Os caminhos que levam peregrinos à cidade de Santiago de Compostela, na Espanha, são mundialmente conhecidos como uma experiência que proporciona, ao solitário caminhante, o autoconhecimento.
Nunca desbravei esta jornada. As veredas da vida conduziram-me para outra cidade hispânica, situada na comunidade autônoma de Castilla y León, no centro do país: Salamanca. Desde então, as escolhas, ao longo da minha trajetória acadêmica, foram motivadas por esta experiência.
Após graduar-me em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais, empolgado com a experiência de construção da União Europeia e pela recente criação do Mercosul, parti rumo ao velho mundo.
Depois de uma rápida experiência na Inglaterra, tive a oportunidade de me estabelecer na cidade de Salamanca e investigar o processo de harmonização da tributação sobre o consumo, vivenciado pelos países que se integravam. O processo era considerado requisito essencial para a construção do mercado comum europeu. Não se funda um espaço de liberdades – de pessoas, bens, mercadorias, serviços e capitais – sem esta harmonização fiscal.
A descoberta de que a construção do regime comum do Imposto sobre o Valor Acrescido (IVA) pudesse ser considerado uma das pedras angulares para concretizar a retomada econômica e o sonho de paz europeu, idealizado após duas guerras fratricidas que arruinaram o continente, era mais que fascinante.
Percebi a possibilidade de aglutinar os anseios do jovem pesquisador: conciliar o estudo do árido direito fiscal, de minha predileção, com as inquietações provocadas pelo direito internacional público e os princípios humanísticos delineados desde a assinatura dos Tratados de Vestfalia.
Nunca desisti deste caminho. De volta ao Brasil, o mestrado na PUC/Minas e o doutorado na Universidade de São Paulo foram dedicados à temática da harmonização do IVA e a sua importância no desenvolvimento do Mercado Comum do Sul.
Ademais, alegrava-me saber que indiretamente, a mudança proposta para possibilitar a nossa integração poderia arrefecer dois problemas graves vivenciados pelo Brasil, no plano político interno: a guerra fiscal e o conflito de competências tributárias, que tanto contribuíram para arruinar os cofres públicos e culminaram com as dificuldades financeiras vivenciadas pelos entes da República Federativa do Brasil.
Ao caminhar, entretanto, pude constatar que esta era apenas a ponta do iceberg e as consequências do modelo adotado iam muito além da erosão da arrecadação: o sistema tributário brasileiro, insculpido na Carta Republicana de 1988, contribuiu, e ainda contribui, para perpetuar a desigualdade social que cinge a nação.
Neste sentido, cresceu o interesse pelo estudo dos projetos de reformas do sistema tributário, que deveriam estar comprometidos, não apenas com o aperfeiçoamento da arrecadação e a com a efetivação dos direitos sociais já positivados no texto vigente, mas que também pudessem ser capazes de transformar a desigual realidade e entronizar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável propostos pela Organização das Nações Unidas (ONU), em prol das presentes e futuras gerações.
Após vários percursos, julgo que profuso papel deva ser dado à extrafiscalidade dos tributos, superando a narrativa da neutralidade da tributação, corrente que defende que a função da exação restringe-se a gerar ótimas receitas, reservada às políticas públicas o desfecho de combater os males decorrentes das desigualdades.
Naturalmente, sem abandonar esta segunda hipótese, demasiado necessária, é dever do Estado transformar – por meio da justiça distributiva, da seletividade e da progressividade da tributação – a realidade distorcida e retroalimentada pelo sistema, tendo como fio condutor a busca pela plenitude do respeito à dignidade da pessoa humana.
Regresso a Salamanca, transcorridos vinte e dois anos, para concluir o pós-doutorado na multisecular universidade e defender a tese da possibilidade de construção de um sistema tributário comprometido em densificar o princípio da dignidade da pessoa humana, materializar os direitos sociais dos cidadãos e contribuir para o desenvolvimento sustentável da nação.
Estariam estes princípios presentes nos diversos projetos de reforma tributária que tramitam no Congresso Nacional da República Federativa do Brasil? Infelizmente, presumo que não. Somos, quase sempre, tardios.
FONTE: Valor Econômico –9 de agosto de 2019
Por Marcelo Jabour