Com o advento das novas tecnologias, a economia está passando pelo fenômeno de sua digitalização, cujas principais características podem ser resumidas da seguinte maneira: (i) facilidade no oferecimento de bens e serviços a diversos consumidores, independentemente da presença física em determinada jurisdição; e (ii) crescente utilização de ativos intangíveis e consequente diminuição da importância de ativos tangíveis para o desenvolvimento da atividade econômica.
É justamente a conjugação de tais fatores que levaria à conclusão pela necessidade de repensar as regras tributárias internacionais existentes, a fim de compatibilizá-las com a dinamicidade dos negócios atuais.
Isso porque, tal como concebidas na atualidade, as regras tributárias internacionais acabariam por favorecer a tributação apenas no Estado-residência, já que, inexistindo presença física no Estado-fonte em razão da digitalização da economia, não restaria caracterizado um estabelecimento permanente, de modo que não seria possível a cobrança de imposto sobre a renda auferida no referido Estado[1].
No entanto, é justamente no Estado-fonte (historicamente importadores de capital) onde se localiza o mercado consumidor, cujo acesso é facilitado pelas novas tecnologias, o que levaria ao cenário de que, embora a renda decorra do comportamento dos consumidores, a tributação ocorre exclusivamente no Estado-residência, facilitando, assim, a alocação do lucro em jurisdições de tributação favorecida.
Sob tal perspectiva, as multinacionais estariam se beneficiando do mercado consumidor, sem, entretanto, a respectiva contrapartida em favor do Estado-fonte consistente no pagamento de tributos. Nesse contexto, há quem sustente que o próprio mercado consumidor seria o elemento de “geração de valor” da economia digital a justificar a redefinição da competência do Estado-fonte, na medida em que, voluntária ou involuntariamente, fornecem dados relevantes que são utilizados para otimizar o oferecimento de bens e serviços (por exemplo, publicidade direcionada) e, por conseguinte, a geração de receitas que, contraditoriamente, não são tributadas em tal Estado.
Além disso, a problemática também se verificaria no âmbito concorrencial no mercado interno, já que, em montantes proporcionais de receitas, multinacionais arcariam com carga tributária inferior em comparação com contribuintes de menor porte localizado no Estado-fonte.
A despeito da problemática exposta, importante esclarecer que o debate sobre o tema possui grande influência de casos emblemáticos de grandes multinacionais que supostamente não pagam sua “parcela justa de tributos” (fair share of tax). Diz-se “supostamente”, pois, em sentido contrário, existem estudos relevantes indicando que, em verdade, tais multinacionais já pagam montantes consideráveis de tributos[2].
Diante desse contexto, acreditamos que a celeuma não reside apenas em analisar a economia digital, mas, também, levar em consideração o fenômeno da digitalização da economia tradicional para repensar as regras tributárias já existentes, o que, inclusive justificaria a desnecessidade de estabelecer regras distintas apenas para a economia digital. Basta relembrar que até mesmo em modelos de negócios tipicamente relacionados com a economia tradicional podem ser adotadas estruturas societárias a fim de reduzir — ou até mesmo eliminar — a carga tributária (por exemplo, caso Starbucks).
Em razão da indefinição sobre o tema, já se tem notícia de que alguns Estados estão adotando medidas unilaterais para arrecadar tributos de importantes players do mercado da economia digital[3], tais como o equalization levy. No entanto, tais medidas podem carecer de respaldo legal, existindo controvérsias quanto à (in)aplicabilidade de tratados internacionais em relação à exação instituída por tais Estados, o que, consequentemente, pode resultar em bitributação[4].
Fora do âmbito estritamente jurídico, a instituição de um tributo sobre a economia digital também encontra óbices no campo político, na medida em que diversos Estados — via de regra, aqueles com regras de tributação mais favorecida — são contrários à sua instituição, cenário que se assemelha a uma verdadeira “guerra fiscal”.
A experiência internacional demonstra que a instituição de regras específicas para o setor digital não se mostraria adequada, na medida em que toda a economia está se digitalizando. No entanto, a existência de uma indefinição sobre o tema afeta a segurança jurídica, impede a prevenção de litígios, mantém um cenário de desequilíbrio na repartição de competência entre Estado-fonte e Estado-residência, inibe o desenvolvimento de ferramentas para resolução de controvérsias, bem como o próprio desenvolvimento de negócios que se valem de recursos tecnológicos.
O que parece ser consenso é a necessidade de repensar as regras tributárias já existentes, não propriamente em razão da economia digital em sentido estrito, mas, sim, diante da crescente digitalização da economia.
[1] Não se pode ignorar que a nova convenção-modelo da OCDE, ao adotar na íntegra as propostas constantes do Plano de Ação 7 do Beps, alterou de maneira significativa os requisitos para caracterização de um estabelecimento permanente. Em termos práticos, houve limitação das exceções à configuração de um estabelecimento permanente, o que significa dizer que houve ampliação da regra geral (isto é, ampliação da regra para que seja configurado um estabelecimento permanente no outro Estado). Por outro lado, a nova convenção-modelo ainda exige a existência de presença física para configuração de um estabelecimento permanente (fixed place of business), o que, de certa forma, não se mostra adequado à realidade da digitalização da economia. Para mais aprofundamentos, recomendamos a seguinte leitura: GOMES, Daniel de Paiva; Gomes, Eduardo de Paiva; BOSSA, Gisele Barra. Tributação direta dos rendimentos provenientes da computação na nuvem: estabelecimento permanente. In: PISCITELLI, Tathiane. (Org.). Tributação da Nuvem: conceitos tecnológicos, desafios internos e internacionais. 1 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, v. 1, p. 99-127.
[2] Sobre o tema, recomendamos a leitura do seguinte estudo: BAUER, Matthias. Digital Companies and Their Fair Share of Taxes: Myths and Misconceptions. ECIPE Occasional Paper n. 3/2018. Disponível em: https://ecipe.org/wpcontent/uploads/2018/02/ECI_18_OccasionalPaper_Taxing_3_2018_LY08.pdf.
[3] Nesse sentido, até mesmo o Plano de Ação 1 do Beps indica algumas medidas unilaterais passíveis de adoção: bit tax, formulary apportionment, presença econômica relevante, estabelecimento permanente virtual, retenção na fonte, “taxa de equalização” (equalization levy).
[4] Existiriam dúvidas se a exação, tal como instituída por tais Estados, incide sobre a renda ou sobre o serviço prestado pelo contribuinte. Na primeira hipótese, cogitar-se-ia da aplicação de tratados internacionais. Na segunda hipótese, entretanto, é possível que a exação não seja caracterizada como income tax e, por conseguinte, seja afastada a aplicação do tratado internacional.
Por Eduardo de Paiva Gomes, Felipe Wagner de Lima Dias e Phelipe Moreira Souza Frota
Eduardo de Paiva Gomes é sócio do Vieira, Drigo e Vasconcellos Advogados, professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), mestrando em Direito Tributário pela FGV-SP, especialista em Direito Tributário pela PUC-SP e bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Felipe Wagner de Lima Dias é advogado, mestrando e pós-graduado pela Faculdade de Direito da FGV-SP, membro do Núcleo de Direito Tributário da mesma instituição e ex-coordenador do Grupo de Direito Tributário da Câmara-e.net.
Phelipe Moreira Souza Frota é advogado, mestrando em Direito Tributário pela FGV-SP e membro do Núcleo de Direito Tributário da mesma instituição.
Revista Consultor Jurídico, 29 de abril de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-abr-29/opiniao-tributacao-economia-digital-plano-internacional