1. Status Jurisprudencial da Controvérsia Relativa à Sujeição ou Não dos Juros Moratórios a Tributos Incidentes sobre Renda/Lucro
O status quaestionis da longa e errática discussão concernente à tributabilidade dos valores recebidos a título de juros moratórios por exações incidentes sobre a renda e congêneres (IRPF, IRPJ e CSLL) pode ser, sintética e didaticamente, descrito da seguinte forma:
Enfoque Infraconstitucional: após o TST ter cristalizado a tese da não-incidência em termos amplos, isto é, “independentemente da natureza jurídica da obrigação inadimplida” (Orientação Jurisprudencial 400, DJe 04/08/2010), foram afetados, no âmbito da 1a. Seção do STJ, 3 (três) Recursos Repetitivos versando sobre o tema, a saber: i) o REsp 1.277.133/RS (Rel. p/ Acórdão Min. Cesar Asfor Rocha, DJe 19/10/2011), cuja conclusão foi no sentido do descabimento da tributação no contexto específico de rescisão de contrato de trabalho; ii) o REsp 1.138.695/SC (Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 31/05/2013), no qual foi assentada a tributabilidade dos juros acrescidos aos depósitos judiciais devolvidos e ao indébito fiscal repetido; e iii) o REsp 1.470.443/RS, originalmente vocacionado a assumir o papel de leading case genérico, mas sobrestado à vista do reconhecimento pelo STF da Repercussão Geral da questão constitucional imbricada;
Enfoque Constitucional: como “reação” ao veredicto do STJ, a Corte Especial do TRF da 4a. Região elevou a discussão ao plano constitucional, censurando a pretensão fiscal em 2 (duas) Arguições de Inconstitucionalidade: i) a n. 5020732-11.2013.4.04.0000 (Rel. Des. Fed. Luciane Amaral Corrêa Münch, julg. 24/10/2013), de alcance genérico; e ii) a n. 5025380-97.2014.4.04.0000 (Rel. Des. Fed. Otávio Roberto Pamplona, julg. 27/10/2016), específica para os juros referentes a depósitos judiciais e indébitos fiscais. Essa mudança de rumos levou o STF a “avocar” a discussão nos RREE 855.091/RS (Tema 808/RG – juros relativos a verbas remuneratórias pagas pelo empregador) e 1.063.187/SC (Tema 962/RG – juros relativos ao indébito fiscal repetido), ambos da relatoria do Min. Dias Toffoli.
Embora o grau de amadurecimento alcançado pela discussão sugira o contrário, ainda há algo a dizer sobre o tema, complementação justificada, especialmente, pelo recentíssimo julgamento da ADI 2.332/DF pelo STF.
2. O Silogismo Prevalente no Âmbito do STJ: Fundadas Dúvidas sobre as Premissas da Validação, como Regra, da Tributação.
2.1) “Premissa Maior”: Ausência de Uniformidade do Regime Tributário das Verbas Indenizatórias (Dano Emergente versus Lucro Cessante).
De fato, salvo raras e louváveis exceções – e a mais notória é a irredutível opinião de Roque Antônio Carrazza –, a doutrina já superou o antigo “mantra” de que toda e qualquer verba indenizatória, só por essa circunstância, já estaria a priori livre da incidência do IR e afins, havendo um certo consenso no sentido de que esse tratamento é restrito às indenizações a título de dano emergentes, vocacionada à (neutra) reposição da perda de um bem ou direito pré-existente, não sendo extensível ao que o credor faz jus para substituir aquilo que ele “razoavelmente deixou de lucrar” (lucros cessantes).
Mas essa mesma doutrina também é praticamente unânime em equiparar, para fins fiscais, os lucros cessantes e as reparações de danos extrapatrimoniais, o que significa que o STJ a acolheu apenas “pela metade”: como argutamente observado pela Min. Eliana Calmon no REsp 1.002.665/RS – sem resposta específica dos votos vencedores –, há aparente quebra de integridade jurisprudencial ao se assumir a tributabilidade dos lucros cessantes – “premissa maior” da tese relativa aos juros moratórios – e, ao mesmo tempo, exonerar tourt court as indenizações por danos morais (Recurso Repetitivo 1.152.764/CE e Súmula 498).
2.2) “Premissa Menor”: Os Juros Moratórios Tipificam Lucro Cessante, Não Dano Emergente.
Mas é a “premissa menor” da tese do STJ que fomenta maior polêmica: embora seja inegável seu alto poder de persuasão, a ponto de ter forçado a “capitulação” (parcial) de defensores da própria antítese (p. ex., Ministros Cesar Asfor Rocha e Eliana Calmon), que tiveram que esboçar abordagens alternativas para insistir na não-incidência, a tipificação dos juros moratórios como lucros cessantes parece ser, com todo respeito, um caso de “meia-verdade” jurídica, fruto de um inadvertido reducionismo.
Certo, a alentada fundamentação desenvolvida pelo Min. Mauro Campbell Marques espelhou a consulta do que há de melhor em nosso Direito Civil, especialmente do categórico diagnóstico do grande Clóvis Beviláqüa. Ainda assim, parece-nos que tais lições – que, obviamente, não foram elaboradas “sob medida” para a espécie – acabaram sendo levadas às últimas consequências, resultando em desalinhamento frente ao verdadeiro perfil legal do instituto.
De fato, J. M. Carvalho Santos, outro vulto civilista consultado na mesma assentada, ilumina aspecto que, apesar de sua notável significância, ficou à penumbra: os juros moratórios são, na verdade, uma espécie de “liquidação à forfait, aleatória”, “fixada por antecipação ao acontecimento” para obviar os inconvenientes da notória dificuldade da sua apuração exata, considerada a “diversidade das perdas e danos que podem resultar do retardamento da execução dessas espécies de obrigações, que variam extraordinariamente”1. Ou seja, o STJ enxergou certeza absoluta onde o que havia era, justamente, um “paliativo” para a falta de certeza…
E a revisitação que já se mostrava recomendável torna-se inevitável paralelo com os juros compensatórios, estes, sim, unanimemente tidos, até recentemente, como correspondentes a lucros cessantes2: no recém-ultimado julgamento da célebre ADI 2.332/DF3, um dos mais notáveis pontos de consenso entre vencedores e vencidos foi a desqualificação da conceituação um tanto reducionista daquela parcela, sendo expressivos, no ponto, os seguintes apartes:
“O Senhor Ministro Marco Aurélio – Ministro Luís Roberto Barroso, Vossa Excelência entende juros compensatórios como sinonímia de lucros cessantes?
O Senhor Ministro Luís Roberto Barroso (Relator) – Não. Eu entendo juros compensatórios como algo que se deve para compensar alguém que foi desapossado. (…)
O Senhor Ministro Marco Aurélio – Então é, de forma geral, abrangente, lucros cessantes.
O Senhor Ministro Luís Roberto Barroso (Relator) – Inclusive”. (p. 50 do acórdão)
“O Senhor Ministro Alexandre de Moraes – (…) Ou seja, a ideia de uma atualização somente em virtude da perda inflacionária não está mais na definição, hoje, dos juros compensatórios. Aqui me parece que a compensação é exatamente, não só como colocou o Ministro Marco Aurélio, os lucros cessantes, mas os danos emergentes, aquilo que perdeu ou deixaria de ganhar”. (pág. 55 do acórdão)
“O Senhor Ministro Alexandre de Moraes – Perdão, Ministro Barroso, ‘perda de renda’: são danos emergentes e lucros cessantes”. (pág. 66 do acórdão)
Se se assentou, como parece claro, a natureza “híbrida” dos juros compensatórios, como se poderia insistir na suposta “pureza” dos juros moratórios, identificando-os com lucros cessantes tout court? Salvo melhor juízo, não nos parece factível, nem lógica nem juridicamente.
E essa requalificação, logicamente, não pode deixar de ter reflexos sobre o respectivo regime tributário, como, mutatis mutandis, o próprio STJ já teve oportunidade de vaticinar com superioridade técnica e sob insuspeita relatoria:
“(…) 2. O art. 27, “j”, da Lei nº 4.886/1965 definiu de antemão a natureza indenizatória das verbas recebidas no âmbito de rescisão unilateral imotivada do contrato de representação. Impende registrar que a lei não diferençou qual proporção da referida verba indenizatória teria característica de dano emergente ou lucros cessantes para fins de incidência do imposto de renda na segunda hipótese, se fosse o caso, de forma que diante da impossibilidade de o fazê-lono caso concreto deve ser reconhecida a não incidência do imposto de renda, na forma do § 5º do art. 70 da Lei nº 9.430/1996, sobre a totalidade da verba recebida, haja vista sua natureza indenizatória ex lege. (…)”. (REsp 1.526.059/RS, 2a. Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 18/12/2015)
3. Aparente “Ponto Cego” da Discussão: Incoerência Sistêmica Revelada pelo Tratamento dos Juros Recebidos no Contexto de Desapropriação
Em reforço, o resgate de uma analogia altamente sugestiva, entre a desapropriação e a repetição de indébito tributário, expõe um aparente “ponto cego” da discussão4: embora não tenha vingado no tocante ao propósito específico da sua excogitação – provável explicação para ela ter se perdido no tempo –, os novos termos trazidos pela ADI 2.332/DF têm o potencial de revitalizá-la.
De fato, um dos pontos mais significativos desse leading case foi, como se adiantou, a requalificação dos juros compensatórios, flertando com a conhecida posição do Min. Moreira Alves que praticamente nega diferença ontológica entre eles e os moratórios (RE 90.656/SP), o que permite sintetizar assim o estado da arte “padrão”:
-
DesapropriaçãoRepetição de IndébitoCausa do DesfalqueLegalIlegalJurosTermo A QuoDesapossamentoTrânsito em JulgadoTributáveisNãoSim
Salvo melhor juízo, é notável o “desbalanceamento”, máxime quando se tem em conta que, como frisou o Min. Edson Fachin na ADI 2.332/DF, “a desapropriação, tendo assento constitucional, não é ato ilícito do Poder Público” (pág. 87 do acórdão). Com efeito, esse aspecto desaconselha o descarte a priori da lógica da tese relativa à tributação dos rendimentos recebidos acumuladamente (Tema 368/RG – RE 614.406/RS), segundo a qual a ilicitude imputável ao Poder Público não poderia gerar o efeito colateral de agravar a situação do contribuinte, mutatis mutandis.
A única forma de (tentar) manter a coerência do sistema seria, então, valorizar a aplicabilidade aos juros do regime tributário da verba principal. Ocorre que, mesmo tendo prevalecido no âmbito STJ, tal critério parece unir “gregos e troianos”: tanto os defensores quanto os críticos da tributação em questão manifestam sérias reservas à superestimação dessa “acessoriedade” para fins fiscais, por não perderem os juros de mora sua natureza invariavelmente indenizatória mesmo quando se referem a verbas remuneratórias, passando a extensão automática a servir de possível fonte de exação por analogia (art. 108, §1o., CTN) ou de ampliação de regra isentiva para além da sua literalidade (art. 111, II, CTN).
Sendo cada vez mais evidente – e frequentemente declarada – a conscientização da comunidade jurídica para a importância da racionalidade e a integridade do sistema, como valores em si mesmos, parece haver razões de sobra para que, pelo menos, sejam lançadas luzes sobre tal “ponto cego”.
4. Considerações Finais
Nada sugere que o encontro marcado do STF com a tributação dos juros de mora será apenas “mais do mesmo”, nem sequer o fato de PGR ter praticamente replicado a linha do STJ nos Pareceres ofertados nos 2 (dois) leading cases relativos ao tema – embora, justiça se lhe faça, em tais manifestações não foi simplesmente avalizada a “premissa menor” do silogismo do STJ, deixando-se em aberto um tratamento diverso caso as circunstâncias abalem a “pureza” dos juros.
Tendo isso presente, espera-se ter feito ver que as variáveis aqui rapidamente tratadas, em especial o necessário diálogo com a ratio decidendi da ADI 2.332/DF, devem entrar no “radar” da Corte: além de nada a desaconselhar, tal abordagem, sem dúvida, contribuirá para o aprimoramento da coerência e integridade da jurisprudência alusiva ao tema.
——————————–
1 Código Civil Brasileiro Interpretado. Vol. XIV, 7a. ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1958, pp. 269-270.
2 EREsp 1.190.684/RJ, 1a. Seção, Rel. p/ Acórdão Min. Teori Zavascki, DJe 02/08/2012.
3 Tribunal Pleno, Rel. Min. Roberto Barroso, julg. 17/05/2018, DJe 15/04/2019.
4 REsp 206.991/PR, 1a. Turma, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 08/05/2000.
Fonte: Jota – 08/07/2019.
POR LEONARDO E SILVA DE ALMENDRA FREITAS
LEONARDO E SILVA DE ALMENDRA FREITAS – Ex-Membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; Ex-Membro Efetivo do Conselho de Contribuintes de Teresina/PI; Sócio do Escritório Almendra Freitas Advocacia Empresarial; e Advogado (OAB 4.138/PI e 23.417-A/CE)