A Lei Complementar nº 157/16 introduziu na Lei Complementar nº 116/03 o novo art. 8º-A1, que prescreve uma alíquota mínima de 2% para o Imposto Sobre Serviços – ISS. Até aí não há novidade, pois desde 2002 o art. 88, I do ADCT2, suprindo então a omissão do legislador complementar, já previa esse piso para o imposto municipal.
O ADCT, porém, não cominava nenhuma sanção ou consequência direta para a hipótese de sua não observância, daí decorrendo sua sistemática e insistente desobediência por inúmeros municípios país afora, bem como a judicialização da questão por outros tantos municípios prejudicados.
Diversamente do ADCT, a LC nº 157/16 veio à luz equipada com engenhosos mecanismos sancionatórios para fomentar a efetividade do percentual mínimo ali reproduzido3. Em primeiro lugar, cominou nulidade à lei municipal que institua o imposto a menos de 2%, conferindo, inclusive, ao prestador contribuinte o direito à restituição do imposto pago sob a lei nula. O recado aos municípios foi “quem cobrar pouco, ficará sem o pouco que cobrou”. Confira-se:
“Art. 8º-A.
§2o É nula a lei ou o ato do Município ou do Distrito Federal que não respeite as disposições relativas à alíquota mínima previstas neste artigo no caso de serviço prestado a tomador ou intermediário localizado em Município diverso daquele onde está localizado o prestador do serviço.
§3o A nulidade a que se refere o § 2o deste artigo gera, para o prestador do serviço, perante o Município ou o Distrito Federal que não respeitar as disposições deste artigo, o direito à restituição do valor efetivamente pago do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza calculado sob a égide da lei nula”.
E, como que para reequilibrar o impacto econômico dessa nulidade desoneradora, previu a LC uma insólita transferência de sujeição ativa para o município do tomador do serviço4. Assim, a nulidade da norma prejudica o sujeito ativo originário, mas não chega a beneficiar o contribuinte, que permanece obrigado ao pagamento do imposto, porém perante credor diverso:
“Art. 3º. §4o Na hipótese de descumprimento do disposto no caput ou no § 1o, ambos do art. 8o-A desta Lei Complementar, o imposto será devido no local do estabelecimento do tomador ou intermediário do serviço ou, na falta de estabelecimento, onde ele estiver domiciliado”.
Essa nova disciplina legal, porém, talvez não tenha o alcance que, à primeira vista, nela se possa enxergar. Uma sutileza do texto legal planta-nos a semente de uma fundada dúvida.
Diante de uma lei municipal que institua o ISS a uma alíquota inferior a 2%, o novo §2º do art. 8º-A da LC nº 116/03 não lhe predica a nulidade em qualquer caso, mas apenas no caso em que o tomador do serviço esteja localizado em município diverso do estabelecimento prestador.
O legislador complementar houve por bem valer-se aí da expressão “localizado”, e aparentemente não o fez de maneira desavisada, mas, ao contrário, muito consciente, tanto que, quando quis, usou, no art. 3º, §4º, a expressão “domiciliado”, como que contrapondo claramente as duas expressões.
Pois há duas maneiras de se entender a “localização do tomador”:
(i) em uma acepção mais convencional e direta, como o seu domicílio pura e simplesmente; ou
(ii) como o local onde ele está situado no momento em que frui o serviço.
Coincidentemente, esse dilema semântico desafia hoje em dia também os operadores do ICMS. Como se sabe, a EC nº 87/15 rateou o imposto estadual entre os Estados de origem e destino nas operações interestaduais com consumidores finais. Ao conceituar tais operações, o constituinte derivado também utilizou precisamente a expressão “localizado”:
“EC 87/15: Art. 155. (…) §2º. (…) VII – nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado em outro Estado, adotar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao estado de localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual”.
O texto constitucional então suscitou, e ainda suscita, dúvidas em relação às chamadas “compras presenciais”, nas quais o consumidor final domiciliado em um Estado se desloca fisicamente ao outro Estado para receber a mercadoria adquirida. É o caso, por exemplo, de um paulista a passeio no Rio de Janeiro e que por lá efetua uma singela compra em um shopping center local; ou, ainda, de um soteropolitano que vem a uma concessionária paulista e de lá sai dirigindo seu novo veículo.
Nessas hipóteses, tem prevalecido o – a nosso ver muito sensato – entendimento de que, para os fins da EC nº 87/15, o adquirente não se considera “localizado em outro Estado” quando vai ao Estado vendedor retirar a mercadoria adquirida.
Não importa, pois, onde está domiciliado o comprador; importa onde recebe fisicamente a mercadoria adquirida, isto é, onde está situado no momento em que se realiza o fato gerador do ICMS. No Estado de São Paulo, esse entendimento está, aliás, positivado5.
Se emprestarmos, então, à expressão “localizado” usada na LC nº 157/16 o mesmo alcance semântico adotado para a EC nº 87/15, as hipóteses de nulidade daquele ISS “para inglês ver” – inferior a 2% – ficarão limitadas aos casos em que o serviço seja fruído fora dos limites territoriais do município do estabelecimento prestador, sem, portanto, a necessidade de deslocamento do tomador até o estabelecimento prestador.
De uma perspectiva de política fiscal, a hermenêutica reducionista aqui aventada parece fazer todo o sentido. A alíquota mínima do ISS é, obviamente, um expediente apaziguador da “guerra fiscal” entre municípios. E o campo fértil para essa disputa são justamente – unicamente, diremos – os serviços passíveis de fruição à distância, como os serviços de informática (capítulo 1 da lista), agenciamento (capítulo 10), consultoria e atividades intelectuais em geral (capítulo 17) etc.
É para esse tipo de serviço que a excessiva desoneração fiscal tem efetivo potencial para “roubar clientela” de outros municípios. Serviços que devem ser fruídos no local do estabelecimento prestador claramente não fomentam o mesmo problema. Se, por exemplo, o município paulista de Santana de Parnaíba insistisse em subtributar petshops, imaginamos que o município de São Paulo não teria grande ímpeto para se mobilizar a respeito, pois seria certamente irrisório o contingente de munícipes da capital dispostos a se deslocar algumas dezenas de quilômetros para fruir o serviço supostamente mais barato em uma loja do município vizinho.
Enfim, ao utilizar a expressão “localizado em Município diverso”, quer nos parecer que o novo art. 8º-A, §2º da LC nº 116/03 tenha pretendido contemplar apenas os tomadores que fruem o serviço à distância, gostosamente em sua própria residência ou domicílio. Se um morador de um outro município se desloca para o município do prestador, ele passa, para os fins do art. 8º-A da LC nº 116/03, a se equiparar a um munícipe do próprio município da prestação, que claramente não é colhido pela nova nulidade sancionadora.
Assim, por exemplo, uma lei municipal que tributar serviços de hotelaria a uma alíquota inferior a 2% não será nula em nenhuma hipótese, uma vez que todos os hóspedes tomadores, de onde quer que venham e onde quer que residam, fruirão os serviços necessariamente dentro do território do município onde está o estabelecimento hoteleiro prestador; nenhum hóspede jamais estará “localizado em município diverso”.
Essa exegese, porém, suscita um outro problema hermenêutico a pedir solução. Como se viu acima, ademais da nulidade da lei do município do prestador (art. 8º-A), a LC nº 116/03 transfere agora a sujeição ativa do ISS para o município do tomador (art. 3º, §4º). É fundamental que essas duas prescrições estejam uniformemente calibradas, de modo que incidam sempre e apenas simultaneamente.
Não pode, pois, haver hipótese em que haja deslocamento de sujeição ativa sem concomitante nulidade da lei instituidora originária, pois aí teríamos caso de competência dupla, tanto do município do prestador (pela alíquota inferior a 2%) quanto do município do tomador (pela alíquota de 2% ou mais), escancarando inadmissível bitributação.
O art. 3º, §4º da LC nº 116/03 não alude ao §2º do art. 8º-A, mas apenas ao caput e ao §1º do dispositivo. Sua hipótese de incidência, a princípio, basta-se com a previsão de alíquota inferior a 2% na lei do município prestador, sem cogitar se a mesma resultou ou não nula.
Sob uma interpretação literal do art. 3º, §4º, então, haveria campo para a nefasta bitributação cogitada acima. Voltemos ao exemplo dos serviços hoteleiros prestados em município que os tribute a menos de 2%: como os tomadores desses serviços não estão localizados em município diverso, a generosa lei tributária local não seria nula, e a respectiva autoridade fiscal poderia e deveria aplicá-la; por outro lado, o só fato desse município tributar o serviço a menos de 2% seria (na literalidade do art. 3º, §4º) suficiente para deflagrar a competência do município de residência de cada hóspede tomador.
Não pode ser assim, evidentemente.
O art. 3º, §4º da LC nº 116/03 pede, a nosso ver, uma hermenêutica sistemática e compatível com aquela que estamos a cogitar para o art. 8º-A, §2º. Embora aquele não mencione expressamente este, parece-nos implícita essa referência. É dizer, a sujeição ativa do município do tomador não decorre da só existência de alíquota inferior a 2% no município do prestador; é necessário que tal alíquota enseje a nulidade da lei instituidora, o que somente ocorrerá para os tomadores que fruem o serviço fora dos limites territoriais do município do estabelecimento prestador.
Enfim, as alíquotas de ISS inferiores a 2% talvez não tenham sido verdadeiramente sepultadas pela LC nº 157/16…
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1 “Art. 8o-A. A alíquota mínima do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza é de 2% (dois por cento).
§1o O imposto não será objeto de concessão de isenções, incentivos ou benefícios tributários ou financeiros, inclusive de redução de base de cálculo ou de crédito presumido ou outorgado, ou sob qualquer outra forma que resulte, direta ou indiretamente, em carga tributária menor que a decorrente da aplicação da alíquota mínima estabelecida no caput, exceto para os serviços a que se referem os subitens 7.02, 7.05 e 16.01 da lista anexa a esta Lei Complementar”.
2 Instituído pela EC nº 37/02.
3 Ademais de tipificar como de improbidade administrativa o ato, praticado pelos gestores públicos, que negligencie a alíquota mínima (art. 4º).
4 O dispositivo foi vetado pelo Executivo justamente ao fundamento de que instituía uma inadmissível “definição a posteriori” de competência tributária. A advertência executiva, porém, não sensibilizou o Congresso Nacional, que derrubou o veto e liberou a vigência da norma vetada.
5 “RICMS/SP. Art. 2º. Ocorre o fato gerador do imposto: (…) XVII – na saída de mercadoria ou bem de estabelecimento localizado em outra unidade federada com destino a consumidor final não contribuinte localizado neste Estado; (…) §8º. Na hipótese do inciso XVII, consideram-se destinadas a este Estado as operações nas quais a mercadoria ou bem seja entregue pelo remetente ou por sua conta e ordem ao destinatário em território paulista.
Art. 52. (…) §3º. São internas, para fins do disposto neste artigo, as operações com mercadorias entregues a consumidor final não contribuinte do imposto no território deste Estado, independentemente do seu domicílio ou da sua eventual inscrição no Cadastro de Contribuintes do ICMS de outra unidade federada.”
Por Paulo Roberto Andrade
Paulo Roberto Andrade – Sócio do Fialho Salles Advogados
Fonte: JOTA – 06/02/2018