Preâmbulo
Na quinta-feira passada (18/7) publiquei o primeiro texto na ConJur sobre reforma tributária, apresentando os pilares de uma reforma ideal do sistema tributário nacional. A partir deste artigo, analisarei as principais propostas em debate, começando pela Proposta de Emenda Constitucional 45, em sua versão original.
A opção por começar pela PEC 45 se justifica por várias razões. Em primeiro lugar, esta é a proposta que mais se debateu nos meios acadêmico, profissional e empresarial neste ano. Ademais, em 20 anos na área tributária, nunca vi um trabalho tão sério para o desenvolvimento de uma proposta de reforma. Concordemos ou discordemos da proposta, há que se reconhecer o trabalho dos membros do Centro de Cidadania Fiscal em seu desenvolvimento.
A PEC 45 é por demais complexa para ser analisada integralmente em um texto só, em um artigo limitado a 15 mil caracteres (com espaços). Portanto, dedicaremos pelo menos dois artigos a essa proposta. Talvez mais.
Neste primeiro estudo, analisaremos um tema que vem sendo esquecido, tratado como coadjuvante, enquanto o protagonista IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) brilha em cena. Estamos nos referindo aos tributos extrafiscais para inibir o consumo, previstos no novo inciso III do artigo 154 da Constituição Federal.
1. A nova competência extrafiscal na PEC 45
A PEC 45 dá nova redação ao artigo 154 da Constituição Federal, que passaria a viger com a inclusão do inciso III abaixo:
“Art. 154. A União poderá instituir: […]
III – impostos seletivos, com finalidade extrafiscal, destinados a desestimular o consumo de determinados bens, serviços ou direitos” (destaque nosso).
Vamos analisar esse dispositivo a seguir, decompondo cada uma de suas partes.
1.1. Impostos
A primeira palavra deste novo inciso III é cheia de significado. Em primeiro lugar, temos que a competência é para a criação de impostos. Portanto, a espécie tributária é aquela prevista no artigo 16 do Código Tributário Nacional, que é “o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte”.
A PEC 45 não traz nenhuma delimitação das hipóteses de incidência em potencial de tais impostos. Porém, tratando-se de impostos, deverão, necessariamente, incidir sobre situações denotativas de capacidade contributiva.
De outro lado, o texto ora em comento não fala em imposto, mas em impostos, no plural. Assim, é possível inferir que a expectativa é termos, pelo menos, dois impostos criados com base na competência outorgada pelo inciso III do artigo 154. Talvez três, ou quatro, ou mais. Não é possível ter certeza sobre quantos impostos serão editados com base na nova competência que seria outorgada pela Constituição.
1.2. Impostos seletivos
É no mínimo estranha a referência à seletividade. Com efeito, a noção de seletividade é vazia. A seletividade, em si, não denota qualquer critério. Seriam impostos seletivos em função de quê? O artigo 153, parágrafo 3º, I, da Constituição Federal, ao tratar da regra de seletividade do IPI, estabelece que ele “será seletivo, em função da essencialidade do produto”. Ou seja, estabelece a seletividade como regra e a essencialidade do produto como critério de seletividade. Em outras palavras, não é toda e qualquer diferenciação seletiva entre produtos que será legítima, mas apenas aquelas que tenham como critério a essencialidade do produto.
A leitura do texto proposto para o inciso III não nos apresenta qualquer critério de seletividade. Portanto, de impostos seletivos não se trata. Dessa forma, parece-nos que melhor seria, em termos redacionais, a eliminação da palavra “seletivos”.
1.3. Impostos com finalidade extrafiscal
Seguindo a revolução representada pelo novo desenho constitucional das contribuições pós-1988, a competência outorgada pelo inciso III do artigo 154 é finalística. Como mencionamos anteriormente, uma vez que a PEC 45 não apresenta a materialidade tributável, os impostos a serem criados seriam legitimados pela sua finalidade extrafiscal.
Agora, o que é dizer que a finalidade é extrafiscal? É declarar que o fim dos impostos em questão não é prioritariamente arrecadatória, que o tributo está sendo utilizado com algum propósito que não é, principalmente, arrecadar.
Parece-nos que, assim como a referência à seletividade, a menção à extrafiscalidade tende a ser geradora de controvérsias. Afinal, todo tributo tem função de arrecadar. Não a tivesse, não seria tributo. Da mesma forma, todo tributo tem efeitos sobre as decisões dos contribuintes, por mais que se busque a neutralidade como princípio.
O principal problema do proposto inciso III não é, contudo, uma questão de forma, mas de mérito. Já vimos que os impostos propostos são finalísticos, que sua finalidade principal declarada não é arrecadar. Aí fica a pergunta: qual seria, então, a sua finalidade?
1.4. Impostos destinados a desestimular o consumo de determinados bens, serviços ou direitos
Na parte final do inciso III descobrimos sua finalidade: desestimular o consumo de determinados bens, serviços ou direitos. Portanto, caso seja criado um imposto que não tenha como finalidade precípua desestimular o consumo, ele será inconstitucional.
É neste ponto que temos aquele que nos parece ser o mais grave vício da regra de competência proposta: ela não traz nenhuma indicação de qual(is) seria(m) o(s) critério(s) para a legitimidade de um imposto criado com a finalidade de desestimular determinado consumo.
A longa justificativa da PEC 45 traz apenas um breve parágrafo sobre a alteração proposta no artigo 154, onde se lê que, “através da inclusão do inciso III no art. 154, introduz-se na Constituição a possibilidade de criação de impostos seletivos, que têm como objetivo onerar o consumo de bens e serviços geradores de externalidades negativas ou cujo consumo se deseja desestimular, como cigarros e bebidas alcoólicas”.
A crítica principal a este inciso III é, sem espaço para dúvidas, a falta de critério. Note-se que a criação de um imposto específico para discriminar fiscalmente certa atividade, para ser compatível com o princípio da isonomia, tem que se basear em um critério definido na Constituição.
Quer-se desestimular o consumo de determinados bens, serviços e direitos por que razão? É para a proteção da saúde? É para a proteção do meio ambiente? Qual valor constitucionalmente relevante está sendo concretizado com a criação desse imposto extrafiscal finalístico?
Há 200 anos, o chief justice da Suprema Corte americana John Marshall proferia sua manifestação no célebre caso McCulloch vs. Maryland, onde deixou consignada uma das frases mais famosas da história da tributação, ao enunciar que “o poder de tributar envolve o poder de destruir” (“the power to tax involves the power to destroy”).
Ora, a atribuição de uma competência cuja única baliza constitucional é que a mesma seja exercida para desestimular o consumo é, na verdade, um cheque em branco para a criação de impostos extrafiscais.
Além de ser uma competência das mais amplas, ela ainda pode ser exercida de forma a limitar direitos legítimos, ainda mais em um ambiente como o atual, onde questões religiosas e comportamentais tomam a agenda do país.
Podemos recordar, por exemplo, a posição defendida por Ives Gandra da Silva Martins em sua tese de doutorado, quando este autor defendia que se utilizasse a tributação para desestimular certas situações que, na visão do autor, seriam desaconselháveis, “pois a corrosão moral e o deletério reflexo que geram, em verdade, terminam por justificar freios maiores do que os atualmente existentes” (MARTINS, Ives Gandra da Silva Martins. Teoria da Imposição Tributária. 2 ed. São Paulo: Ltr, 1998. p. 348).
O autor segue para sustentar a utilização extrafiscal e finalística da tributação para desaconselhar atividades em seu ver moralmente reprováveis. Em suas palavras, “não se discutiria se a peça de Racine teria maior ou menor densidade artística que as peças do famoso meritrólogo Zé dos Anjos, mas se o nível de tributação estaria vinculado, por exemplo, ao aparecimento de mulheres despidas. Quanto mais cenas, tanto maior seria a incidência do tributo que se viesse a escolher, como mostrarei no próximo capítulo. O critério passaria a ser, portanto, objetivo. Eliminar-se-ia a censura para tais espetáculos, mas seriam tributados tanto mais quanto mais pornográficos fossem. E o conceito de pornografia seria detectado de forma objetiva, adotando-se critérios como número de pessoas, duração de cenas, e outros” (Op. Cit., p. 351).
Ives Gandra vai sustentar o mesmo para a tributação de motéis, revistas pornográficas e até de programas de televisão, ao argumentar que, “se se comparar, por exemplo, o número de famílias bem construídas em Hollywood, ou que resistem aos anos, com a classe média dos cidadãos correntes, verificar-se-á a tragédia da vida familiar que existe no boêmio meio artístico, símbolo do cinema mundial” (Op. Cit., p. 364).
Ora, em um país claramente conservador, onde o clamor dos likes e o poder dos tweets têm se mostrado mais poderosos do que cláusulas pétreas, é a nosso ver impensável a outorga de uma competência tributária aberta para a instituição de impostos para desestimular o consumo, isso sem que a própria Constituição estabeleça o critério de validade de tais impostos. Uma regra como a proposta no inciso III do artigo 154 da Constituição Federal teria o poder de transformar o sistema tributário no maior instrumento de censura e perseguição de minorias do ordenamento jurídico brasileiro.
1.5. Conclusão sobre o artigo 154, III, da Constituição, conforme a PEC 45
Conforme os comentários acima, cremos que a redação proposta para o artigo 154, III, na forma definida na PEC 45, é infeliz, para dizer o mínimo. Se não é possível sustentar que esse dispositivo seja inconstitucional em abstrato, certamente os tributos criados com base nesta regra atributiva de competência podem se mostrar inconstitucionais em concreto.
Dessa forma, considerando nossa análise, parece-nos que o ideal seria a exclusão deste novo inciso III do artigo 154 do texto da PEC 45. Contudo, caso se decida pela sua manutenção, cremos que a redação indicada para o mesmo seria a seguinte:
“Art. 154. A União poderá instituir:
[…]
III – impostos com a finalidade de desestimular o consumo de determinados bens, serviços ou direitos em razão de riscos à saúde pública, ao meio-ambiente e à segurança pública”.
A despeito dessa sugestão, há justificadas razões para ponderarmos se realmente faz sentido a inclusão desse dispositivo na Constituição, como passamos a comentar.
2. Há razões para extinguir o IPI?
Não só a PEC 45, mas também outras propostas extinguem o IPI com a finalidade de simplificação sistêmica. Será que faz sentido a extinção do IPI somente para criar outro(s) tributo(s) com finalidade extrafiscal?
Em toda essa discussão sobre reforma tributária há, claramente, uma certa sedução do novo, um bradar pelo corte das cabeças dos tributos existentes. Contudo, mudança nem sempre é melhor do que estabilidade. Há que se pensar muito, mas muito antes de extinguir tributos com décadas de história, com produção doutrinária significativa, com jurisprudência desde o mais subalterno órgão de aplicação até a suprema corte do país. Certamente não podemos nos ver amarrados ao passado, incapazes de mudar. Não é isso que estamos defendendo. Entretanto, não devemos deixar que a sedução do novo justifique a mudança pela mudança. Vejamos.
A proposta do artigo 154, III pela PEC 45 busca a criação de impostos extrafiscais para inibir certos consumos. Ora, este papel hoje já é exercido pelo IPI, um imposto com a seletividade prevista na Constituição, com um critério de seletividade também constitucionalmente definido — essencialidade —, em relação ao qual há doutrina e jurisprudência que servem de balizas para o intérprete.
Pode-se objetar dizendo que a seletividade do IPI não é perfeita, que ele incide também fora do campo da extrafiscalidade etc. Contudo, todas essas críticas, que são procedentes, podem ser resolvidas com um decreto. Basta reduzir a zero todas as alíquotas do imposto e manter sua incidência somente nos casos em que ele seja tipicamente extrafiscal.
Ainda seria possível um segundo nível de crítica, argumentando-se que a redução por decreto seria insegura, na medida em que bastaria um novo decreto para que o IPI recuperasse sua antiga capacidade arrecadatória. Essa crítica seria igualmente procedente. Se a ideia for garantir que o IPI jamais voltaria a incidir fora do espectro da extrafiscalidade, a redução de alíquotas por decreto não atenderia a essa finalidade. Nesse caso, bastaria, então, uma alteração no parágrafo 3º do artigo 153 da Constituição Federal, restringindo-se a incidência do IPI a situações em que presente a necessidade de desincentivo do consumo. Seria possível adotar uma redação como a sugerida abaixo:
“Art. 153. […]
§ 3º O imposto previsto no inciso IV: […]
IV – incidirá apenas para com a finalidade de desestimular o consumo de determinados bens, serviços ou direitos em razão de riscos à saúde pública, ao meio-ambiente e à segurança pública”.
Essa solução poderia levantar ainda duas críticas. A primeira, de que dificilmente o IPI seria cobrado no ciclo de produção e circulação de um “direito”. É verdade, por mais que não nos ocorra um exemplo agora, não alteraria a redação. A segunda, de que o IPI não é um tributo sobre consumo. Outra vez, inegável a procedência dessa afirmação. Nada obstante, há décadas utilizamos o IPI para inibir consumos considerados desaconselháveis. Não parece haver uma razão clara para mudarmos para impostos novos que nem sabemos que desenho teriam.
3. Conclusão
Em vista das considerações anteriores, podemos apresentar as seguintes conclusões:
- a proposta para o novo inciso III do artigo 154 da Constituição Federal não é boa. Além de questões redacionais que podem gerar dúvidas e controvérsias, ela tem um vício fundamental que é a outorga de uma competência muito abrangente para a criação de impostos para desestimular o consumo de bens, serviços e direitos, sem a previsão de qualquer critério para que se possa controlar o exercício de tal competência;
- se for para incluir uma regra como essa na Constituição, cremos ser imperativa a sua modificação, conforme sugerido neste artigo, prevendo-se no texto constitucional os critérios para o exercício da competência ali estabelecida;
- nada obstante, parece-nos que o ideal seria a reforma do IPI para que o mesmo tenha o perfil de um tributo exclusivamente extrafiscal. Essa reforma poderia ser feita em nível infraconstitucional ou por meio de uma alteração no parágrafo 3º do artigo 153 da Constituição Federal, como sugerimos.
Por Sergio André Rocha
Sergio André Rocha é professor de Direito Financeiro e Tributário da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e livre-docente em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP).
Revista Consultor Jurídico, 24 de julho de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-jul-24/sergio-rocha-reforma-tributaria-proposta-pec-45-nao-boa