verdadeiramente imprescindível para tornar as empresas interessantes para os indivíduos que ocupam altas posições.
Seria até mesmo plausível questionar, de forma mais ampla, a vedação à dedutibilidade como um todo, com fundamento no artigo 299 do RIR/1999, desde que, no caso concreto, seja possível evidenciar a importância do pagamento das despesas e sua relação com a performance da empresa.
A par dessa discussão mais geral e abstrata há dois aspectos específicos sobre o tema que merecem ser discutidos no campo tributário.
Primeiro, note-se que a legislação tributária diferencia administradores e empregados. As despesas com PLR pagas aos empregados são inteiramente dedutíveis6, enquanto que as mesmas despesas pagas a administradores não o são. Mas por quê?
Parece que a legislação tributária parte da premissa de que administradores não poderiam ser empregados, o que não é necessariamente verdade. Administradores podem ser empregados ou não: a existência de vínculo trabalhista deve ser verificada em cada caso.
Havendo subordinação e os demais requisitos exigidos pela legislação trabalhista, determinado administrador pode, sim, ser considerado empregado. Nesse cenário, haveria uma aparente contradição: as despesas com PLR seriam dedutíveis ou não?
A nosso ver, nesse caso específico envolvendo um administrador empregado, seria possível defender a plena dedutibilidade das despesas para fins de IRPJ e CSL, independentemente da designação formal “administrador” — desde que o profissional seja, de fato, subordinado e tenha dever de accountability, e as despesas sejam necessárias, usuais e normais no contexto das atividades econômicas da empresa, em respeito ao referido artigo 299.
Vale mencionar que, em julgamento ocorrido em junho de 2017, o Carf cancelou autuação lavrada para a exigência de contribuição previdenciária sobre PLR paga a membros do conselho de administração de uma empresa em decorrência da suposta ausência da condição de emprego na função desempenhada pelos administradores.
No entendimento do Carf, não existiria qualquer vedação legal no ordenamento jurídico para que um administrador seja empregado de uma empresa. Assim, não se poderia presumir que os membros do conselho, por serem administradores, não seriam empregados.
Embora esse julgamento não tenha analisado a discussão sob o viés da dedutibilidade para fins tributários, é importante na medida em que o Carf reconheceu que um administrador de uma empresa pode, sim, ter vínculo empregatício.
Segundo, tratando-se de administradores sem vínculo empregatício, acreditamos que a vedação legal, de todo modo, seria aplicável tão-somente ao IRPJ, cabendo a dedutibilidade integral ao menos para fins de CSL
Isso porque inexiste previsão legal expressa que impeça a dedutibilidade no caso da CSL. E, como a apuração da base de cálculo da CSL tem regras próprias, não seria cabível a aplicação automática da proibição prevista para o IRPJ.
Em relação a esse ponto, é importante mencionar que a própria Receita já reconheceu a possibilidade de dedução das despesas no caso da CSL ao editar a Instrução Normativa 1.700/2017.
Em seu Anexo I – Tabela de Adições ao Lucro Líquido, que trata de ajustes ao lucro líquido para a apuração da base de cálculo do IRPJ e da CSL, a referida IN dispõe no item 85 – Participações nos Resultados e Gratificações que os valores de PLR atribuídos a administradores podem ser deduzidos da base de cálculo da CSL, mas não da base de cálculo do IRPJ.
A jurisprudência administrativa também vem reconhecendo a dedutibilidade para fins de CSL. Inclusive, a Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), instância máxima do Carf, em julgamento ocorrido em maio de 2017, cancelou autuação lavrada contra contribuinte pela falta de adição ao lucro líquido de gratificações pagas a diretores e administradores no que tange à CSL, aplicando o teor da mencionada IN 1.700/2017.
Conclusões
O pagamento de PLR a administradores sem vínculo trabalhista merece especial atenção por parte das empresas ao definirem os prós e contras das diferentes formas de remuneração. As empresas precisam ter em mente os riscos e estar preparadas para eventualmente discutir as implicações previdenciárias e tributárias, seja no que se refere à incidência da contribuição previdenciária sobre os valores pagos a título de PLR, seja no que tange à dedutibilidade das respectivas despesas.
As discussões valem a pena e precisam ser levadas adiante para que não prevaleçam interpretações deturpadas e restritivas das autoridades fiscais que desvalorizem e desestimulem a adoção de um mecanismo de remuneração tão importante como é a PLR.
1 Lei 8.212, de 24/7/1991, e o Decreto 3.048, de 6/5/1999 (Regulamento da Previdência Social).
2 Nesse sentido, confira-se Solução de Consulta Cosit 16, de 14/3/2018.
3 Art. 2º A participação nos lucros ou resultados será objeto de negociação entre a empresa e seus empregados, mediante um dos procedimentos a seguir descritos, escolhidos pelas partes de comum acordo.
4 Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(…)
XI – participação nos lucros, ou resultados, desvinculada da remuneração, e, excepcionalmente, participação na gestão da empresa, conforme definido em lei.
5 E refletida nos artigos 303, 357, parágrafo único, incisos I e II, e 463, do Regulamento de Imposto de Renda (RIR/1999).
6 Vide artigo 299, parágrafo 3º do RIR/1999 e artigo 3º, parágrafo 1º da Lei 10.101/2000.
Por Cristiane Matsumoto Gago, Lucas Barbosa Oliveira, Mariana Monte Alegre de Paiva e Flávio Amorim
Cristiane Matsumoto Gago é sócia da área previdenciária do Pinheiro Neto Advogados.
Lucas Barbosa Oliveira é associado da área previdenciária do Pinheiro Neto Advogados.
Mariana Monte Alegre de Paiva é associada da área tributária do Pinheiro Neto Advogados.
Flávio Amorim é associado da área tributária do Pinheiro Neto Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 5 de junho de 2018.