A internet das coisas revolucionou o modo pelo qual bens e serviços são tradicionalmente usufruídos. Com a inovação da tecnologia, uma simples compra e venda de mercadoria ou aquisição de um serviço pode estar associada a transmissões de dados e fluxos de informação dos usuários que, eventualmente, possuem maior valor econômico em comparação à mercadoria vendida ou ao serviço adquirido. É nesse contexto em que se insere a controvérsia quanto à tributação dos negócios da internet das coisas.
A internet das coisas significa um estágio avançado da conectividade e do compartilhamento de informações. Não só as pessoas estão conectadas, mas os dispositivos utilizados pelos usuários também estão conectados e executam funções pré-programadas a depender dos dados coletados, de modo a permitir o oferecimento de diversas utilidades.
Este, inclusive, é o conceito de internet das coisas estabelecido no artigo 1º do Decreto 8.234/2014: “sistemas de comunicação máquina a máquina os dispositivos que, sem intervenção humana, utilizem redes de telecomunicações para transmitir dados a aplicações remotas com o objetivo de monitorar, medir e controlar o próprio dispositivo, o ambiente ao seu redor ou sistemas de dados a ele conectados por meio dessas redes”.
Para elucidar a questão, veja-se os seguintes exemplos citados por William Hoke[1]: (i) máquina de venda de refrigerantes com monitoramento em tempo real que compartilha informações acerca da necessidade de reposição dos refrigerantes e as preferências dos usuários que utilizam a máquina; (ii) roupa inteligente (smart clothing) que, ao constatar que o usuário está ficando desidratado, compartilha a informação com a geladeira para que a bebida adequada para reposição de minerais seja adquirida a tempo de o usuário chegar em sua residência.
Nos exemplos citados, não há dúvidas de que houve a incidência de ICMS quando da circulação das mercadorias em razão de sua aquisição pelos usuários. No entanto, as facilidades inerentes às mercadorias adquiridas colocam em dúvida se, em tais situações, também há (i) serviço de telecomunicação tributável pelo ICMS, haja vista a provisão de conectividade entre os usuários; ou (ii) prestação de serviço submetido à incidência do ISS, que apenas se vale da conectividade para prestação do serviço.
Guardadas as devidas proporções, a problemática relembra os contornos entre o já conhecido embate da incidência de ICMS sobre serviços de telecomunicação e serviços de valor adicionado. E, ao analisar a celeuma, a jurisprudência pátria predominante é no sentido de que os serviços de valor adicionado não estão submetidos à incidência do ICMS, mas somente do ISS, caso haja menção expressa do serviço na lista anexa à Lei Complementar 116/2003.
Adentrando mais a fundo no embate entre serviços de telecomunicação e serviços de valor adicionado, a problemática da tributação sobre os negócios da internet das coisas pode ser comparada com a controvérsia da exigência de ICMS sobre o serviço de auxílio à lista prestado pelas operadoras de telecomunicação.
Em síntese, o serviço de auxílio à lista permite que o usuário, por meio da rede de telecomunicações, consulte dados disponibilizados em uma base cadastral pela operadora de telecomunicação para acessar determinada informação, qual seja, o número telefônico de determinado estabelecimento. Trata-se, portanto, de um serviço de fornecimento de informações, que pode ser comparado com os exemplos citados acima em relação à máquina de venda de refrigerantes e à roupa inteligente, onde dados dos usuários são compartilhados para viabilizar determinado objetivo.
Recentemente, no julgamento do Recurso Especial 1.721.126/RJ, ao analisar a qualificação jurídico-tributária do serviço de auxílio à lista, o Superior Tribunal de Justiça reafirmou seu entendimento sobre o tema, reconhecendo que se trata de um serviço de informação de dados prestados via telefone, de modo que o serviço apenas se vale da rede disponibilizada pela operadora de telecomunicação como um meio ou suporte para que os dados sejam acessados pelo usuário.
Para tanto, o tribunal superior partiu da premissa de que “a comunicação, para fins de ICMS, exige, além da efetiva difusão da mensagem, a interação remunerada entre emissor e receptor, perfeitamente identificados, ou seja, é viável a incidência do tributo quando praticados ‘atos de execução’ destinados à ‘efetiva prestação do serviço’, o que ocorre ‘quando pelo menos duas pessoas — diversas da que presta os serviços que possibilitam a comunicação à distância e previamente identificadas — efetivamente trocam mensagens'”. Em outras palavras, o Superior Tribunal de Justiça, acertadamente, reconheceu que a incidência do ICMS pressupõe a existência do “tripé” da relação comunicacional: (i) emissor; (ii) receptor; e (iii)prestador do serviço que viabiliza a troca de mensagens entre emissor e receptor.
Adotando as premissas fixadas pelo Superior Tribunal de Justiça no referido julgamento, seria possível afirmar que os dados compartilhados nos exemplos citados acima não viabilizam uma comunicação entre pelo menos duas pessoas diversas da que presta os serviço de telecomunicação, isto é, não há troca de mensagens entre emissor e receptor, mas apenas a transmissão de informações entre dispositivos conectados à internet que executam funções pré-programadas com o objetivo de fornecer utilidades aos usuários.
Até mesmo o conceito de internet das coisas previsto no artigo 1º do Decreto 8.234/2014 corroboraria tal conclusão, tendo em vista que prevê expressamente que: (i) trata-se de um sistema de comunicação máquina a máquina; (ii) sem intervenção humana; e (iii) apenas utiliza a rede de telecomunicação para transmitir os dados. E, aplicando-se tais elementos do conceito, seria possível concluir que as utilidades inerentes à internet das coisas não estão submetidas à incidência do ICMS, mas somente do ISS, caso haja expressa previsão na lista anexa à Lei Complementar 116/2003, o que, a nosso ver, pode ter sido contemplado pelas alterações trazidas pela Lei Complementar 157/2016.
Importante esclarecer que a controvérsia tributária relacionada aos negócios da internet das coisas não se restringe apenas ao embate entre ICMS e ISS, mas também pode impactar a qualificação jurídico-tributária da receita auferida pelo contribuinte. Caracterizando-se como prestação de serviço de telecomunicação, a receita auferida nos negócios da internet das coisas, a título de exemplo, será necessariamente: (i) tributada pelo PIS/Cofins na sistemática do regime de apuração cumulativo; e (ii) incluída na base de cálculo do Fust e Funtell.
Além das celeumas atinentes aos impactos tributários, a controvérsia também assume contornos regulatórios, na medida em que, se tido como prestador de serviço de telecomunicação, o contribuinte deve seguir diversas regras de compliance para desenvolvimento da atividade, as quais são muito mais onerosas em comparação a regras aplicáveis a outros setores da economia. A título de exemplo, cite-se o Convênio 201/2017, o qual estabelece diversas obrigações acessórias a serem cumpridas pelos contribuintes prestadores de serviços de comunicação.
As considerações acima reafirmam a necessidade de aprofundar o conhecimento acerca dos aspectos técnicos inerentes ao evento que é submetido à tributação. De fato, a exigência legítima de um tributo pressupõe a compreensão do negócio desenvolvido pelo contribuinte, a fim de verificar se reúne os elementos determinantes da competência tributária de determinado ente federativo.
A simples manifestação de riqueza, por si só, não é suficiente para ensejar a incidência tributária; é necessária a comprovação da presença de todos os elementos da regra-matriz de incidência tributária para verificar se a manifestação de riqueza do contribuinte está inserida na competência tributária de determinado ente federativo.
E, a nosso ver, essas foram exatamente as premissas utilizadas pelo STJ ao analisar o serviço de auxílio à lista: entender as características do serviço prestado pelo contribuinte para, somente então, concluir pela incidência ou não de ICMS à luz das balizas constitucionais.
Por outro lado, é importante destacar que tal juízo de conformidade entre o fato praticado e a norma pode não ser realizado adequadamente pelo Fisco e tampouco em tempo hábil pelo já assoberbado Poder Judiciário. A título de exemplo, veja-se que a problemática analisada pelo STJ diz respeito a fatos geradores ocorridos entre dezembro de 2000 e agosto de 2001, enquanto que o caso somente foi julgado em fevereiro deste ano.
É em razão do contexto delineado acima que surgem discussões acerca da possibilidade da tributação de robôs dotados de inteligência artificial e razoável nível de autonomia mediante a conferência de personalidade jurídica específica para fins tributários.
Nessa perspectiva, surge o debate quanto à possibilidade da tributação de uma espécie de “renda” imputada às atividades desempenhadas por robôs pertencentes a contribuintes, bem como se seria possível instituir tributação diferenciada nas hipóteses em que determinada pessoa utiliza robôs para aquisição de bens e serviços.
A proposta é interessante em razão da alternativa para financiamento do Estado na hipótese da erosão da base do Imposto de Renda e da contribuição previdenciária sobre folha de salário causada pela substituição da força de trabalho, porém não se pode ignorar os possíveis desdobramentos negativos que a medida poderia ensejar, tal como a delimitação de quais robôs estão submetidos à sistemática de tributação diferenciada.
Além disso, é de se questionar se há de fato uma erosão da base do IR ou mera transferência daquela renda do trabalhador para a empresa em razão do estimado aumento de receitas da empresa. Para a contribuição previdenciária, a migração da tributação sobre a folha de salários por aquela incidente receita, como feita para empresas de tecnologia, também poderia evitar a perda de receita tributária diante do novo contexto econômico.
A tributação na era da tecnologia traz questionamentos quanto à conformidade do sistema tributário atual para exigência dos tributos. Sem prejuízo quanto às saudáveis discussões sobre o tema, também é importante que o debate esteja voltado à necessidade de compreensão dos negócios desenvolvidos na era da tecnologia, o que pode ser viabilizado com maior efetividade pela aproximação da relação entre contribuinte e Fisco. De fato, a mera alteração do sistema tributário não produzirá os efeitos desejados se a maneira pela qual o sistema é aplicado permanecer a mesma.
[1] HOKE, William. Tax Complexity Expands as Internet of Things Explodes. In: Tax Notes, Abril de 2016, p. 313-316. Disponível em: https://www2.deloitte.com/content/dam/Deloitte/us/Documents/Tax/us-tax-taxanalysts-complexity-expands-internet-of-things.pdf.
Por Eduardo de Paiva Gomes, Felipe Wagner de Lima Dias e Phelipe Moreira Souza Frota
Eduardo de Paiva Gomes é sócio do Vieira, Drigo e Vasconcellos Advogados, professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), mestrando em Direito Tributário pela FGV-SP, especialista em Direito Tributário pela PUC-SP e bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Felipe Wagner de Lima Dias é advogado, mestrando e pós-graduado pela Faculdade de Direito da FGV-SP, membro do Núcleo de Direito Tributário da mesma instituição e ex-coordenador do Grupo de Direito Tributário da Câmara-e.net.
Phelipe Moreira Souza Frota é advogado, mestrando em Direito Tributário pela FGV-SP e membro do Núcleo de Direito Tributário da mesma instituição.
Revista Consultor Jurídico, 14 de maio de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-mai-14/opiniao-tributacao-internet-coisas-uso-robos