A chegada do ano-novo sempre aumenta as expectativas pela concretização de mudanças. Entre elas está a realização de uma reforma tributária que possa diminuir a complexidade dos enunciados jurídicos atualmente vigentes no nosso país em matéria tributária, que hoje elevam o tempo e o dinheiro gastos pelos contribuintes para atender às inúmeras obrigações tributárias que a legislação lhes impõe sem diminuir a sensação de insegurança jurídica diante das interpretações dadas pelos órgãos da administração pública das diferentes esferas de governo para aqueles enunciados. Contudo, sabemos das dificuldades que precisarão ser enfrentadas para a aprovação de uma reforma tributária em um Estado como o brasileiro, composto da União, de estados-membros, do Distrito Federal e de municípios, todos entes federados detentores de diferentes competências tributárias que lhe foram atribuídas pela Constituição Federal de 1988.
Sobre esse ponto, em recente manifestação, o professor Paulo de Barros Carvalho lembrou que:
“A complexidade do nosso sistema surpreende ao mais impertinente e rigoroso observador. São nada menos de 5 (cinco) ordens jurídicas que se entretecem, num tecido que pretende ter, no primado da certeza, o denominador comum da homogênea multiplicidade de preceitos normativos: o subconjunto dos ordenamentos municipais; o dos estaduais, incluindo o do Distrito Federal; o forte e resistente âmbito da legislação federal; o subsistema nacional; e aquele que podemos reconhecer como o sistema total, abrangente dos demais, com a feição de unidade e de unicidade que o caracteriza”[1].
E por sabermos dessas dificuldades que podem postergar a aprovação de uma reforma tributária que redefina as competências tributárias dos entes federados é que não podemos ficar “de braços cruzados” esperando pelo advento desse novo momento da história do Estado brasileiro, em que talvez possamos trabalhar com uma tributação menos complexa e mais segura. Precisamos começar a fazer a nossa parte para diminuir os conflitos tributários que existem hoje em nosso país e que muitas vezes ocorrem por desrespeito aos limites prescritos pela Carta Magna para o exercício da competência tributária. Pois, como bem ensina o professor Roque Antonio Carraza:
“(…) os conflitos de competência em matéria tributária logicamente não existem e nem podem existir. A rígida divisão de competências tributárias, levada a efeito pela Lei das Leis, sumariamente afastou-os. Com efeito, se o fato ‘A’ só pode ser tributado pela pessoa política ‘X’, não há de haver conflitos entre ela e as pessoas políticas ‘W’, ‘Y’, ‘Z’ etc.
Por aí se vê que os conflitos de competência tributária surgem de situações fáticas, vale dizer, da inobservância das limitações que, em matéria fiscal, a Constituição da República impôs às pessoas políticas”[2].
Os municípios têm condições de começar essa mudança se tiverem a disposição de rever a sua forma de atuação em matéria tributária de acordo com as diferentes realidades econômica e social vividas por cada um. Se considerarem o fato de que uma arrecadação eficiente de suas receitas tributárias próprias pode viabilizar mais recursos para custear os serviços públicos que estão sob sua responsabilidade, os municípios poderiam dar o exemplo de como é possível reorganizar a estrutura da administração pública para cobrar tributos de forma constitucional e de acordo com as particularidades de cada local e, como consequência, garantir o retorno desses recursos para os próprios munícipes por meio da prestação de serviços públicos de qualidade.
Uma das atitudes que poderiam ser tomadas seria a revisão de legislações municipais ainda vigentes que prevejam a instituição e a cobrança de tributos já considerados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, como é o caso, por exemplo, da taxa cobrada em razão da prestação do serviço de limpeza de ruas e logradouros públicos (RE 576.321-QO) ou da taxa cobrada pela conservação de estradas rurais (RE 259.889-SP), que remunerariam serviços públicos que não são específicos e divisíveis, o que impede a cobrança dessa espécie tributária. Nesse ponto, uma revisão da legislação vigente poderia evitar questionamentos sobre a cobrança desses tributos e diminuir o contencioso tributário por questões já superadas pelos tribunais superiores.
Entretanto, o que merece mais atenção nesse processo de revisão é que se passe a cobrar os três impostos de competência municipal com respeito irrestrito ao arquétipo constitucional de cada um, bem como às normas gerais em matéria tributária prescritas pela legislação complementar nacional atualmente vigente.
Um dos conflitos que poderia ser evitado com essa atitude ocorre na identificação do sujeito passivo devedor de créditos tributários do imposto cobrado sobre a propriedade predial e territorial urbana (previsto no artigo 156, inciso I da CF). Ainda que o Superior Tribunal de Justiça tenha jurisprudência consolidada no sentido de que cabe ao município definir se o sujeito passivo desse imposto será o proprietário do imóvel urbano, o titular do seu domínio útil ou aquele que exerce a posse a qualquer título daquele imóvel (REsp 475.078-SP), muitas legislações municipais atualmente vigentes não deixam claro qual dos fatos que o artigo 32 do Código Tributário Nacional prevê como tributáveis por meio do IPTU será considerado pela autoridade administrativa municipal no momento de realizar o lançamento desse imposto. Essa falta de definição objetiva dá margem a uma atuação discricionária daquela autoridade na constituição do crédito tributário de IPTU, sem seguir critérios seguros na escolha do seu devedor. Alia-se a isso a existência de cadastros imobiliários desatualizados, que muitas vezes identificam como proprietários pessoas físicas ou jurídicas que não têm mais nenhuma relação com o bem imóvel a ser tributado, o que torna infrutífera qualquer medida tomada para se tentar buscar o pagamento do crédito tributário constituído a título de IPTU.
Sendo assim, é importante que os municípios brasileiros adotem medidas para atualizar as informações cadastrais dos imóveis existentes na zona urbana do seu território e prevejam, em suas legislações, o dever de os sujeitos passivos manterem aqueles cadastros sempre atualizados, com a estipulação de multa de ofício a ser aplicada no caso de descumprimento dessa obrigação acessória. Trata-se de medidas de baixa complexidade que podem ser adotadas por qualquer município e que certamente ajudarão a dar maior efetividade na cobrança do IPTU, seja por permitir a identificação do sujeito passivo correto desde o momento do lançamento do crédito tributário pela autoridade administrativa; seja por fornecer mais elementos para que seja possível exercer um controle mais efetivo da legalidade do crédito tributário vencido e não pago, no momento da sua inscrição em dívida ativa; seja, por fim, na disponibilização de informações que permitam a citação satisfatória do devedor em uma ação de execução fiscal.
No que diz respeito à cobrança do imposto que incide sobre as transmissões onerosas e inter vivos de bens imóveis e de direitos reais sobre bens imóveis, o chamado ITBI, é necessário que os municípios revisem o critério temporal da regra-matriz de incidência desse imposto que atualmente está previsto em suas legislações. Muitos desses entes federados ainda consideram que o fato jurídico tributável por meio do ITBI, que está previsto no inciso II do artigo 156 da CF, ocorre no momento da lavratura da escritura pública em que se formaliza o compromisso de compra e venda do imóvel.
Contudo, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal considera que somente com o registro da transmissão do bem imóvel ou do direito real sobre o bem imóvel é que ocorre o fato jurídico tributável por meio do ITBI, tendo em vista as prescrições do caput e dos parágrafos 1º e 2º do artigo 1.245 do Código Civil (ARE 805.859-AgR-RJ). Ou seja, qualquer cobrança de ITBI que seja feita antes do registro da transmissão do imóvel na sua matrícula será antecipada à ocorrência do próprio fato jurídico que pode ser tributado, o que caracteriza uma cobrança inconstitucional. Então, para evitar ações judiciais que demonstrem a nulidade dos créditos tributários de ITBI cobrados antes de serem devidos, é importante que os municípios revisem suas legislações para alinhá-las ao entendimento do STF sobre esse tema.
Quanto à cobrança do Imposto sobre Serviços (ISS), os municípios e o Distrito Federal têm que enfrentar questões cada vez mais complexas na delimitação de cada um dos cinco critérios que compõem a regra-matriz de incidência daquele imposto. Destacamos, aqui, duas delas: (i) a compreensão de qual fato jurídico pode ser considerado como prestação de serviço tributável por meio do ISS e (ii) a definição do município onde se considera ocorrido esse fato jurídico.
A primeira dessas questões é a delimitação de qual a materialidade que pode ser atingida por meio do ISS. Tendo em vista que o constituinte atribuiu àqueles entes federados, por meio do artigo 156, inciso III da CF, a competência para cobrar impostos sobre “serviços de qualquer natureza”, a compreensão do que é uma prestação de serviço e, mais que isso, dos detalhes de cada serviço executado é questão fundamental para que o ISS seja cobrado dentro dos limites daquela competência. Para isso, não basta que o Supremo Tribunal Federal já tenha firmado o entendimento de que a lista de atividades prevista no anexo da Lei Complementar 116/2003 é taxativa para definir quais são os serviços que podem ser tributados por meio do ISS (RE 615.580 RG-RJ); é necessário compreender os detalhes de cada prestação de serviço realizada para poder afirmar se ela corresponde ou não a uma daquelas atividades que permitem a incidência desse imposto.
Considere-se, por exemplo, a locação de uma máquina agrícola acompanhada da contratação da pessoa que fará o seu manuseio em uma plantação; trata-se de um fato jurídico que está fora do campo de incidência do ISS, conforme a Súmula Vinculante 31 do STF, ou é possível considerar que ele corresponde a uma das atividades previstas no item 7.16 da lista anexa à LC 116/2003, com a redação dada pela LC 157/2016? Nesse exemplo e em tantos outros serviços ainda mais complexos, as informações que constam no documento fiscal emitido para registrar esse fato jurídico ou até mesmo aquelas que estão no contrato particular estabelecido entre as partes podem não ser suficientes para relatar a verdadeira natureza jurídica do fato que foi realizado, o que demandaria uma análise mais detalhada das circunstâncias reais em que esse fato ocorreu para que se possa definir se o sujeito que o praticou deve ou não cumprir as obrigações tributárias relacionadas ao ISS.
E mesmo que esse tipo de questão seja superada, ainda é necessário enfrentar o problema da definição do local em que esse serviço foi prestado para identificar o Município competente para tributá-lo por meio do ISS. É a definição do critério espacial da regra-matriz de incidência do ISS, que está intrinsecamente relacionado à concretização do seu critério material: o ISS é devido onde o serviço é prestado. Para evitar os conflitos que podem surgir sobre essa questão, é fundamental que os municípios sigam as normas gerais prescritas pelos artigos 3º e 4º da LC 116/2003 para a definição desse critério, no exercício do papel que lhe foi atribuído pelo artigo 146, inciso I da CF. Ou seja, é necessário compreender que, em regra, a prestação de serviço ocorre no local do estabelecimento prestador, entendido esse como o local onde estão reunidos os elementos necessários para a execução do serviço, havendo casos excepcionais em que a natureza jurídica da atividade realizada exige que essa execução se dê em local distinto daquele estabelecimento.
O grande problema é que muitos municípios ainda ignoram aquelas normas gerais prescritas pela legislação complementar nacional para definir que, em qualquer caso, sempre será apenas um município que terá competência para cobrar ISS sobre uma prestação de serviço. E, ao ignorarem essas normas, sujeitam os prestadores de serviços a uma dupla tributação inconstitucional, o que os obriga a recorrer ao Judiciário para buscar a solução para um conflito que já poderia ter sido evitado se a legislação nacional tivesse sido aplicada corretamente pela administração do município que cobrou o ISS além da sua competência.
Sabemos que as questões exemplificadas aqui podem parecer simples, em um primeiro momento, diante da complexidade da atual legislação sobre tributos federais, como as contribuições sociais ou o IRPJ. Contudo, é exatamente por conta dessa aparente simplicidade que queremos chamar a atenção para a quantidade de problemas que os contribuintes brasileiros enfrentam atualmente e que poderiam ser resolvidos se os entes federados atuassem dentro dos limites que a Constituição Federal estabeleceu para a competência tributária de cada um. Como bem alerta o professor Paulo Ayres Barreto:
“Diante da natural tensão que se estabelece nas relações entre fisco e contribuinte, exsurge na atual ordem constitucional uma forte preocupação em dar garantias ao contribuinte, em face dos entes tributantes. A atuação dos entes tributantes é pautada por um conjunto de regras e princípios assecuratórios de direitos do contribuinte. Evidentemente, há também diversas prescrições que estabelecem o legítimo espaço de atuação dos entes tributantes (…)”[3].
Sendo assim, ao invés de apenas esperarmos por uma reforma tributária que mude radicalmente o nosso sistema tributário, é hora de as administrações tributárias revisarem suas legislações e os procedimentos que adotam na constituição e na cobrança dos créditos tributários que lhes competem de tal forma que procurem evitar a manutenção de conflitos que já foram solucionados pelo constituinte, pelo legislador complementar nacional ou pela jurisprudência.
Em outras palavras, é necessário buscar a aplicação segura e conforme a Constituição das regras que compõem o sistema tributário atual, pois de nada adiantará o advento de um novo sistema tributário se as suas novas regras não forem aplicadas corretamente. E os municípios, por estarem mais próximos da ocorrência dos fatos jurídicos que podem ser tributados por eles, têm condições de fazerem a sua parte para colocar em prática essa mudança que todos esperamos.
[1] CARVALHO, Paulo de Barros. Apresentação do XV Congresso do IBET. In: 30 anos da Constituição Federal e o sistema tributário brasileiro. SOUZA, Priscila (org.). CARVALHO, Paulo de Barros (coord.). São Paulo: Noeses, 2018, p. XIII.
[2] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 30 ed. rev., ampl. e atual. até a EC 84/2014. São Paulo: Malheiros Editores, 2015, p.1132-1133.
[3] BARRETO, Paulo Ayres. Planejamento Tributário: Limites Normativos. São Paulo: Noeses, 2016, p. 67-68.
Por Francielli Honorato Alves
Francielli Honorato Alves é advogada, professora do Curso de Especialização em Direito Tributário do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), mestre em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Direito Tributário pelo Ibet.
Revista Consultor Jurídico, 15 de janeiro de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-jan-15/francielli-alves-reforma-tributaria-municipios-podem-iniciar