A modulação temporal dos efeitos nas decisões do Supremo Tribunal Federal é uma questão que há muito tempo é debatida na doutrina e nos tribunais brasileiros. Essa discussão ganhou considerável destaque após a decisão do RE 574.706/PR, com repercussão geral reconhecida, em que o Supremo declarou a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo da contribuição do PIS e da Cofins.
O acórdão da referida decisão foi publicado em 2 de outubro de 2017. Como esperado, a União opôs embargos de declaração visando que seja modulado os efeitos da decisão de declaração de inconstitucionalidade. Acontece que a oposição dos embargos já era esperada nesse caso, na medida em que o procurador da Fazenda Nacional já havia se manifestado na tribuna do STF no sentido de requerer a modulação, mas a ministra Cármen Lúcia esclareceu que, como não havia sido pedido aplicação de tal instituto jurídico, o Supremo não poderia analisá-lo. Contudo, a própria ministra destacou que a questão da modulação poderia ser enfrentada pelo tribunal em sede de embargos de declaração.
Nesse contexto, a União requereu, nos embargos de declaração, a modulação temporal de efeitos da decisão, sob a alegação de que, aplicando os tradicionais efeitos ex tunc à decisão, haverá impacto financeiro e orçamentário negativo, transferências aleatórias de riqueza social e dificuldades operacionais para a aplicação retroativa do entendimento. Por esses motivos, a União pede que a decisão que excluiu o ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins deve produzir efeitos somente após o julgamento dos embargos de declaração ou, caso o Supremo entenda por não acolher o pedido de modulação, que a Receita Federal seja autorizada a instituir regras regulamentando a forma de restituição ou compensação desses valores.
Esse requerimento de modulação temporal de efeitos feito pela União nos embargos de declaração está previsto no artigo 27 da Lei 9.868 de 1999, que permite que o STF, ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, possa restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado. Como pode ser observado, tal instituto jurídico se trata de exceção à tradicional regra adotada pelo sistema jurídico brasileiro de solucionar os vícios de inconstitucionalidades por meio de uma decisão que declara a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo, conferindo-lhe eficácia ex tunc e impondo o desfazimento no tempo de todos os atos passíveis de retroação que ocorreram durante o tempo em que a norma esteve em vigor.
Diante dessas características, observa-se que a aplicação da modulação temporal de efeitos na decisão do RE 574.706/PR deve ser analisada sob o prisma dos direitos e garantias fundamentais assegurados na Constituição ao contribuinte. Isso acontece porque a aplicação da modulação de efeitos não pode ser utilizada de forma indiscriminada, devendo ser reservada somente para aquelas situações em que a tradicional atribuição de efeitos retroativos às decisões declaratórias de inconstitucionalidade possa provocar uma situação de inconstitucionalidade maior ainda do que convalidar os efeitos daquela lei ou ato normativo inconstitucional.
Ocorre que não há justificativas neste caso para que o Supremo Tribunal Federal aplique a modulação temporal de efeitos na decisão para que ela produza efeitos a partir do julgamento dos embargos. Isso porque a União não apresenta nenhum argumento de cunho constitucional para embasar seu requerimento de modulação, pois seus fundamentos são embasados exclusivamente em motivos que visam proteger a saúde financeira estatal. Além disso, a própria União não consegue, minimamente, demonstrar que a aplicação dos efeitos retroativos à decisão poderá provocar insegurança jurídica ou violar qualquer direito constitucional materializável sob a forma de excepcional interesse social no caso concreto. Isso fica evidente no fato de que ela argumenta que, não havendo modulação de efeitos neste caso, os cofres públicos sofrerão um enorme impacto financeiro negativo, mas não consegue precisar o tamanho de tal impacto, mergulhando em suposições e argumentos vagos.
De fato, é incontestável que a concretização de direitos fundamentais e o atingimento de interesses fundamentais pelo poder público depende da arrecadação de tributos, mas esses motivos não podem ser invocados para justificar inconstitucionalidades provocadas pelo Estado. Por esse motivo é que a União deve comprovar suas alegações, demonstrando o tamanho do prejuízo financeiro ou aproximação de tal impacto que a decisão provocará aos cofres públicos.
O que se quer dizer é que a modulação de efeitos é coisa séria e, por isso, para que seja aplicada à decisão do RE 574.706/PR, é indispensável que seja demonstrada, de forma robusta, que haverá danos irreversíveis à ordem social, uma vez que a modulação se trata de situação excepcional, em virtude de provocar efeitos diferentes nas declarações de inconstitucionalidade dos atos normativos. Essa exigência é necessária porque, caso o Supremo comece a modular os efeitos de suas decisões declaratórias de inconstitucionalidade de forma descontrolada, acabará provocando uma ruptura em nosso sistema constitucional. Nesse sentido, cabe esclarecer que, na hipótese de o Supremo entender por modular os efeitos da aludida decisão, o tribunal deve expor exaustivamente os fundamentos que legitimam a modulação temporal de efeitos, demonstrando que, com essa decisão, estará apenas preservando, com fundamento em razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, direitos constitucionais que se concretizaram durante a vigência da norma inválida. No entanto, tais fundamentos que autorizariam a modulação neste caso não foram demonstrados pela União em seus embargos de declaração.
Não obstante a falta de comprovação do que alega a União, cabe destacar que esse argumento econômico não poderia embasar, por si só, uma eventual modulação de efeitos de uma decisão declaratória de inconstitucionalidade, uma vez que tal argumento não encontra embasamento constitucional. Logo, o argumento econômico só poderia ser utilizado de forma a complementar um argumento constitucional e, este sim, ser o argumento principal que estaria embasando a modulação temporal de efeitos. Isso acontece porque esse argumento econômico é não constitucional, o que, por si só, já afasta sua utilização na modulação, em razão desta decisão ter de necessariamente ser fundamentada em argumentos constitucionais.
Além disso, deve-se levar em consideração que o Estado foi o responsável pela criação da lei inconstitucional e pela aplicação dessa lei e, agora, com a declaração de inconstitucionalidade dela, vem alegar que sofrerá com o impacto financeiro que essa declaração provocará e, por isso, requer a modulação de seus efeitos. Diante dessa situação, fica evidente que, caso seja modulado os efeitos da decisão declaratória de inconstitucionalidade do RE 574.706/PR, o Estado estará se beneficiando de sua própria torpeza, pois foi o responsável por toda a situação de inconstitucionalidade, o que fere o princípio da boa-fé objetiva, mais precisamente o instituto da tu quoque.
Por outro lado, não se pode deixar de se perguntar se neste caso o Estado poderia invocar a segurança jurídica em seu benefício e em detrimento dos contribuintes para que, assim, sejam mantidas as situações que a lei inconstitucional gerou. Logicamente chegaríamos à resposta “não”, uma vez que a segurança jurídica está intimamente ligada à proteção da confiança. Ocorre que a segurança jurídica não pode ser aplicada em desfavor do cidadão, já que o Estado possui poder para criar e aplicar as leis e, assim, não há confiança depositada por ele em determinada lei que foi frustrada. Isso acontece porque a frustração pela perda da confiança possui ligação com os atos realizados pelo outro, e não por si mesmo, e, assim, somente o cidadão se vê frustrado com a declaração de inconstitucionalidade, pois não foi o criador da norma declarada inconstitucional.
Com efeito, não se pode deixar de destacar que a segurança jurídica, além de ser um dos pilares do Estado de Democrático de Direito, é um dos direitos fundamentais do cidadão. Assim, ao contrário do que alega a União, se o Supremo Tribunal Federal realmente acolher o requerimento de modulação de efeitos na decisão do RE 574.706/PR, o que na prática vai acontecer é a supressão do direito dos contribuintes de pleitear a restituição ou compensação dos tributos pagos indevidamente ao Estado e, possivelmente, a corrosão da confiança do cidadão nas instituições para que, assim, seja resguardada a saúde financeira estatal. Tal decisão provocaria prejuízos irreversíveis ao sistema constitucional brasileiro, pois isso significaria dizer que o STF utilizaria a modulação de efeitos em desfavor de direitos e garantias constitucionais dos contribuintes, o que é demasiadamente temerário, porquanto pode provocar a perda da confiança do cidadão no nosso sistema jurídico e em nossas instituições.
A modulação temporal de efeitos neste caso ainda provocaria o enriquecimento sem causa do Estado, uma vez que ele iria se apropriar do patrimônio do cidadão, mesmo após haver o reconhecimento de que tal ato foi eivado de vício de inconstitucionalidade e que, nesse sentido, violou direitos e garantias fundamentais do cidadão. Isso se explica no fato de que a modulação permite que o Estado possa utilizar as ferramentas disponíveis no Direito Tributário para se apropriar de parcela da propriedade privada sem que para isso necessite respeitar qualquer limitação ou regra ao seu poder de tributar. Dessa forma, com tais observações, constata-se que a modulação de efeitos acaba se tornando uma nova e promissora ferramenta de arrecadação de tributos do poder público, que, sem sombra de dúvidas, é muito melhor que as fontes de tributação já existentes, porquanto, com a modulação, o Estado não precisa respeitar nenhuma limitação ao seu poder de tributar para conseguir chegar ao seu objetivo final, ou seja, o de arrecadar tributos.
Ademais, não é possível falar em excepcional interesse social neste caso, mesmo que justificando que a modulação de efeitos estaria sendo utilizada nesta decisão com o objetivo de preservar os interesses da sociedade e, dessa forma, haveria excepcional interesse social que justificasse o referido instituto jurídico. Isso porque a modulação neste caso seria única e exclusivamente no sentido de preservar os interesses estatais, e não aqueles reclamados pela coletividade, havendo dúvidas se realmente a modulação visaria a concretização e preservação de direitos ou se há o objetivo de atender aos interesses da sociedade. De fato, o que se sabe é que, com certeza absoluta, modulando os efeitos desta decisão haverá violação de direitos fundamentais, e não a preservação deles.
Por fim, cabe esclarecer que o objetivo deste breve ensaio não é esgotar o assunto acerca da modulação de efeitos, mas o de fomentar uma discussão sobre a utilização de tal instituto pelo Supremo e a forma de sua utilização, pois em todas as oportunidades em que a corte foi chamada a resolver alguma questão acerca da modulação de efeitos de atos inconstitucionais que desrespeitaram direitos e garantias fundamentais o tribunal desempenhou um papel decisivo na vida dos cidadãos brasileiros. É nesse sentido que a responsabilidade do Supremo é enorme neste caso, pois, dependendo de sua decisão, ele poderá criar um precedente que provocará a perda da confiança daqueles que acreditam que ainda verão seus direitos e garantias constitucionais assegurados pelo guardião da Constituição, e, dessa forma, o dispositivo legal que nasceu com o objetivo de promover segurança jurídica na verdade gerará insegurança jurídica.
Por Maceno Lisboa da Silva
Maceno Lisboa da Silva é advogado atuante na área de Direito Tributário.
Revista Consultor Jurídico, 15 de março de 2018