Um dos temas que vêm desafiando o mundo em questões tributárias consiste na tributação da economia digital. Com o advento das novas tecnologias, a economia está passando pelo fenômeno de sua digitalização, cujas principais características podem ser resumidas da seguinte maneira: (i) facilidade no oferecimento de bens e serviços a diversos consumidores, independentemente da presença física em determinada jurisdição; e (ii)crescente utilização de ativos intangíveis e consequente diminuição da importância de ativos tangíveis para o desenvolvimento da atividade econômica. A digitalização, perceptivelmente, transformou o mundo, pois impactou na economia, bem como no modelo como a sociedade funciona e se organiza.
A atuação dos players desse mercado prescinde de presença física, seja pela natureza de seus produtos — serviços, mercadorias ou royalties —, seja pelo contínuo desenvolvimento tecnológico que acompanha esse mercado. Neste sentido, dada a intangibilidade atinente aos valores desse mercado, não é surpresa que essas empresas consigam se estruturar de maneira a combinar melhores condições da legislação de cada país, evitando — ou pelo menos reduzindo — impactos tributários em operações cross borders, acarretando maior economia em seu resultado consolidado.
Dado esse movimento, natural que os Estados da fonte — onde, em regra, se localizam os marcados consumidores — acabassem por reivindicar, de forma ou outra, tributos incidentes sobre essas operações. Esse é, inclusive, objeto de estudo feito pela OCDE, representado no relatório “Tax Challenges Arsing from Digitalisation – Interim Reporte 2018”.
O relatório traz exemplos de medidas tributárias unilaterais adotadas por países para assegurar o recolhimento de tributos pelas empresas de tecnologia que exploram seus mercados consumidores. Dentre as medidas estudadas, destacaram-se quatro: (i) aplicação de limites alternativos para estabelecimento permanente; (ii) retenções na fonte; (iii) tributos sobre volume de negócio (turnover taxes); e (iv) regimes tributários especiais para grandes companhias multinacionais.
A primeira medida visa conferir um novo critério para definição de estabelecimento permanente a partir da chamada “presença digital significava”[1] no país da fonte. Essa presença pode ser caracterizada por diversas formas, dentre as quais o número de contratos firmados com clientes no país, significante número de usuários/clientes daquele serviço no país, features específicos para clientes do país — tal como propaganda direcionada, idioma do programa, descontos para pessoas daquele país, adoção de moeda e meios de pagamentos locais e até volume de receita relevante obtidos a partir do mercado local.
O que se abstrai desse modelo é a tentativa de qualificação de estabelecimento permanente a partir de elementos que permitam o apontamento de um ambiente eletrônico dentro do Estado da fonte em que a empresa exerça atividades econômicas capazes de atrair a competência tributária para este Estado. Em que pese essa ginástica, parece-nos que, a bem da verdade, há a intenção dos países da fonte em — de maneira travestida — utilizar o mercado consumidor como elemento de conexão para exercício dessa competência tributária, situação que não nos parece a mais adequada, eis que este jamais foi eleito como critério para fixação dessa competência.
Além da “presença significativa”, as legislações de determinados países têm estabelecido que seja efetuada a retenção na fonte no caso de remessa a residentes no exterior em razão de determinados produtos e serviços digitais[2], tais como serviços técnicos (podemos nos lembrar do caso do Brasil).
A terceira modalidade que tem sido percebida consiste nos turnover taxesem determinados países para determinadas operações, dos quais podemos citar Índia, Hungria, Itália e França. Esses tributos tendem a incidir sobre a receita da operação, e não são considerados como Imposto de Renda propriamente ditos.
Curioso no caso da França e da Hungria é o fato de que, para eleição da incidência tributária — que recai sobre serviços de conteúdo audiovisual e propaganda —, optou-se pelo local do destinatário do conteúdo, independentemente do local da residência ou da fonte pagadora, o que demonstra, novamente, a intenção de utilizar o mercado consumidor como elemento de conexão para estabelecimento da competência tributária. Já no caso da Índia e da Itália, por outro lado, o tributo será devido no local da fonte pagadora.
Veja que, numa operação envolvendo fonte pagadora na Itália, com prestador nos EUA e destino da propaganda na Hungria — desconsiderando eventuais tratados — estaríamos diante de uma potencial situação de múltipla tributação sobre essa operação.
O último dos modelos que vêm sendo adotados por algumas jurisdições, como Reino Unido e Austrália, consiste num regime tributário específico para companhias multinacionais de grande porte. O objetivo neste caso é evitar a fuga de receitas geradas no Estado, mas artificialmente direcionadas a outro país.
Neste regime, o Estado avalia junto à empresa, a partir de um maior número de obrigações estipuladas especialmente para ela, o volume de receitas percebidas em seu território, estima aquelas que foram desviadas artificialmente e aplica uma alíquota de 25% sobre estas.
Do apanhado geral, o que se percebe é a total falta de consenso dos países acerca da forma de tributar a renda das operações da economia digital, tendo sido criados modelos que não necessariamente guardam relação aos elementos de conexão tradicionalmente adotados, numa tentativa bastante arrojada de se apropriar de receitas que, a priori, pertenceriam a outras jurisdições, sobrecarregando a carga das empresas que atuam nesse mercado.
[1] Países como Índia e Israel utilizam essa metodologia para estabelecimento permanente.
[2] Aqui temos o caso de proposta legislativa no Reino Unido para tributar determinadas circunstâncias, especialmente nos casos de remessa de capital decorrente de vendas dentro de seu território em que se verifica grupo econômico cuja holding proprietária da propriedade intelectual esteja estabelecida em paraíso fiscal ou em país de tributação favorecida.
Por Felipe Wagner de Lima Dias e Phelipe Moreira Souza Frota
Felipe Wagner de Lima Dias é advogado, mestrando e pós-graduado pela Faculdade de Direito da FGV-SP, membro do Núcleo de Direito Tributário da mesma instituição e ex-coordenador do Grupo de Direito Tributário da Câmara-e.net.
Phelipe Moreira Souza Frota é advogado, mestrando em Direito Tributário pela FGV-SP e membro do Núcleo de Direito Tributário da mesma instituição.
Revista Consultor Jurídico, 26 de junho de 2019.
https://www.conjur.com.br/2019-jun-26/opiniao-falta-consenso-tributacao-economia-digital