A Receita Federal do Brasil editou a Solução de Consulta Cosit nº 13, de 18/10/2018, tecendo considerações sobre qual tipo de apuração de ICMS deve ser expurgada da base de cálculo do PIS e da Cofins, a fim de obedecer a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no RE 574.706/PR, relatado pela ministra Cármen Lúcia, que determinou a retirada do tributo estadual da base de cálculo dessas contribuições.
Em razão da forte reação dos contribuintes, no dia 06 de novembro publicou uma nota de esclarecimento sobre a referida Solução de Consulta que, a pretexto de esclarecer, nada esclareceu – apenas reafirmou o que havia sido dito.
Tal documento, exarado no âmbito de uma consulta interna, ao invés de esclarecer as dúvidas dos contribuintes, acaba por legislar internamente e com efeitos externos relevantes, pois vincula as futuras fiscalizações acerca da matéria, bem como delimita as compensações que forem requeridas. O que deveria ser uma orientação tornou-se uma inovação na ordem jurídica, aplicando entendimento restritivo àquela decisão judicial e tentando reduzir seu impacto nos cofres públicos.
O que deveria ser uma orientação tornou-se uma inovação na ordem jurídica, aplicando entendimento restritivo àquela decisão judicial
Nos textos se leva a crer que a sistemática de apuração do ICMS ocorre do geral para o particular, isto é, que primeiro se apura todo o ICMS já pago (crédito) e se o compensa com todo o ICMS a pagar (débito), surgindo, como um passe de mágica, o valor a ser pago, e sobre esse montante é que se apura o valor a pagar de PIS/Cofins. Ocorre que as operações não são realizadas dessa forma; o método é outro.
Em cada nota fiscal emitida se indica o valor de ICMS a ser pago, e sobre ele incide o PIS/Cofins. Ao final do mês, consolidam-se as operações e apura-se o ICMS a pagar, em razão das compras e vendas realizadas e, havendo mais débitos do que créditos, paga-se a diferença, zerando aquele mês. Todavia, e aqui está o ponto de dissenso, não se apura o montante final de ICMS a pagar e sobre ele incide o PIS e a Cofins; estes são calculados nota a nota, a cada faturamento, e não ao final do período. O método é do particular (a cada nota fiscal) para o geral (apuração final dos tributos), e não o contrário, o que gera a divergência aqui apontada.
Afinal, se a incidência do PIS/Cofins se dá sobre o ICMS destacado a cada nota fiscal emitida, a majoração de base de cálculo declarada inconstitucional ocorreu nessa etapa, e não após o cálculo final do ICMS a pagar. A argumentação desenvolvida busca desviar a atenção do ponto central do debate, que é o cálculo de um tributo sobre o outro, o que foi considerado inconstitucional pelo STF, sem distinguir a questão do pagamento do tributo estadual, pois irrelevante para os fins debatidos: “O ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da Cofins”.
Nessa linha se argumenta também para afastar da compensação o ICMS que foi objeto de incentivo fiscal. Novamente há uma inversão da lógica, pois, se o valor do PIS/Cofins tiver sido calculado tendo em sua base o ICMS, esse valor deverá ser expurgado, tenha ou não sido esse tributo estadual objeto de benefício fiscal. É irrelevante para fins de apuração dos tributos federais se o valor do tributo estadual foi ou não pago. Se houve o destaque na nota fiscal de ICMS a ser pago, o PIS/Cofins foi majorado, sendo necessário apenas identificar se foi ou não usado na base de cálculo das duas contribuições federais.
O raciocínio é simples: para calcular o montante a pagar das contribuições federais havia a incidência sobre o ICMS, fosse este pago ou não; porque na devolução a regra deve ser diferente?
O que a Receita Federal está buscando é a adoção de uma política de redução de danos, usando argumentos que não têm correlação com o que foi decidido pelo STF no caso em apreço, que foi bastante claro e objetivo: não se pode incluir o ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins. Tudo o mais é, quando muito, singelo obter dictum do acórdão, devendo receber o devido respeito nas análises, porém enquadrado dentro desta perspectiva de técnica jurídica, e não como o efetivo decisum do acórdão, valendo para efeito argumentativo, mas não faz parte do que é obrigatório na decisão.
Depois se reclama do excesso de judicialização. Esse caso levou mais de 20 anos para ser julgado, tendo sido decidido através de controle difuso de constitucionalidade em 2014, por meio do RE 240.785. Em 2017, através do RE 574.706 o assunto foi decidido com efeitos erga omnes em face da repercussão geral e o governo interpôs embargos de declaração, que ainda pendem de julgamento apenas sobre modulação de seus efeitos. Porém, nada foi feito pelos sucessivos governos em termos de contingenciamento no Anexo de Riscos Fiscais das sucessivas e anuais LDOs, desde o julgamento realizado em 2014. Agora se busca esse tipo de política de redução de danos, o que só ampliará a litigiosidade administrativa e judicial. Porque o governo não provisiona e paga, como fazem as empresas privadas, consoante as normas financeiras que obrigam tal procedimento?
Por Fernando Facury Scaff
Fernando Facury Scaff é professor titular de direito financeiro da Faculdade de Direito da USP e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Pinheiro, Guimarães & Scaff Advogados.
Fonte: Valor-09/11/2018