A incompreensível omissão do Supremo Tribunal Federal em decidir, de forma definitiva, a questão jurídica relativa à não inclusão do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) na apuração da base de cálculo do Programa de Integração Social (PIS)/Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins), objeto de embargos declaratórios pendentes de apreciação no RE 574.706/PR, seguramente está se transformando no maior contencioso tributário da história do país e tem tudo para permanecer como “questão litigiosa” ainda por algumas décadas.
Milhões de empresas têm se creditado de indébitos, com ou sem decisões judiciais, transitadas em julgado ou não. Outra enorme quantidade de contribuintes tem simplesmente ignorado a determinação legal e excluído expressamente o ICMS na determinação da base de cálculo do PIS/Cofins.
A Receita Federal, na pendência de uma decisão definitiva do STF, aplica a legislação vigente, interpreta a decisão do STF no referido precedente, lavra lançamentos tributários, indefere compensações, aplica multas e assim alimenta o estado de insegurança jurídica do combalido sistema tributário brasileiro.
Milhares de mandados de segurança, ações cautelares e outras ações judiciais são diariamente propostas em razão dos conflitos decorrentes do adequado tratamento fiscal da citada questão jurídica e dos seus diferentes desdobramentos jurídicos, econômicos e processuais.
Esse estado de coisas gerado pelo STF, contribui para desorganizar ainda mais a relação jurídica entre Fisco e contribuinte no Brasil, e além da controvérsia exclusivamente tributária, também está gerando efeitos colaterais importantes na esfera do direito societário e do mercado de capitais brasileiro.
Grandes companhias, especialmente de capital aberto, estão registrando indébitos em montantes bilionários, produzindo resultados extraordinários que estão sendo distribuídos aos seus acionistas, isentos de Imposto de Renda, como comanda a legislação aplicável. Por outro lado, tais indébitos estão sendo oferecidos à tributação no momento do trânsito em julgado, como efetivas receitas auferidas pela jurídica, redundando em expressivos recolhimentos tributários, ou diferentemente, sendo incluídos em processos de compensação sujeitos à homologação e só oferecidos à tributação após o efetivo reconhecimento do direito de crédito pelo Fisco.
Preocupada com a evidente situação de incerteza jurídica provocada pelo silêncio do STF, recentemente, a Comissão de Valores Imobiliários (CVM) expediu o Ofício-Circular/CVM/SNC/SEP/nº 01/2021, de 29 de janeiro de 2021, tendo por objeto “orientações quanto a aspectos relevantes a serem observados na elaboração das Demonstrações Contábeis para o exercício social encerrado em 31.12.2020”.
A CVM, órgão regulador e fiscalizador do nosso mercado de capitais, revela expressa preocupação com situações encontradas pela sua área técnica na análise de demonstrações contábeis de algumas companhias, especialmente casos de: a) companhias que, no cômputo do valor do PIS e da Cofins, desconsideraram o ICMS na base de cálculo e ingressaram com ações judiciais, para salvaguardar seus direitos, constituíram passivos e agora se veem diante da decisão de reverter, total ou parcialmente, suas provisões; e b) companhias que, no cômputo do valor do PIS e da Cofins, consideraram o ICMS na base de cálculo (e/ou fizeram depósitos judiciais), ingressaram com ações judiciais, para salvaguardar seus direitos e, agora, se veem diante da decisão de reconhecer ou não um ativo.
Segundo o referido Ofício-Circular, “a preocupação das áreas técnicas da CVM é que os usuários das demonstrações contábeis tenham condições de avaliar o possível impacto nos preços das ações de emissão das companhias de um reconhecimento de crédito fiscal ou reversão de passivo na cifra de bilhões de reais, com base em mensurações não confiáveis (cujos critérios de quantificação possam ainda estar pendentes de discussão) a serem posteriormente, respectivamente, revertidos ou novamente constituídos. A preocupação das áreas técnicas da CVM reside no risco de informação enganosa, com consequências danosas aos investidores do mercado de capitais brasileiro e, ainda, na possibilidade de distribuição de dividendos e/ou remuneração de administradores com base em resultados que podem não se materializar”.
Vale dizer, a CVM manifesta expressa preocupação com a segurança jurídica das informações necessárias ao regular funcionamento do mercado de capitais brasileiro, o que pode redundar em “consequências danosas aos investidores”, “distribuição de dividendos” e “remuneração de administradores” calculados com base em resultados fictícios.
A “mensuração confiável” é requisito elementar e indispensável para o reconhecimento contábil de qualquer ativo ou baixa de passivo. Logo, ausente o elemento confiabilidade na mensuração dos elementos quantitativos do registro contábil, é indevido o reconhecimento do ativo ou baixa do passivo, sem prejuízo de serem prestadas informações sobre o fato em notas explicativas.
Como é sabido, para além da postulada modulação dos efeitos da decisão, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional propõe ainda em seus embargos declaratórios perante o STF questão que impacta diretamente a mensuração do eventual indébito tributário de titularidade dos contribuintes, a saber, definir-se se o montante a ser excluído da base de cálculo do PIS/Cofins é o ICMS efetivamente recolhido ou aquele meramente incidente (destacado) na operação que gerou a receita tributada.
Cabe as companhias, representadas por seus administradores e suportadas por seus assessores, decidir a forma de registro de suas mutações patrimoniais, obedecidas evidentemente as normas gerais aplicáveis a cada tema. No entanto, considerando a relevância do valor reconhecido e o eventual impacto no resultado, e inclusive no preço de negociação das ações da companhia, recomenda-se extrema cautela na mensuração do valor do indébito a ser compensado ou restituído.
Um critério importante para diminuir o grau de incerteza na mensuração do registro contábil é o trânsito em julgado da decisão individual e concreta que reconhece o direito a exclusão do ICMS da apuração da base de cálculo do PIS/Cofins. E sobretudo: a expressa previsão no fundamento decisório de que o indébito deve ser calculado a partir do ICMS incidente (destacado) na operação e não simplesmente o ICMS eventualmente recolhido pela pessoa jurídica. Ausentes estes requisitos, o lançamento contábil torna-se não recomendável, haja vista a ausência até o presente momento de decisão do STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade, ou seja, dotada de efeitos processuais gerais.
Como se pode observar, a omissão do STF em definir de uma vez por todas um tema de extrema relevância econômica como o comentado, que pende na corte há mais de duas décadas, vem trazendo consequências negativas não apenas para os contribuintes, mas também para o próprio mercado de capitais brasileiro, de que faz prova o ofício circular da CVM.
Toda essa celeuma só ocorre em face da inexplicável atitude do STF que permite a ampliação do indesejado estado de insegurança jurídica que permeia o tema, cujos contornos já são amplamente conhecidos por todos os ministros da corte, como demonstram os bem fundamentados votos proferidos quando do citado julgamento.
Estou convencido de que o STF vem nos últimos anos prestando um desserviço ao sistema tributário brasileiro com a sua absoluta falta de compromisso com a estabilidade sintática e semântica dos conceitos adotados pelo legislador constituinte como instrumentos de controle no exercício do poder tributário e de limite às competências federativas. A nossa Corte Maior diariamente contribui para, ao seu alvedrio, destruir o alicerce construído pelo constituinte de 1988 em matéria tributária, colocando em seu lugar um conjunto desarticulado de entendimentos e conceitos cujo resultado tem contribuído para gerar mais conflito e insegurança jurídica.
A relação jurídica tributária constitui uma relação jurídica continuativa e “de massa”, em que os requisitos da segurança e da previsibilidade de sentido são indispensáveis para a efetividade da norma jurídica e do próprio dever tributário. Para tanto, é fundamental que se promova um ambiente de estabilidade na definição dos termos elementares da obrigação tributária, o que não vem ocorrendo no Brasil em face, sobretudo, da atitude do STF que resolveu refazer o sistema tributário plasmado pela Carta de 1988. E pior: muitas vezes até em plenário virtual, refazer de forma assistemática e sem qualquer compromisso com a coerência e com a própria jurisprudência, pois o significado do conceito ou da competência constitucional pode depender do relator sorteado para o caso levado a julgamento.
É natural que a substituição de ministros do STF leve a um momento de nova reflexão sobre algumas questões já amplamente decididas pelo tribunal. Não se nega a necessidade de a jurisprudência evoluir. No entanto, essa evolução não pode se transformar em viradas copernicanas, produzindo a destruição de conceitos e entendimentos sedimentados pela ordem jurídica, da qual a própria jurisprudência constitui elemento essencial.
No caso ora analisado, é absolutamente inexplicável a atitude do STF. Por que permitir que milhares de conflitos entre Fisco e contribuintes diariamente sejam criados e renovados, muitos sendo levados novamente ao Poder Judiciário, quando para obstar tal situação basta o simples julgamento de um recurso de embargos de declaração?
O eventual provimento, ainda que parcial dos embargos declaratórios opostos pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), pode gerar consequências inimagináveis nas maiores companhias brasileiras, com efeitos diretos inclusive sobre o mercado de capitais, já que muitas empresas já registraram e inclusive distribuíram o resultado do indébito aos seus acionistas e remuneraram seus administradores com fundamento neste “ganho”. E os tributos incidentes sobre a receita do indébito poderão ser compensados pelas empresas?
Do ponto de vista processual, as decisões transitadas em julgado, em princípio, deverão ser todas objeto de impugnação individual pela PGFN, como determina nossa lei processual. Ou será que o STF vai inventar um desfazimento geral e irrestrito? Diante das últimas decisões da nossa Suprema Corte, não me arrisco a fazer previsões. Infelizmente.
A responsabilidade coletiva pelo regular funcionamento do sistema tributário brasileiro é de todos, Fisco, contribuintes, Parlamento e, também, do STF, órgão máximo da estrutura judiciária brasileira, que não vem cumprindo a contento o papel que lhe cabe neste mister, como demonstra à saciedade o tema ora comentado.
A sociedade brasileira anseia por uma reforma tributária que traga justiça e menos complexidade fiscal. De nada adiantará os melhores técnicos do país produzirem uma reforma constitucional que maximize estes objetivos se o STF continuar atuando no sentido de criar o seu próprio sistema constitucional tributário, criando e distorcendo conceitos tributários à luz da própria engenhosidade hermenêutica, sem qualquer compromisso com um articulado de sentido constitucional e com o própria jurisprudência.
O STF cumprirá o seu papel de guardião da Constituição se decidir rapidamente o tema do ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins, respeitando o já decidido pela maioria dos seus ministros, e, assim, pondo fim ao supremo estado de insegurança jurídica que se instalou pela sua omissão durante todo este período onde o país aguarda o simples julgamento de embargos declaratórios que tão somente repisam temas já amplamente decididos pela corte.
Conjur, por Helenilson Cunha Pontes, 03/03/2021