Já há muito tempo se discute a viabilidade da ação regressiva por parte do INSS, prevista no artigo 120 da Lei 8.213/91, frente ao disposto nos artigos 7º, XXVIII, 154, I, e 195, parágrafo 4º. O INSS tem ingressado com ação judicial de cobrança contra o empresário por valores que teria gasto para custear auxílios acidente e doença de funcionários afastados em decorrência de situações de trabalho na empresa.
Acontece que os tribunais têm entendido que o ato da empresa contribuir para o Seguro de Acidente do Trabalho (SAT) não exclui sua responsabilidade de ressarcir o INSS em caso de acidente onde seja verificada culpa. O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) já se pronunciou diversas vezes sobre o tema, afirmando que mesmo que as receitas decorrentes do SAT sejam destinadas ao custeio dos benefícios pagos em razão de acidentes do trabalho, isso não afeta a responsabilidade da empresa em ressarcir o INSS no caso de dolo ou culpa, por ter o SAT natureza tributária e compulsória.
O STF entende que adotar entendimento contrário seria o mesmo que autorizar as empresas contribuintes a descumprir as regras de proteção ao trabalhador, eximindo-as da obrigação de recompor o patrimônio público lesado pelos pagamentos de benefícios em virtude de sua conduta ilícita, pelo simples fato de recolher o SAT.
A possibilidade de ação de regresso por parte do INSS configura na prática verdadeiro bis in idem punitivo
É fato que a metodologia contributiva do SAT sobre as folhas de pagamento leva em consideração índices genéricos de apuração da alíquota do seguro devido em razão do segmento de atuação das empresas (CNAE), mas também considera em caráter específico a conduta individual de cada empregador por meio do Fator Acidentário de Prevenção (FAP).
Os critérios que compõem o FAP têm a capacidade de atuar para aumentá-lo ou diminui-lo, seguindo a mesma linha do sistema “malus-bonus” do direito securitário, sendo que as empresas que individualmente forem geradoras de maior quantidade de acidentes têm a sua alíquota do SAT aumentada até o dobro e aquelas que adotam políticas de segurança do trabalho, diminuindo os acidentes, podem ser beneficiadas com a redução da referida alíquota pela metade.
Nos parece incompatível, portanto, a coexistência do artigo 120 da Lei 8.213/91 com o disposto no artigo 10 da Lei 10.666/03, o qual inseriu no ordenamento jurídico norma específica de punição aos infratores e benefício aos cumpridores das normas de segurança do trabalho. Pelo menos desde 2003 já existe punição pecuniária visando recompor os cofres do erário em razão da concessão de benefício acidentário por culpa do empregador, o FAP, não mais se justificando a ação de regresso com essa finalidade.
Quando o dispositivo que trata da ação de regresso foi inserido no ordenamento jurídico, em 1991, o FAP inexistia, razão pela qual se fazia pertinente a cobrança dos valores pagos a título de benefício acidentário por culpa do empregador, dentro da mesma lógica securitária.
Naquele momento eram consideradas apenas questões gerais e decorrente da apuração no setor econômico como um todo, sendo que o infrator das políticas de segurança do trabalho acabava não sendo responsabilizado individualmente pelos eventos decorrentes de sua culpa. Mais ou menos como funciona na contratação de um seguro de responsabilidade na construção civil, no qual pode haver cláusula para, com o advento do sinistro, autorizar a seguradora a negar a cobertura ou exigir o regresso caso constatada a culpa do contratante.
Com advento do FAP e do sistema “malus-bonus” de apuração do valor do SAT, supriu-se essa lacuna com a individualização dos critérios de pagamento deste tributo, passando a onerar mais as empresas geradoras de acidente, inclusive sobre o valor de toda a folha de pagamento.
Nesse caso, o SAT passou a estar mais próximo de um seguro de carro, que leva em consideração a sinistralidade do condutor na hora de fixar o preço anual, não havendo o que se falar em regresso por culpa, pois se tem conhecimento prévio da conduta histórica do contratante, que pagará pelo seguro de acordo com as suas características e sinistralidade.
Assim, a aplicação da alíquota do SAT dentro do panorama do “malus”, ou seja, com o FAP aumentando o valor da contribuição em razão da conduta da empresa em não cuidar de seus empregados, cumulativamente com a possibilidade de ação de regresso por parte do INSS configura na prática verdadeiro bis in idem, na medida em que o empregador seria punido com a majoração de sua alíquota sobre folha e também com a devolução dos valores pagos pela Previdência Social à título de benefício, ambas situações decorrentes de um mesmo fato (acidente de trabalho com culpa do empregador) e com o mesmo objetivo (recomposição do erário).
Ademais, a empresa infratora de normas de segurança do trabalho ainda pode sofrer autuação por parte do Ministério Público do Trabalho e até mesmo se tornar ré em ação civil pública, a qual pode ser movida em razão de condutas culposas e em desrespeito às normas de segurança do trabalho.
Portanto, sob esta ótica, a aplicação da ação de regresso como se dá hoje é incompatível com as normas colidentes entre si e configura verdadeiro bis in idem punitivo se levada em consideração a sistemática de contribuição específica para o custeio dos benefícios acidentários sobre folha de pagamento como um todo, SAT e FAP.
Por Mauricio Pallotta Rodrigues
Mauricio Pallotta Rodrigues é especialista em custeio, mestre em direito do trabalho e da seguridade social e sócio do Pallotta, Martins e Advogados
Fonte : Valor Econômico – 05/11/2018