Muito se debate sobre a inconstitucionalidade do bloqueio de bens sem ordem judicial introduzido na Lei 10.522/2002 pela Lei 13.606/2018. Para além das discussões sobre a violação ao direito à propriedade, aplicação de sanção política e violação ao princípio do devido processo legal, as quais se entende suficientes para reconhecimento da inconstitucionalidade da referida indisponibilidade administrativa de bens, o tema também passa pela compreensão do papel desempenhado pela lei complementar no Sistema Tributário Nacional.
Mais do que mera questão de forma, há matérias eleitas pela Constituição que, em razão de seu relevante conteúdo, devem ser objeto de quórum qualificado para a sua aprovação. Entre essas matérias, o constituinte elegeu no campo tributário questões que requerem tratamento uniforme entre todos os entes federados, destacando-se o conflito de competência, limitações ao poder de tributar e as normas gerais em matéria tributária sobre definição de tributos, regra-matriz de incidência tributária, prescrição, decadência, lançamento e, pertinente ao presente artigo, crédito tributário.
A discussão sobre o papel da lei complementar no Direito Tributário é tema de extrema controvérsia na jurisprudência. Temos como exemplo recente as modificações promovidas na contribuição sindical pela Lei 13.467/2017 (reforma trabalhista), razão pela qual o assunto se mostra atual e de grande importância.
Sabe-se que o Direito tem como papel regular a conduta humana. No entanto, o Direito Positivo não dispõe apenas de normas de conduta. O sistema também se autorregula, por meio de normas de estrutura.
Sobre o conceito de normas ou regras de estrutura e conduta, ensina Paulo de Barros Carvalho:
“Numa análise mais fina das estruturas normativas, vamos encontrar unidades que têm como objetivo final ferir de modo decisivo os comportamentos interpessoais, modalizando-os deonticamente como obrigatórios (O), proibidos (V) e permitidos (P), com o que exaurem seus propósitos regulativos”[1].
Essas regras que regem de forma decisiva os comportamentos interpessoais, ou seja, regulamentam a conduta do indivíduo, são denominadas “regras de conduta”.
Porém, há normas que visam regrar a forma de produção de outras normas. Essas normas “instituem condições, determinam limites ou estabelecem outra conduta que servirá de meio para a construção de regras do primeiro tipo”[2]. São as denominadas “regras de estrutura”.
Em resumo, sob a óptica tributária, as regras de conduta fixam os limites da liberdade dos contribuintes e os limites de atuação da administração pública. Já as regras de estrutura determinam os limites dos entes federados no exercício da competência tributária, o que será detalhado posteriormente.
Como operadores do Direito, precisamos nos voltar ao texto positivo e confrontar o resultado interpretativo com o sistema de Direito Positivo para, então, encontrarmos a melhor interpretação do texto constitucional.
O constituinte adota como regra legislativa a lei ordinária, de modo que apenas em casos específicos e expressos no texto constitucional o Legislativo deve adotar a lei complementar como veículo introdutor de normas no sistema de Direito Positivo.
Em relação ao Direito Tributário, mais especificamente ao crédito tributário, o artigo 146, III, “b”, da Constituição Federal confere à lei complementar a missão de estabelecer as normas gerais sobre o tema:
Art. 146. Cabe à lei complementar:
[…]
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
[…]
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários.
Dessa forma, normas gerais sobre crédito tributário devem ser regidas por lei complementar, pois fixam os limites dos entes federados no exercício da competência tributária relativa à exigibilidade do crédito tributário.
A ordem jurídica é um “sistema de normas, algumas de comportamento, outras de estrutura, concebido pelo homem para motivar e alterar a conduta no seio da sociedade”[3]. Considerando o sistema federativo e a preocupação de uniformidade das normas tributárias, a Constituição de 1988 concedeu à lei complementar nacional papel fundamental de regra estruturante das normas de incidência dos impostos, de modo que pode ser classificada como norma de estrutura.
E qual o papel da lei ordinária no Sistema Tributário Nacional? Bom, a lei ordinária representa expressão do exercício da competência tributária do ente federado, sendo sua função dar efetividade à norma de estrutura dentro do respectivo campo de competência tributário fixado pela Constituição. É pela lei ordinária (norma de conduta) que se cria o liame entre Estado-contribuinte. A título exemplificativo está a função de instituir, extinguir ou aumentar tributo (artigo 150, I, da CF), ou seja, instituir a regra-matriz de incidência tributária, fixar os deveres instrumentais e estabelecer as normas secundárias sancionatórias, sempre nos limites estabelecidos pela lei complementar (norma de estrutura).
Partindo para o exame da Lei 13.606/2018, observa-se que a modificação legislativa não atinge elementos da regra-matriz de incidência tributária dos tributos da União, mas inova o sistema jurídico ao estipular um novo regime para o crédito tributário, porém limitado ao âmbito federal.
Eis as razões de inconstitucionalidade do artigo 25 da Lei 13.606/2018.
A necessidade de lei complementar para reger as questões afetas ao crédito tributário não é mero capricho do constituinte. Ela está ancorada em valiosa cláusula pétrea, que é o pacto federativo.
O Congresso Nacional não pode agir apenas em nome da União quando se trata de garantias e privilégios ao crédito tributário. Essa matéria necessariamente deve ser tratada de forma equânime para os estados e municípios, sendo a lei complementar nacional prevista no artigo 146 da CF veículo introdutor adequado para inserir ou modificar no Sistema Tributário Nacional o regime jurídico relativo às garantias e privilégios do crédito tributário, pois esse campo normativo altera as regras de estrutura do sistema tributário.
As garantias e privilégios do crédito tributário são matérias que necessariamente devem ser reguladas por lei complementar nacional, sob pena de violar o pacto federativo. Não por outra razão os artigos 183 a 185-A do Código Tributário Nacional regulamentam a matéria relacionada às garantias e aos privilégios do crédito tributário, aplicável a todos os entes federados.
Evidente, assim, a dupla inconstitucionalidade do artigo 25 da Lei 13.606/2018. Uma por introduzir norma sobre crédito tributário por veículo normativo inadequado. Outra por violar o pacto federativo, ao tratar de maneira discriminatória os créditos tributários da União, diferentemente da forma conferida aos estados e municípios, concedendo, portanto, privilégios não estendidos aos outros entes federados.
[1] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário Fundamentos Jurídicos da Incidência. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 66.
[2] Op. Cit. p. 66.
[3] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 158.
Por Maurício Pereira Cabral
Maurício Pereira Cabral é sócio do Blasi & Valduga Advogados Associados, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Revista Consultor Jurídico, 10 de maio de 2018