Em decorrência da tese firmada pelo STF, no “Tema 69 – Inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS”, de que o ICMS não compõe a base de cálculo para incidência do PIS e da Cofins, com origem no leading case RE 574.706, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, abriu-se espaço para uma nova discussão: como operacionalizar então à exclusão deste ICMS da base de cálculo das contribuições para o PIS e para a Cofins, sob a ótica da decisão proferida, da possível (se viável) modulação dos efeitos, seus precedentes e interpretações derivadas?
Faz-se necessário esclarecermos a origem e a forma de cobrança destes tributos (ICMS, PIS e Cofins) para que seja possível compreender em que ponto estes três personagens do sistema tributário nacional convergem para que um, o ICMS, interfira na base de cálculo dos outros, PIS e Cofins.
A não cumulatividade foi aplicada ao ICMS após a Emenda 18 de 1965, oriunda de ideias que penetraram no Brasil após a Segunda Guerra Mundial, relativas às vantagens do método de tributação de “valeur ajoutée, value added tax, ou valor acrescido”. Nesse método, em cada operação, para efeitos fiscais, abate-se o que for devido em função da circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas etapas anteriores. Esse sistema é popularmente conhecido como “débito x crédito”, ou seja, o montante devido pelo contribuinte é deduzido do valor pago por este em etapas anteriores, em suas compras de bens ou serviços já tributados pelo imposto. Atualmente essa não cumulatividade para o ICMS está disciplinada no artigo 155, parágrafo 2º, I da CF/88. Já a cobrança não cumulativa das contribuições para o PIS/Pasep e para a Cofins nasceu em 2002, com a publicação da Lei 10.637, de 30 de dezembro de 2002 (PIS/Pasep não cumulativo), seguida, em 2003, pela Lei 10.833, de 29 de dezembro de 2003 (Cofins não cumulativa).
O PIS/Pasep e a Cofins são contribuições sociais instituídas nos termos do artigo 195, inciso I, alínea b, da CR/88. Decorrem da previsão do artigo 194 da CR/88, que destaca que o poder público e a sociedade devem assegurar direitos na área da seguridade social (saúde, Previdência Social e assistência social). Até 2002, o PIS/Pasep e a Cofins eram contribuições cobradas somente em “cascata”, ou cumulativamente. Isso significa dizer que cada elo da cadeia de produção/comercialização de determinado bem é tributado tendo como base de cálculo seu faturamento, não havendo qualquer tipo de desconto relativamente ao tributo pago na fase anterior. Pelo fato de a tributação incidir no momento da venda, em situações nas quais há várias operações de compra e venda entre empresas, até que o produto chegue ao consumidor, existem vários momentos tributáveis. Por isso, este tipo de encargo é chamado de “tributo plurifásico”, visto que há vários momentos de incidência do tributo, antes do produto ser vendido ao usuário final.
Somente com a Emenda Constitucional 42, de 19 de dezembro de 2003, portanto, posterior à instituição da cobrança não cumulativa dos impostos citados, é que a CF/88 estendeu a não cumulatividade às contribuições para o PIS/Pasep e para a Cofins, de que trata o seu artigo 195, incidentes sobre o faturamento das empresas ou ainda sobre a importação de bens e serviços. Melhor dizendo, a CF/88 autorizou a lei a definir os setores de atividade econômica para os quais essas contribuições seriam não cumulativas.
A sistemática da não cumulatividade adotada pelo legislador para as contribuições para o PIS e para a Cofins — chamada pela Receita Federal de regime de incidência não cumulativa — consiste em permitir que a pessoa jurídica desconte créditos relativamente a determinados custos e despesas. Melhor explicando: existem gastos que são realizados pelas empresas visando à futura venda do bem ou prestação de serviço. Sobre estes gastos, especificados em lei, a empresa apura um crédito das contribuições para o PIS e para a Cofins. Efetuada a venda, a empresa calcula o PIS e a Cofins devidos. Compensa o valor dos créditos e somente recolhe à União a diferença entre o débito e o crédito.
A sistemática da não cumulatividade para o PIS e para a Cofins é semelhante à aplicada ao ICMS; entretanto, é setorizada, ou seja, há segmentos que ainda apuram e recolhem as contribuições pela sistemática cumulativa. Diferentemente do ICMS, as contribuições para o PIS e para a Cofins convivem com a cumulatividade e com a não cumulatividade concomitantemente, o que faz com que os efeitos da decisão do STF sejam sentidos e aplicados de forma muito distinta, a depender da sistemática de apuração à qual o contribuinte estiver subordinado. O fato gerador do ICMS é a circulação de mercadorias e serviços, e sua base de cálculo, é, via de regra, o valor da operação. Já para as contribuições para o PIS e para a Cofins o fato gerador e a base de cálculo (que se confundem dada a especificidade de apuração das contribuições), motivadores da discussão em questão, é o auferimento de receita ou faturamento. Em uma primeira leitura e mesmo análise, parecem muito distintos esses fatos geradores, mas não o são de fato, pois convergem no momento em que o ICMS compõe o preço da transação e consequentemente está embutido na receita bruta, que é fato gerador das contribuições.
Relembrando a Teoria dos Conjuntos da matemática clássica, podemos dizer que o ICMS está contido na base de cálculo das contribuições para o PIS e para a Cofins, dadas as redações das legislações que regulamentam as contribuições e suas consequentes interpretações. Voilà, eis que temos então o cerne da nossa discussão: tributo incidindo sobre tributo, um caso evidente de bitributação!? Que pode ser entendida como dois entes federativos, no caso, União (PIS e Cofins) e estado (ICMS), cobrando tributos sobre o mesmo fato jurídico tributário.
A tese proclamada no RE 574.706 não teve votação unânime, foram seis votos favoráveis e quatro desfavoráveis à tese, com argumentos muito contundentes em ambas vertentes. Temos um julgamento finalizado, com repercussão geral de efeito erga omnes, declarando que o ICMS não compõe a base de cálculo para incidência do PIS e da Cofins, poderíamos pressupor então que a decisão é autoaplicável e que todos os contribuintes poderiam aplicar seus efeitos a partir de então. Mas na prática não foi isto que aconteceu, basicamente por dois motivos: (i) o processo não transitou em julgado, uma vez que a Fazenda Pública apresentou embargos de declaração, ainda pendentes de apreciação por parte do Supremo; e (ii) a Receita Federal se pronunciou logo após o julgamento do RE 574.706, através da Solução de Consulta Disit/SRRF06 6.012 de 2017 e, mais recentemente, através da Solução de Consulta Interna Cosit 13/2018.
Neste sentido, até o momento, temos decisões que, de maneira, díspares, determinam que o ICMS a ser excluído da base de cálculo do PIS e da Cofins é o ICMS destacado em nota fiscal, outras que determinam que o ICMS a excluir é o ICMS a recolher e ainda outras que não determinaram qual ICMS deverá ser excluído. E há ainda outras questões a analisar, como o regime de apuração das contribuições para o PIS e para a Cofins e o seguimento de atuação de cada contribuinte, pois muitos apuram mais créditos do que débitos (balança positiva de PIS e Cofins), servindo estes créditos para a compensação com outros tributos federais. Para estes contribuintes, a retroatividade pode ser muito difícil de ser operacionalizada. Já para outros, como os que apuram as contribuições pelo regime cumulativo, a retroação, apesar de também ser trabalhosa, é bem menos traumática. Em síntese, é preciso analisar com muita cautela como implementar a decisão, inclusive quanto a sua viabilidade operacional.
O ponto mais crítico da decisão do STF e das sentenças proferidas nos processos dos contribuintes é a operacionalização prática da exclusão. Como o STF ainda não se manifestou definitivamente sobre qual é a parcela do ICMS a excluir, se o destacado em nota fiscal ou o a recolher, ficou a cargo dos juízes de cada instância definirem em suas sentenças e neste sentido temos sentenças definindo:
(a) Que o ICMS a excluir é o destacado no documento fiscal, a exemplo da sentença proferida no Mandado de Segurança 26249-78.2014.4.01.3800, cujo trecho destacamos: “3. Assim, nos termos do previsto no título judicial, defiro o pedido de reconsideração e afasto, no caso, a aplicação da solução de Consulta Interna COSIT nº 13/2018, determinando que o ICMS a ser excluído da base de cálculo do PIS e da COFINS deve ser aquele destacado em nota fiscal, como querem os exequentes e não o ICMS a recolher”. Para aplicar a sentença será preciso, nestes casos, em síntese: verificar o lapso temporal atingido (se da sentença em diante ou retroativo aos últimos cinco anos); de acordo com o regime de apuração adotado pelo contribuinte, apurar os valores a restituir/ compensar; providenciar os ajustes contábeis necessários; solicitar ao suporte do sistema informatizado utilizado pelo contribuinte apoio para implementar os ajustes (documento por documento, item a item); providenciar a retificação de todas as obrigações acessórias envolvidas.
(b) Que o ICMS a excluir é o ICMS a recolher (acompanhando a Fazenda Nacional, na Solução Cosit 13/2018), a exemplo da sentença proferida no Mandado de Segurança 1011033-21.2018.4.01.3800, como segue: “Pelo exposto, concedo a segurança para determinar que a autoridade coatora abstenha-se de incluir na base de cálculo do PIS e da COFINS os valores recolhidos a título de ICMS e, por consequência, declaro o direito da impetrante à compensação dos valores indevidamente recolhidos nos cincos anos anteriores ao ajuizamento do presente mandamus com quaisquer tributos ou contribuições arrecadados e administrados pela Secretaria da Receita Federal, com exceção das contribuições sociais a que se refere o art. 2º da Lei nº 11.457/07”. Depreende-se ainda, da sentença acima, que a juíza federal declarou o direito do impetrante à compensação dos valores indevidamente recolhidos nos cinco anos anteriores ao ajuizamento da ação, determinando o lapso temporal a ser considerado.
Em síntese, para esses casos, como o lapso temporal já foi predeterminado e o ICMS a excluir é o “a recolher”, será necessário: de acordo com o regime de apuração adotado pelo contribuinte, apurar os valores a restituir/ compensar; providenciar os ajustes contábeis necessários (procedimentos distintos para créditos do período e créditos extemporâneos); solicitar ao suporte do sistema informatizado utilizado pelo contribuinte apoio para implementar os ajustes (que nestes casos serão feitos pelo montante de cada CST — código de situação tributária); providenciar a retificação de todas as obrigações acessórias envolvidas, aplicando as determinações da Solução de Consulta Interna 13 – Cosit.
Temos ainda sentenças que não determinaram qual ICMS deverá ser excluído:
(c) Para estes casos em que a sentença não determinou que parcela do ICMS deverá ser excluído, resta ao contribuinte a aplicação do entendimento da Fazenda Nacional sobre o tema, aplicando a determinação da Solução de Consulta Interna 13 – Cosit, ou seja, excluir o ICMS a recolher.
Como explicado, cada caso é um caso e os procedimentos a serem adotados são distintos a depender da análise do caso concreto e à qual regime de apuração das contribuições para o PIS e para a Cofins o contribuinte está subordinado, pois no caso do regime não cumulativo (confronto entre créditos e débitos), os reflexos também serão sentidos nas operações de compra destes contribuintes.
Neste sentido, o papel de contadores e advogados na orientação aos contribuintes é fundamental, pois há muitos procedimentos a serem adotados e grandes processos de retificações de obrigações acessórias, que devem ser conduzidos com bastante cautela, sob pena de indeferimento por parte do Fisco.
Para exemplificar, citamos o caso de um contribuinte que apura as contribuições para o PIS e para a Cofins pelo regime não cumulativo e durante os últimos cinco anos apresentou apuração credora, tendo utilizado estes créditos para a compensação com outros tributos federais, imaginem o quão pode ser complexo um processo de retificação envolvendo o expurgo do ICMS das operações de entrada e saída deste contribuinte. Neste sentido, fazer os cálculos previamente pode evitar contratempos futuros.
Por Flavio Quinaud Pedron e Daniela Paula de Rezende
Flavio Quinaud Pedron é sócio do Pedron Advogados, doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professor na UniFG (Bahia), na PUC-Minas e no IBMEC.
Daniela Paula de Rezende é advogada e contadora tributarista pela PUC-Minas, especialista em Gestão Estratégica de Finanças pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Revista Consultor Jurídico, 29 de abril de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-abr-29/opiniao-nao-exclusao-icmsda-base-calculo-pis-cofins