O Supremo Tribunal Federal deverá definir os limites que o legislador deve obedecer ao fixar as multas tributárias, notadamente a sua adequação aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
É antigo e recorrente o debate na Jurisprudência do STF acerca dos limites constitucionais que o legislador deve obedecer ao estabelecer multas tributárias.
A possibilidade de o Poder Judiciário reduzir as multas fiscais impostas pela Administração Tributária foi analisada pelo Plenário do STF no julgamento do RE 55.906-SP, relatado pelo Ministro Luiz Gallotti. O Tribunal decidiu que é legítima a redução de multa fiscal pelo Poder Judiciário, dentro dos critérios fixados pela legislação tributária, para evitar a sua irrazoabilidade e “dar ao litígio a solução mais justa”.[1]
Este entendimento foi consolidado pelo STF em inúmeros outros precedentes. No RE 57.904-SP, relatado pelo Ministro Evandro Lins e Silva, por exemplo, assentou o STF que “pode o Judiciário, atendendo às circunstâncias do caso concreto, reduzir a sanção excessiva, aplicada pelo Fisco.”[2]
Já sob a égide da atual Constituição Federal, na ADI 551-RJ, relatada pelo Ministro Ilmar Galvão, discutiu-se a constitucionalidade de normas do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição do Estado do Rio de Janeiro que estabeleciam que as multas pelo não recolhimento de tributos estaduais não poderiam ser inferiores a duas vezes o seu valor e, no caso de sonegação, não inferiores a cinco vezes o seu valor. O Plenário da Corte declarou a inconstitucionalidade das normas impugnadas por ofensa ao princípio da vedação ao confisco e ao princípio da proporcionalidade.
Segundo o voto do Ministro Gilmar Mendes, “fica evidente quando se coloca que as multas, em consequência do não recolhimento dos impostos e taxas estaduais, não poderão ser inferiores a duas vezes o seu valor, chegando a uma notória desproporção. Portanto, penso que se pode invocar o art. 150, inciso IV, da Constituição Federal e, obviamente, o princípio da proporcionalidade na acepção que este Tribunal tem lhe emprestado do devido processo legal ou sentido substancial ou substantivo.”[3]
Ao analisar o RE 582.461-SP, com efeito processual de Repercussão Geral, relatado pelo Ministro Gilmar Mendes, o Plenário do STF decidiu que a multa tributária de caráter moratório em patamar de 20% sobre o valor do débito tributário atende ao princípio da razoabilidade e não representa violação à proibição do confisco.
egundo a Corte, “a aplicação da multa moratória tem o objetivo de sancionar o contribuinte que não cumpre suas obrigações tributárias, prestigiando a conduta daqueles que pagam em dia seus tributos aos cofres públicos. Assim, para que a multa moratória cumpra sua função de desencorajar a elisão fiscal, de um lado não pode ser pífia, mas, de outro, não pode ter um importe que lhe confira característica confiscatória, inviabilizando inclusive o recolhimento de futuros tributos.”[4] Vale registrar que neste julgamento o Tribunal fixou a Tese de que “não é confiscatória a multa moratória no patamar de 20% (Tema 214).”
Não obstante a vasta e consolidada jurisprudência reconhecendo a sindicabilidade judicial da multa tributária fixada pelo legislador, o STF, por vezes, deixa de fazer o juízo acerca da ofensa in concreto aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, bem como da vedação ao confisco, com fundamento na Súmula 279 do Tribunal segundo a qual “para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”.
Neste sentido, decidiu o Tribunal no AgReg no AI 740.631-RS, relatado pela Ministra Carmem Lucia.[5] O mesmo entendimento foi manifestado pelo STF em vários outros casos.[6] A título de exemplo, decidiu o Tribunal no AgReg no RE 760.783-SP, relatado pela Ministra Rosa Weber, que “é necessário um juízo de proporcionalidade entre o ilícito e a penalidade para constatação da violação do princípio do não confisco tributário (art. 150, IV, da CF/1988). Pressupõe, pois, a clara delimitação de cada um desses elementos. Assim, a aferição, por esta Corte, de eventual violação do princípio do não confisco, em decorrência da aplicação de multa de 100% (cem por cento) do valor do imposto devido encontra óbice na natureza extraordinária do apelo extremo e, em especial, no entendimento cristalizado na Súmula 279/STF, a teor da qual, “para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”.[7]
Por outro lado, o Tribunal continua registrando precedentes de redução das multas tributárias aos níveis já admitidos pela Jurisprudência consolidada, ou seja, 20% sobre o valor do tributo devido, superando a restrição processual imposta pela Súmula 279, como se observa no decidido no AgReg no AI 727.872-RS, relatado pelo Ministro Luis Roberto Barroso, onde se reconheceu que o princípio da vedação ao confisco, pelo seu caráter normativo aberto, exige necessariamente um certo nível de correlação com o caso concreto. Como não há um limite objetivo, é inevitável verificar concretamente o quanto invasivo foi o encargo para o contribuinte nos diversos casos.
Segundo o relator do julgado, “a solução que aponta para a necessidade de reexame de provas terminaria por inviabilizar o controle que o Supremo Tribunal Federal deve exercer sobre a matéria. O volume do encargo deve ser passível de ser sindicado. Isso porque a insuportabilidade do ônus parte também de sua dimensão imoderada e não apenas do porte de quem sofre a incidência da exação.”[8]
Assim, embora reconheça a positividade jurídica dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade como réguas de verificação da adequação das multas tributárias à garantia constitucional da vedação ao confisco bem como a competência do Poder Judiciário para reduzir o nível da pena ao adequado constitucionalmente – atualmente 20% sobre o valor do tributo devido no caso de multa moratória – carece a Jurisprudência do STF de balizas mais sólidas acerca da relação proporcional que deve existir entre o fato punível, nível da lesão ao bem jurídico tutelado pelo ordenamento, base de cálculo e/ou critério adotado pelo legislador para a imposição da multa e finalmente a gradação da multa aplicada.
Admitindo a ausência de critérios jurisprudenciais claros sobre o tema, o STF reconheceu a Repercussão Geral de vários processos onde se discute a constitucionalidade de sanções tributárias, permitindo que o Plenário da Corte possa estabelecer marcos mais seguros acerca da liberdade de conformação do legislador face ao limite imposto pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
O debate acerca do limite para a fixação da multa moratória em matéria tributária foi reconhecido como de Repercussão Geral pelo STF no RE 882.461-MG, relatado pelo Ministro Luiz Fux. Segundo a Corte, o limite da multa fiscal moratória, tendo em vista o disposto no artigo 150, IV, da Constituição Federal, que veda o efeito confiscatório na seara tributária, reveste-se de Repercussão Geral. No caso, discute-se a constitucionalidade de multa moratória fixada legalmente em 50% sobre o valor do tributo devido (Tema 816).
Entendeu a Corte que o tema debatido neste RE não se confunde com o decidido, também com efeito de Repercussão Geral (Tema 214), no RE 582.461-SP, relatado pelo Ministro Gilmar Mendes, onde o Plenário decidiu que a multa tributária de caráter moratório em patamar de 20% sobre o valor do débito tributário atende ao princípio da razoabilidade e não representa violação à proibição do confisco. Segundo a Corte, neste último julgado, limitou-se a afirmar constitucionalidade da multa moratória de 20%, nada decidindo sobre multas fixadas em patamares superiores.
O limite da multa fiscal qualificada em razão de sonegação, fraude ou conluio, tendo em vista o disposto no artigo 150, IV, da Constituição Federal, que veda o efeito confiscatório na seara tributária, é tema controvertido que revela inequívoca Repercussão Geral, segundo reconhecido pelo STF no Recurso Extraordinário 736.090, relatado pelo Ministro Luiz Fux (Tema 863).
Discute-se, no caso, a razoabilidade da multa fiscal qualificada em razão de sonegação, fraude ou conluio, no percentual de 150% sobre a totalidade ou diferença do imposto ou contribuição não paga, não recolhida, não declarada ou declarada de forma inexata (atual § 1º c/c o inciso I do caput do artigo 44 da lei federal nº 9.430/1996), tendo em vista a vedação constitucional ao efeito confiscatório na seara tributária e a Jurisprudência assentada pelo Tribunal segundo a qual a multa tributária não pode superar o valor do tributo devido (ADI 551-RJ, RE 582.461-SP, RE 833.106-GO, ADI-MC 1.075).
O STF também decidirá se é constitucional a multa de 50% sobre o valor do crédito objeto de pedido de ressarcimento indeferido ou indevido e a multa de 50% sobre o valor do débito objeto de declaração de compensação não homologada, tendo em vista a Repercussão Geral reconhecida no RE 796.939-RS, relatado pelo Ministro Ricardo Lewandowski.[9] A matéria constitucional versada neste recurso consiste na análise da constitucionalidade dos §§ 15 e 17 do art. 74 da Lei 9.430/1996, com redação dada pelo art. 62 da Lei 12.249/2010 (Tema 736).
O STF reconheceu a Repercussão Geral no RE 640.452-RO, onde se debate a constitucionalidade, por desproporcionalidade e caráter confiscatório, de multa em valor variável entre 40% e 5%, sobre o valor da operação praticada pelo contribuinte, por mero descumprimento de obrigação acessória, isto é, multa isolada aplicada sobre o valor de operação que não gera tributo devido (Tema 487).
Questão semelhante, mas não idêntica, discute-se no RE 606.010-PR, relatado pelo Ministro Marco Aurelio, cuja Repercussão Geral foi reconhecida pelo STF. Neste caso, debate-se acerca da constitucionalidade, à luz dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade bem como da vedação ao confisco, de norma legal que autoriza a exigência de multa por ausência ou atraso na entrega de Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais – DCTF, apurada mediante percentual a incidir, mês a mês, sobre os valores dos tributos a serem informados pelo contribuinte ou responsável tributários (Tema 872)[10]
Também neste processo, o STF avaliará a constitucionalidade da eleição pelo legislador da base de cálculo para a sanção tributária imposta pelo descumprimento de uma obrigação acessória (no caso, o valor do tributo a ser informado na DCTF) bem como a proporcionalidade e razoabilidade do nível da pena imposta (2% do valor informado, por mês ou fração, limitado a 20%).
A análise dos processos acima citados permitirá que o STF fixe as balizas para o sistema de multas tributárias no ordenamento jurídico brasileiro. É necessário que a Corte promova os necessários “distingos” no plano do fato punível, da natureza da sanção, do nível da sanção e da proporcionalidade entre a sanção e o objetivo perseguido pela norma sancionatória.
No plano do fato punível, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade exigem a necessária distinção, pelo menos, entre a) uma simples situação de mora tributária e uma outra de inadimplência contumaz; b) o simples atraso ou erro formal no cumprimento de um dever fiscal e a fraude fiscal dolosamente realizada e c) o não cumprimento de uma obrigação acessória que não gera dano ao Fisco e o deliberado desatendimento dos deveres de colaboração com Fisco.
No que tange à natureza da sanção, é necessária a previsão de sanções distintas relativamente a fatos ilícitos que geram tributo devido, considerando as respectivas causas (mora, fraude), e a fatos ilícitos que representam mero descumprimento de obrigações acessórias, sem repercussão direta no direito de crédito público. Quando a ilicitude cometida pelo contribuinte (não recolhimento tempestivo do tributo devido) gera um prejuízo ao Fisco, de maior ou menor dimensão, é razoável que a pena corresponda a uma proporção sobre o tributo devido (prejuízo efetivo do Fisco que representa uma lesão objetiva ao direito de crédito público).
Por outro lado, quando a ilicitude tem apenas natureza formal, revela-se juridicamente irrazoável a fixação de multas incidentes sobre o valor do fato econômico subjacente (valor da operação, valor da informação a ser prestada ao Fisco, por exemplo), na medida em que o bem protegido no caso é o dever de colaboração com o Fisco e não o direito de crédito público. Neste caso, afigura-se mais adequado às exigências jurídicas da razoabilidade e da proporcionalidade a fixação de multas em valor monetário fixo, considerando a importância e a natureza da informação não prestada pelo contribuinte.
Fixadas estas premissas, importante também que a lei tributária permita ao órgão aplicador da lei (autoridade fiscal, em primeiro plano) a adequada graduação do nível da sanção tributária imposta ao fato ilícito tributário. Neste particular, não são compatíveis com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade leis tributárias que estabelecem multas em valores proporcionais fixos sobre o valor do tributo devido desconsiderando a) aspectos objetivos do fato ilícito, como a dimensão da lesão sofrida pelo bem jurídico tutelado (valor do direito de crédito público), punindo com a mesma pena proporcional dívidas fiscais de valores substancialmente diferentes, e b) aspectos subjetivos da ilicitude, como os relacionados às características pessoais do agente infrator (antecedentes, natureza da atividade, por exemplo), o que constitui também exigência do princípio constitucional da individualização da pena, assegurado constitucionalmente (art. 5º, XLVI).
O sistema sancionatório tributário vigente na ordem jurídica brasileira é claramente ofensivo às demandas jurídicas impostas pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade e fonte de recrudescimento dos conflitos entre os contribuintes e o Fisco brasileiro. Ao analisar, em grau processual de Repercussão Geral, os recursos acima referidos, terá o Supremo Tribunal Federal uma oportunidade histórica para definitivamente estabelecer os parâmetros normativos de conformação do legislador tributário no estabelecimento de multas tributárias em face das exigências impostas constitucionalmente pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
[1] DJ 05/08/1965, p. 1.863.
[2] DJ 24/06/1966, p. 2.379.
[3] DJ 14/02/2003, p. 39.
[4] DJe 18/08/2011.
[5] DJe 14/08/2009.
[6] A título de exemplo, no RE 583.516-PB, Segunda Turma, relator Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 29/5/12 e no Agravo Regimental no RE 612.213-MA, Primeira Turma, relator Ministro Dias Toffoli, DJe de 14/12/2012.
[7] DJe 19/03/2014.
[8] DJe 18/05/2015.
[9] DJe 23.06.2014.
[10] DJe 05.02.2016.
Por Helenilson Cunha Pontes é
Helenilson Cunha Pontes é advogado parecerista, livre-docente em Legislação Tributária pela USP e doutor em Direito Econômico e Financeiro pela mesma instituição.
Revista Consultor Jurídico, 5 de fevereiro de 2020.
https://www.conjur.com.br/2020-fev-05/consultor-tributario-proporcionalidade-multas-tributarias-visao-stf