Foi concluído julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da Ação Declaratória de Constitucionalidade 66, no qual se declarou a constitucionalidade do artigo 129 da Lei 11.196/2005, conhecida como a “Lei do Bem”, que concede incentivos fiscais à prestação de serviços intelectuais por pessoa jurídica, abrangendo as mais variadas atividades desempenhadas por profissionais liberais e outros (tais como, médicos, dentistas, advogados, engenheiros, contadores, técnicos em informática, executivos, atletas, artistas, publicitários etc.).
A maioria dos votos no STF já tinha sido formada desde junho deste ano, mas o julgamento somente foi concluído, no Plenário virtual, com o voto vista do ministro Dias Toffoli, formando-se a maioria de oito votos, nos termos do voto da ministra Carmen Lúcia, vencidos os ministros Marco Aurélio e Rosa Weber.
Em suma, a regra legal estabelece que “para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no artigo 50 da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 — Código Civil”.
Os particulares podem, pois, exercer atividades intelectuais, em caráter personalíssimo ou não, mediante a constituição de pessoa jurídica, adotando-se regime fiscal mais benéfico (15%, pessoas jurídicas) ou como autônomo (27,5%, pessoa física), adotando-se regime fiscal mais dispendioso.
Apesar de a mencionada regra legal ter conferido aos particulares a liberdade de constituição de pessoa jurídica prestadora de serviços intelectuais, com vistas à adoção de regime fiscal mais benéfico, a Justiça do Trabalho, a Receita Federal e a Justiça Federal afastavam a aplicação da norma legal, a pretexto de fraude ao fisco e/ou de fraude à relação de emprego, o que abria margem para o fenômeno da “pejotização”.
Ao invés de assegurar o regime fiscal próprio das pessoas jurídicas, decisões administrativas e judiciais submetiam a pessoa jurídica e os seus sócios à incidência do regime fiscal e trabalhista próprio das pessoas físicas. O imposto de renda da pessoa física pode chegar até 27,5%, com a cominação ainda de multas de 75% a até 150% pela fraude fiscal, além de contribuição previdenciária. Isto é, os valores recebidos pelas empresas abertas por pessoas físicas que desempenham atividades intelectuais seriam rendimentos salariais disfarçados, passível de censura por autoridade administrativa ou judicial.
Tal cenário existente gerava insegurança jurídica não apenas para os prestadores de serviços intelectuais, como também para os tomadores desses serviços, eis que tais atores privados ficavam à mercê de desconsideração da personalidade jurídica por mera presunção de fraude fiscal ou trabalhista, com gravíssimas consequências econômicas, o que comprometia o ambiente de negócio, o livre exercício da atividade econômica e o pleno desenvolvimento.
Por oportuno, a intervenção do Estado na ordem privada deve ser exercida com respeito ao postulado fundamental da livre iniciativa, em que o exercício de atividades econômicas e profissionais deve ser protegido da interferência estatal indevida. O princípio da livre iniciativa revela a garantia do livre exercício de atividade econômica e a liberdade de organização quanto ao modelo de negócio, assegurando-se a liberdade de iniciar, organizar e gerir uma atividade econômica (cf. Eros Roberto Grau. “A Ordem Econômica na Constituição de 1988”. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 143).
A relatora da ação, ministra Carmen Lúcia, considerou que o artigo 129 da Lei 11.196/2005 é compatível com os postulados constitucionais, especialmente com o que assegura a livre iniciativa, situando-a como fundamento da República Federativa do Brasil, da qual emergem a garantia do livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão e o livre exercício de qualquer atividade econômica (CF, artigos 5º, XIII, e 170), e lembrou que o STF reconhece o dinamismo das transformações econômicas e sociais, assegurando-se à liberdade da tomada de decisão das escolhas organizacionais e dos modelos de negócio.
A propósito, este julgamento está em harmonia com as recentes decisões do STF que, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 324/DF, relator ministro Roberto Barroso, declarou a licitude da terceirização da atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada, eis que a Constituição Federal confere aos atores do cenário privado a livre iniciativa consubstanciada, dentre outros, na liberdade de adotar decisões negociais voltadas ao desenvolvimento econômico, à eficiência econômica e à livre competitividade. Como também no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidades 5.685, 5.686, 5.687, 5.695 e 5.735 que, pelos mesmos fundamentos, declarou a constitucionalidade da Lei da Terceirização objeto da reforma trabalhista (Lei 13.429/2017).
Por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário 958.252, relator ministro Luiz Fux, foi reconhecida a densidade constitucional da livre iniciativa como postulado fundamental da ordem econômica (CF, artigo 170) que, à luz do dinamismo das transformações econômicas e sociais, enseja a autonomia privada consubstanciada na liberdade de escolha das decisões organizacionais e de modelos jurídicos de negócios, com vistas a assegurar o pleno desenvolvimento econômico.
Assim, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa são intrinsecamente conectados, em uma relação dialógica que impede que seja rotulada determinada providência como maximizadora de apenas um desses princípios, haja vista ser essencial para o progresso dos trabalhadores brasileiros a liberdade de organização produtiva dos cidadãos, entendida como balizamento do poder regulatório para evitar a intervenções na dinâmica da economia incompatíveis com a livre iniciativa e o desenvolvimento sustentável.
Por conseguinte, declarada a constitucionalidade pelo STF do artigo 129 da Lei 11.196/2005, cuja decisão tem eficácia vinculante para as demais instâncias do Poder Judiciário e para a Administração, o exercício da liberdade econômica pelos particulares, mediante a constituição de pessoa jurídica para a prestação de serviços intelectuais, adotando-se regime fiscal próprio das pessoas jurídicas, não pode ser objeto de censura por autoridade estatal por presunção de fraude ou de desvio de finalidade. Em boa hora, o STF reafirmou a importância dos postulados constitucionais da livre iniciativa e da liberdade econômica como vetores fundamentais para um melhor ambiente de negócios, em prol do livre exercício da atividade empresarial e da busca do pleno desenvolvimento econômico.
Por Gleydson K. L. Oliveira
Gleydson K. L. Oliveira é advogado, professor da graduação e do mestrado da UFRN, doutor e mestre em Direito pela PUC-SP.
Revista Consultor Jurídico, 28 de dezembro de 2020
https://www.conjur.com.br/2020-dez-28/opiniao-liberdade-economica-regime-fiscal-prestacao-servicos-intelectuais