Na primeira parte desta série sobre a reforma tributária, demonstrou-se que, tal como se encontram, as PECs 45 (da Câmara) e 110 (do Senado) partem de premissas errôneas e padecem de inconstitucionalidade, devendo, portanto, ser rejeitadas.
Para que tais críticas sejam construtivas, entretanto, é preciso agora cumprir com o “dever de prova” inerente ao debate racional, em que “quem fala responde pelo que diz”[1]. Ou seja, não basta condenar aquelas propostas. Também se deve apontar alternativas, respondendo à seguinte pergunta: como aprimorar nossa tributação do consumo?
Em síntese, o consumo deve ser tributado pela União através de IBS federal e Imposto Seletivo. Os estados e Distrito Federal devem ter figura análoga, o IBS estadual. Aos municípios convém atribuir competência para gravar serviços residuais de interesse prevalentemente local e prestados a consumidor final, listados em lei complementar. Vejamos como isso funcionaria.
IBS dual
Na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, a ideia de um IBS único foi abandonada, por entender-se que a figura “concentra ainda mais, no âmbito da União, a concepção e formulação do sistema tributário” e resulta em subtrair dos estados e municípios “a competência para tratar, com autonomia, dos seus principais instrumentos de arrecadação”. Por isso, o Substitutivo apresentado pela comissão aventa a hipótese de “bipartir o Imposto sobre Bens e Serviços”, num modelo “dual”. Em suma, seriam fundidos “em um IBS” o IPI, PIS, Cofins, Salário-Educação e Cide-Combustíveis, e, “em outro IBS”, “o ICMS e o ISS”, sendo que “este último” teria “alíquotas fixadas por lei complementar, mas com a gestão e administração a cargo de um conselho composto por membros indicados” pelos estados e municípios.
Com isso, tenta-se contornar os problemas federativos e de regressividade anteriormente descritos. Alguns afirmam, inclusive, que o modelo dual conta com os precedentes do Canadá e da Índia, cujas federações têm dimensões e características semelhantes às do Brasil. Porém, o conselho para administração do IBS cria instabilidade entre os entes, pois não há critérios que permitam o controle de sua futura atuação. Ademais, a transição imediata para esse modelo não é viável, como adiante se verificará dos exemplos canadense e indiano.
Canadá: IVA dual introduzido gradativamente mediante construção política dificultosa
Na década de 1980, a tributação sobre o consumo canadense se dava por meio do Manufacturers Sales Tax (MST) no âmbito federal, além dos impostos de vendas provinciais. O MST respondia por 15% da arrecadação da União, mas seus vícios estruturais resultavam em falta de transparência e efeito cumulativo, onerando insumos, bens de capital, alimentos básicos e exportações. Com a crise e o recém firmado acordo de livre comércio com os Estados Unidos, tais problemas se agravaram. O imposto, originalmente concebido para onerar apenas a indústria, teve suas bases ampliadas, passando a incidir sobre diversos elos da distribuição. Além disso, de 1984 a 1989, as alíquotas saltaram de 9% para 13,5%, isto é, houve aumento de 50% no período. Tais fatores fizeram com que a tributação sobre o consumo se tornasse questão relevante a ser enfrentada nos anos seguintes[2]-[3].
Houve uma tentativa de substituir os tributos federal e provinciais acima referidos por um IVA amplo, não cumulativo e com carga não superior à então vigente, em 1989. A ideia, porém, foi abandonada, pois as províncias não aceitaram renunciar à autonomia para dispor sobre como e em que intensidade tributar as vendas. Assim, na reforma de 1991, a União optou por introduzir seu próprio Goodsand Services Tax (GST) e deixar para momento oportuno discussões sobre eventual harmonização. Refratária a esse conceito, ainda em 1991, a província de Québec somente aceitou adotar IVA semelhante ao federal desde que, em seu território, tanto o GST quanto o Québec Sales Tax (QST) fossem administrados, arrecadados e fiscalizados pelo poder local para posterior repasse à União dos valores que lhe competiam, sistema que perdura até hoje. A harmonização propriamente dita, em que o tributo local é administrado, arrecadado e fiscalizado pelo poder central, iniciou-se apenas em 1997 mediante adesão acordada junto ao governo federal pelas províncias de Nova Scotia, New Brunswick e Newfoundand Labrador[4]. Somente em 2010 a província mais próspera do País (Ontario) aderiu ao sistema harmonizado[5]. E há províncias que, ainda hoje, não se alinham a esse sistema, possuindo ou não tributos próprios sobre vendas[6].
Portanto, embora haja consenso quanto a seus efeitos benéficos para o país[7], o IVA dual canadense é fruto de longo processo político e, mesmo agora, não há harmonização completa.
Índia: IVA dual introduzido por completo mediante acordo político com os entes descentralizados
A discussão quanto ao IVA na Índia remonta ao início da década de 1990, alimentada por críticas aos tributos indiretos e seletivos então vigentes. Dentre elas, a existência de mais de 390 alíquotas, bases fragmentadas por alto número de isenções concedidas a lobbies, sobreposição entre gravames federais e estaduais e incidência de tributos sobre si próprios ou sobre outros tributos. Também havia efeito cascata, causado pela tributação de insumos e bens de capital e por falhas na desoneração das exportações. Trocas interestaduais eram desestimuladas pela incidência do Central Sales Tax (CST) federal e de seus análogos locais. Além disso, a administração e arrecadação padeciam de ineficiência, dada sua estrutura retrógrada e pulverizada. Apesar de algumas tentativas, a divisão pouco racional de competências impositivas entre União e Estados impediu a criação de IVAs efetivamente uniformes e neutros, fossem eles federais ou estaduais[8].
Para viabilizar a adoção de IVA genuíno e com estrutura dual (em respeito às autonomias locais), a então divisão constitucional de competências privativas federais e estaduais para tributação do consumo teve que ser substituída pelo atual modelo, em que tanto União quanto estados detêm competência concorrente para tributar essas bases. Pelos interesses envolvidos, tal alteração observou rito específico, que exige, além de aprovação por maioria especial nas duas Casas do Parlamento, ratificação por pelo menos metade dos legislativos estaduais. Esse mecanismo confere à realocação de competências impositivas tônica federativa, na medida em que esta não se dá por imposição do poder central (Parlamento), mas mediante concordância de parcela relevante dos Estados. Desse modo, a partir da 101ª Emenda à Constituição Indiana, em setembro de 2016, mediante acordo entre os poderes central e locais, com adesão de ampla maioria destes, tornou-se possível introduzir o Goodsand Services Tax, em suas versões central (CGST) e estadual (SGST), em vigor desde julho de 2017[9].
As principais características da nova figura são a tributação no destino, base ampla, faixas limitadas de alíquotas[10], não cumulatividade plena, administração computadorizada a nível nacional e baixo custo de compliance (nota fiscal eletrônica). Pelo prazo de cinco anos, a União deverá compensar financeiramente os estados por eventuais perdas resultantes do novo modelo, adotando-se como base o biênio 2015/2016[11].
Embora o modelo acima descrito seja interessante, dada a similitude entre dois países de dimensões continentais e estruturados sob a forma federativa, parece-nos que ele seria de difícil implementação no Brasil. As considerações feitas, entretanto, justificam-se por se tratar de um dos países que implementaram reformas similares às que agora se pretende introduzir.
Brasil: como introduzir o IVA dual?
Diante dos precedentes acima examinados, questão que se põe é saber como introduzir o IVA dual em nosso país sem que isso implique imposição do poder central e viole a autonomia dos entes. De fato, embora dotado de dualidade, o IBS previsto no Substitutivo da PEC 110/19 é de natureza impositiva. Como tal, não é próprio compará-lo aos modelos do Canadá e da Índia, que, cada qual a seu modo, respeitaram os interesses e o poder de decisão dos entes locais. Realmente, o IBS dual previsto no Substitutivo seria instituído por lei complementar federal, uniforme, com alíquota e regulamentação únicas, sendo expressamente “vedada a adoção de norma estadual autônoma”. Portanto, diferentemente do que se fez naqueles países, a ideia elimina por completo o poder de os entes, por lei própria, disciplinarem quaisquer aspectos da tributação do consumo.
Essa simples constatação recomenda que o debate se concentre em encontrar soluções que permitam uma introdução que prestigie o pacto federativo, e não o contrário. Para tanto, num primeiro momento, a estrutura constitucional de um IBS federal e outro estadual deve ser delineada de forma a eliminar os vícios dos atuais tributos sobre o consumo. Leis complementares definirão os contornos gerais de ambos os impostos, mas União e estados terão autonomia para instituí-los por leis próprias e, no que for possível, estruturá-los conforme os respectivos interesses. Num segundo momento, poderá ocorrer a harmonização dos tributos locais com o IBS federal, por adesão dos respectivos estados manifestada nos termos da Constituição e da lei complementar.
IBS federal
Para ser válido e funcional, o IBS federal deverá ter como fato gerador operações com bens móveis, direitos e serviços, de modo que a tributação não recaia sobre a simples propriedade, posse, uso e materialidades sem conteúdo econômico. Essa base é ampla, ou seja, o imposto incidirá sobre todos os bens, serviços, cessões de uso etc., inclusive os negócios realizados por meio digital. A única exceção são os serviços prestados a consumidor final de interesse preponderantemente municipal, listados em lei complementar, que permanecerão sujeitos ao ISS. O imposto deverá ter até três faixas de alíquotas (padrão, reduzida e zero), conforme prática internacional, na linha do levantamento realizado pela OCDE acima descrito. A não cumulatividade deverá ser plena, mediante crédito financeiro de insumos e bens de capital, ficando desoneradas as exportações. No que se refere à Zona Franca de Manaus, enquanto mantida, deverá haver redução do IBS federal proporcional aos atuais incentivos de IPI.
IBS estadual
Com mesmo fato gerador, base de cálculo, faixas de alíquotas e demais contornos gerais do IBS federal, a versão estadual deverá ser orientada pela tributação no destino, a fim de eliminar a guerra fiscal entre os entes. Lei complementar definirá os elementos essenciais desse tributo, como fato gerador, regime de compensação, hipóteses de substituição tributária e incidência monofásica, desoneração das exportações, dentre outros aspectos. Os respectivos entes terão competência para alocar produtos e serviços nas faixas de alíquotas predefinidas, bem como para arrecadar e fiscalizar o tributo, conforme leis estaduais próprias, no exercício de sua autonomia.
Incentivos regionais passarão a ser concedidos via gasto orçamentário e não mais com base no imposto estadual. Em caso de não pagamento do incentivo a tempo e modo por parte do estado concedente, o respectivo valor poderá ser compensado com débitos tributários estaduais do contribuinte, com possibilidade de cessão após determinado prazo.
Imposto Seletivo
A par do IBS federal, a União terá competência para a instituição de Imposto Seletivo sobre operações com bens e serviços. Para evitar que ele incida nas mesmas condições do IBS, deverá constar do texto constitucional que somente os bens especificados em lei complementar poderão ser por ele alcançados e, assim mesmo, em função de sua essencialidade. No contexto atual, é desejável que a coexistência de ambas as figuras não gere aumento de carga tributária, de modo que a alíquota do IBS seja graduada tendo em vista a previsão de arrecadação do seletivo. O montante arrecadado terá as mesmas destinações aplicáveis ao IBS.
Imposto municipal sobre serviços prestados prevalentemente a consumidor final (ISS)
A fim de preservar a autonomia impositiva e financeira dos municípios, o atual ISS terá seu escopo alterado, passando a incidir sobre a prestação de serviços que atendam a interesses locais e que sejam prestados prevalentemente a consumidor final. Tais serviços deverão ser previstos de forma taxativa em lista veiculada por lei complementar. Sobre esses serviços não recairá o IBS. Dentre outros, estarão sujeitos ao novo ISS, em especial, aqueles serviços classificados pelo IBGE como “prestados às famílias”, entre os quais: hotelaria, serviços de alimentação e bebidas, serviços de recreação, cultura e lazer, serviços esportivos e clubes sociais, além dos chamados serviços pessoais (lavanderias, salões de beleza, funerárias, estabelecimentos de ensino, pequenas clínicas e consultórios médicos). A carga tributária deverá ser dimensionada de modo a absorver o PIS e a Cofins, que hoje incidem sobre esses itens e pertencem à União.
Deve-se salientar, a propósito, que a transferência dos demais serviços ao campo impositivo do IBS federal e do IBS estadual não prejudicará os municípios. Afinal de contas, tanto um quanto outro serão obrigatoriamente partilhados com as autoridades municipais, o que garante uma justa repartição do bolo tributário. Ademais, como a União e os estados estão melhor equipados para a fiscalização de grandes negócios (inclusive os de natureza digital), haverá ganhos de eficiência arrecadatória que também aproveitarão aos municípios.
Conclusão
O modelo acima descrito parece minimizar a complexidade e onerosidade do ICMS, IPI, ISS, PIS e Cofins, sem criar novos problemas, sejam federativos ou anti-isonômicos. Entretanto,
os problemas de nosso sistema tributário não se resumem ao consumo. Na terceira e última parte desta série, apontaremos outros problemas que merecem ser enfrentados, com as soluções que nos parecem adequadas.
[1] FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p.32.
[2] Cf. BOADWAY, Robin & WATTS, Ronald. Fiscal federalism in Canada. Queen’s University: Ontario, julho/2000. PP. 82-85.
[3] Cf. BIRD, Richard. The GST/HST: creating an integrated sales tax in a federal country. Georgia State University: Atlanta, abril/2013. PP. 2-14.
[4] Cf. Canada. Excise tax act, parte IX e item 277.1 e ss..
[5] Idem, ibidem.
[6] Cf. Ernst & Young. Worldwide VAT, GST and Sales Tax Guide, 2019.
[7] Cf. BIRD, Richard. Op. cit.
[8] Cf. BURGESS, Robin; HOWES, Stephen & STERN, Nicholas. Value-added tax options for India. In: International Tax and Public Finance Review, 2. Kluwer Academic Publishers, 1995. PP. 109-141.
[9] Cf. Governo da Índia. GST – conceptand status. Relatório oficial do Comitê de Tributos Indiretos e Aduaneiros, da Receita Federal / Ministério das Finanças da Índia. Abril/2019.
[10] As alíquotas são 0%, 5%, 12%, 18% e 28% (Cf. Governo da Índia. Op. cit. ibid.).
[11] Governo da Índia. Op. cit. ibid.
Por Hamilton Dias de Souza, Humberto Ávila e Roque Antônio Carrazza
Hamilton Dias de Souza é fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados (SP) e Advocacia Dias de Souza (DF), especialista e mestre em Direito Tributário pela USP.
Humberto Ávila é fundador do escritório Humberto Ávila Advocacia e professor-titular de Direito Tributário na Faculdade de Direito da USP.
Roque Antônio Carrazza é é fundador do escritório Roque Carrazza Advogados Associados e professor-titular de Direito Tributário da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 9 de novembro de 2019