Nos últimos anos, não há como negar que as decisões do Supremo Tribunal Federal, cujos efeitos antes se restringiam a foros específicos e especializados, passaram a fazer parte do dia a dia da sociedade, muito em razão da criminalização de condutas imputadas a políticos, empresários e pessoas públicas. Do chamado “mensalão” à “lava jato”, os ministros do STF passaram a ser conhecidos de todos, os termos jurídicos se popularizaram e o impacto das decisões passou a alcançar a consciência e o coração do cidadão comum.
Some-se a isso a alta dose de polarização, que atinge a todos, e temos grandes assuntos contemporâneos sendo discutidos pela sociedade brasileira, que também passou a prever o que a Suprema Corte irá decidir: dos temas relacionados ao Direito Penal, passando pelas liberdades individuais, direitos humanos, meio ambiente até chegar nas grandes questões tributárias.
Há poucas sessões de julgamento para muito assunto. Por outro lado, vemos um esforço grande dos ministros para dar vazão à análise dos casos mais relevantes. Temos instrumentos que deveriam permitir a abreviação das soluções e, especialmente, a uniformização de entendimentos — como o instituto da repercussão geral —, mas, ainda assim, é fato que inúmeras matérias que impactam relevantemente a sociedade permanecem sem solução.
No dia 7 de novembro, assistimos à finalização do julgamento de um dos casos mais emblemáticos que já passou pelo STF: decidiu-se que a sentença condenatória em segundo grau de jurisdição não é suficiente para culminar na prisão do condenado. Afinal, segundo a maioria dos ministros, a prisão só se justificaria mediante o trânsito em julgado da decisão, pois, até então, prevaleceria a presunção de inocência do réu.
Esse julgamento, além de levar à aplicação desse entendimento a inúmeros processos pendentes e à soltura de réus condenados não definitivamente pelo Judiciário, nos traz elementos que podem sugerir como se comportará a corte em outros casos emblemáticos e que ainda serão analisados. Incluo entre eles o julgamento dos embargos de declaração da União, opostos contra a decisão que declarou a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins, marcado para o dia 5 de dezembro. Com os referidos embargos de declaração, a União pretende que o valor a ser excluído da base do PIS/Cofins seja meramente o ICMS recolhido, além de pretender a modulação dos efeitos da decisão pela inconstitucionalidade, para que ocorram somente a partir da publicação do acordão dos embargos.
É pouco provável que o julgamento de referidos embargos de declaração tenha a mesma repercussão que o julgamento da chamada “prisão em segunda instância”. Mas não há como ignorar que, no ambiente empresarial, é uma questão com impacto relevantíssimo, considerando que, mesmo com embargos da declaração pendentes de julgamento, os processos individuais dos contribuintes continuaram sendo julgados, sendo que muitos deles já tiveram decisões definitivas.
Como consequência, muitas empresas reconheceram os respectivos ativos e iniciaram procedimentos para a compensação dos créditos, formados a partir da exclusão do ICMS destacado, não do recolhido. Inevitável que a declaração de qual o ICMS deve ser excluído da base, se o declarado ou meramente o recolhido, terá grande impacto. Sem falar no pleito formulado nos embargos, de que o STF module os efeitos da decisão, no sentido de postergá-los no tempo.
A par disso, alguns esclarecimentos se mostram necessários: quando o Supremo Tribunal Federal decidiu que o ICMS não deveria compor a base de cálculo do PIS/Cofins nem se cogitava que o valor a ser excluído poderia não ser o valor do ICMS (destacado). A controvérsia em torno do assunto só veio à tona como uma tentativa da União de mitigar os efeitos da restituição de valores vultuosos e que foram considerados indevidos.
Realmente, não somente a decisão do STF nenhuma margem dá para esse tipo de dúvida, como o voto da ministra Carmen Lúcia, então relatora, é muito claro no sentido de se excluir o ICMS pago em dinheiro ou em crédito. Mais do que isso: não há notícia de nenhum contribuinte que, antes de referida decisão, tenha excluído o valor destacado do ICMS e tenha sido penalizado especificamente por esse motivo.
Apesar disso, os embargos da União aguardam a manifestação do STF, que não deverá ser qualquer outra que não pela exclusão do valor destacado do imposto, ou, melhor dizendo, do efetivo ICMS apurado.
Para aqueles que indagam se o STF se renderia aos argumentos de ordem econômica ou mesmo se sensibilizaria com os impactos de sua decisão aos cofres públicos, vale revisitar o recente julgamento sobre “prisão em segunda instância”. Apesar de nos referirmos a matérias completamente distintas, que não guardam qualquer semelhança, alguns dos sinais emitidos pela corte no julgamento de 7 de novembro podem evidenciar o que, espera-se, seja decidido em 5 de dezembro.
Se, por um lado, o principal argumento contra a “prisão em segunda instância” foi a predominância da presunção de inocência, a principal razão daqueles que se viram vencidos foi de ordem extrajurídica: a demora do Judiciário em apreciar eventuais recursos pendentes poderia levar à sensação de impunidade daqueles já condenados em segundo grau de jurisdição.
Ora, entre interpretar literalmente a norma constitucional da maneira como foi posta pelo legislador constituinte — ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória — ou considerar aspectos alheios aos autos e à própria Constituição, o STF privilegiou o conteúdo da norma.
Num paralelo com o futuro julgamento dos embargos de declaração em 5 de dezembro, e a prevalecer o mesmo racional, a tendência que se verifica é o julgamento pelas razões de ordem jurídica, desprezando-se outros aspectos insistentemente levantados pela União, mas que nada acrescentam à discussão de direito sobre o tema.
Diante de tantas especulações em torno de uma discussão que já se arrasta há décadas — e que, apesar de finalizada no início de 2017, remanesce, diante dos esforços da União em mantê-la ativa —, os acontecimentos recentes trazem elementos que reforçam a percepção de que o Supremo não irá ceder a razões que não guardam relação com os aspectos jurídicos.
Sem entrar no mérito da decisão do dia 7 de novembro — a qual não cabe a nós questionar, mas cumprir —, esperamos que o mesmo peso e a mesma medida sejam aplicados no dia 5 de dezembro, e que o conteúdo da norma jurídica prevaleça independentemente de qualquer outra circunstância que poderia influenciar o julgamento, em prol do melhor direito, da previsibilidade e, acima de tudo, da segurança jurídica.
Por Glaucia Lauletta Frascino
Glaucia Lauletta Frascino é sócia do escritório Mattos Filho.
Revista Consultor Jurídico, 27 de novembro de 2019.