O mês de setembro começa com uma notícia que atinge diretamente a arbitragem e o direito tributário, com a divulgação do Projeto de Lei nº 4468/2020, de autoria da senadora Daniella Ribeiro, que pretende criar a “arbitragem especial tributária”, no âmbito federal, para “prevenir” conflitos (que sequer pode ser aplicado se já houver constituição do crédito tributário mediante lançamento tributário ou auto de infração).
A simples leitura inicial já demonstra que não se trata de uma forma alternativa de resolução de conflitos. Com o início de uma fiscalização não há qualquer conflito a ser discutido; há, apenas, o exercício do Poder Público na fiscalização dos contribuintes.
A arbitragem se apresenta como uma forma da solução dos conflitos, mas jamais de procedimentos prévios onde sequer existe qualquer conflito. O que temos, na melhor das hipóteses, são atos preventivos, cujos institutos não se confundem.
Apesar do novo projeto de lei estabelecer textualmente que o árbitro é juiz de fato e de direito e do laudo arbitral proferido não estar sujeito a homologação ou recurso ao Poder Judiciário, a amplitude de sua atuação está limitada a matérias fáticas, sendo expressamente vedado discussões sobre constitucionalidade de normas jurídicas, sobre lei em tese ou decisão contrária a entendimento consolidado pelo Poder Judiciário.
Considerando que no sistema incidental e difuso a declaração de inconstitucionalidade pode ser feita por juízes e tribunais e vinculam apenas as partes que estão litigando, e sendo o árbitro um juiz de fato e de direito, tenho, para mim, a total competência do árbitro para afastar normas jurídicas que não encontrem a devida relação de pertinência com aquelas que lhe dão o devido fundamento de validade (não havendo qualquer confusão com uma declaração de inconstitucionalidade, atividade privativa do Supremo Tribunal Federal).
Ainda segundo a exposição de motivos, uma das finalidades será a aplicação em consultas fiscais ou quantificação de crédito reconhecido judicialmente. Com todo o respeito, verifica-se que o instituto de consulta não tem por finalidade dirimir qualquer conflito, mas apenas esclarecer o contribuinte acerca da interpretação que a Administração Pública tem sobre a aplicação de determinada norma jurídica.
Aplicando-se essa disposição a uma situação prática conclui-se que o contribuinte ao optar pela “arbitragem especial tributária” para a obtenção de uma resposta à consulta, arcará com diversos custos até então inexistentes (caso opte pela formulação de consulta ao órgão responsável da Administração Pública). Nem mesmo a celeridade supostamente esperada existirá, haja vista que o projeto de lei estabelece o prazo de 12 (doze) meses para ser proferida a “sentença arbitral”, o qual poderá ser prorrogado por duas vezes, até o limite de 24 (vinte e quatro) meses.
De outro lado, a quantificação de créditos tributário reconhecidos judicialmente não é decorrente de qualquer conflito, haja vista ser oriundo de uma norma individual e concreta emanada pelo Poder Judiciário já devidamente transitada em julgado e de cumprimento obrigatório das partes envolvidas na demanda judicial.
Se existirem lacunas ou dúvidas sobre a obtenção dos cálculos isso deve ser suprido pelo Poder Judiciário, mas jamais por um tribunal arbitral, que não tem competência para afrontar a coisa julgada.
Outra figura inovadora no projeto de lei em estudo (e não menos polêmica) é a do “árbitro desempatador”, no caso de o laudo arbitral não ser unânime e se assim estiver previsto no compromisso arbitral.
Essa pessoa sui generis (não existente em qualquer outra legislação que trate verdadeiramente sobre arbitragem), aparece com a missão de analisar os documentos do processo para emitir uma decisão adotando uma das posições anteriores (vencedora ou vencida).
Veja-se que se o “árbitro desempatador” concordar com a posição vencedora, estar-se-á diante de uma nova decisão não unânime; de outro lado, se concordar com a posição vencida, haverá novo empate, sem qualquer previsão de como deverá ocorrer o desempate. A existência desse “desempatador” somente servirá para aumento em custos, além de dilatar o prazo para a obtenção da “sentença arbitral”.
Ainda que se possa admitir que a “arbitragem especial tributária” seja uma arbitragem (o que, a meu ver, está longe de assim ser definido com base na doutrina especializada e em legislação internacional), veja-se que a finalidade de obtenção de uma solução de conflitos (que sequer ainda existem), de forma mais célere acaba se tornando uma situação mais morosa, com custos que até então não existiam para o contribuinte ou para o Poder Público.
Além disso, diferentemente do instituto da arbitragem (onde qualquer pessoa que detenha a confiança da parte pode exercer essa função), esse projeto cria uma limitação ao determinar que somente poderá ser árbitro aquele que deter conhecimento técnico compatível com a natureza do litígio a ser dirimido, jurídico ou não, sendo essencial, no mínimo, dez anos de comprovada experiência profissional na área de atuação, bem como duas graduações em nível técnico ou superior ou uma graduação e uma pós-graduação em instituições de ensino nacionais ou estrangeiras cuja titulação tenha sido reconhecida no Brasil.
Confesso que poderia defender essa exigência, uma vez que me enquadro dentro desses conceitos. Mas isso, para mim, cria uma reserva de mercado que, em muitas das vezes, impedirá excelentes profissionais de atuarem como “árbitros” nessa “arbitragem especial tributária”, cuja experiência teórica e, principalmente, técnica, certamente em muito poderia colaborar na demanda proposta.
Sou um grande entusiasta de que seja criada a arbitragem tributária no Brasil. Entretanto, entendo que a proposta é tímida e não contribui para a solução do enorme contencioso tributário (administrativo e judicial) existente no Brasil (e largamente apresentado na exposição de motivos, como fundamento para a criação da “arbitragem especial tributária”). A meu ver perde-se mais uma grande oportunidade de contribuir para a criação efetiva e verdadeira da arbitragem tributária.
Por JOSÉ EDUARDO TOLEDO
Doutorando em Relações Econômicas Internacionais – PUC/SP. Mestre e especialista em Direito Tributário – PUC/SP. Advogado.
Fonte – JOTA, 09/09/2020.