O Poder Judiciário é constantemente demandado para avaliar questões penais relativas ao inadimplemento tributário, especialmente em virtude da utilização indevida do expediente criminal (inquéritos policiais, processos etc.) contra empresários como uma via oblíqua para que o imposto seja pago, já que o pagamento encerra a discussão e evita a imposição de pena nesse âmbito.
Em apertada síntese, o limite em que o não pagamento do imposto deixa de ser apenas uma infração tributária e passa a ser considerado crime é a existência de uma fraude (omissão ou alteração de informação), e de má-fé ou vontade de não pagar o imposto. Não havendo fraude, o não pagamento de tributo não pode ser considerado crime.
Nesse contexto, sob a crítica quase uníssona de advogados especializados, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, no final de 2018, que o não pagamento de ICMS incidente sobre operações próprias pode ser considerado crime de apropriação indébita tributária, ainda que haja a declaração do imposto perante o Fisco e não exista fraude envolvida. O único requisito para configurar o crime seria a presença de dolo, consistente na prova de que o contribuinte possuía consciência de que o tributo era devido e, mesmo assim, não o recolheu.
A crítica se deu porque trouxe à tona a questão de que o recolhimento de ICMS próprio não envolve cobrança do imposto do consumidor do produto ou serviço, que meramente arca com o custo econômico do tributo e não possui obrigação perante o Fisco, o que deveria excluir a incidência do crime – diferentemente do que ocorre no não recolhimento do ICMS em operações de substituição tributária, em que há uma antecipação do imposto para outros integrantes da cadeia produtiva que são contribuintes de direito.
Igualmente, criticou-se o fato de que a decisão acaba por criminalizar conduta desprovida de fraude, de maneira contrária ao entendimento consolidado prévio sobre os crimes tributários.
Não obstante, o Supremo Tribunal Federal (STF), instado a se pronunciar sobre a questão, no final de 2019, manteve a decisão do STJ, formando maioria para fixar a tese de que o contribuinte que deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no crime desde que o faça de forma contumaz e com dolo. Acontece que, diante da imensa crise que se coloca sobre as empresas de todos os portes no contexto da Covid-19, resultado direto do isolamento social e da paralisação de parcela expressiva da atividade econômica, reconhecida como estado de calamidade pública conforme diversos decretos, é provável a existência de uma avalanche de casos de sonegação fiscal.
Para reduzir o custo tributário para as empresas no momento de crise, o governo federal tomou algumas medidas ainda incipientes, como a redução à zero das alíquotas do IOF sobre operações de empréstimos e a prorrogação do prazo de pagamento dos tributos dos contribuintes enquadrados no Simples Nacional.
Por outro lado, muitas empresas têm ingressado com ações judiciais com base na Portaria nº 12/2012 do Ministério da Fazenda, que determina a prorrogação das datas de vencimento dos tributos federais por três meses nos municípios abrangidos por decreto estadual de calamidade pública, para conseguir postergar o pagamento. No Estado de São Paulo a Fiesp ingressou judicialmente com pedido de suspensão do prazo de recolhimento de todos os tributos estaduais por 180 dias, com o fundamento da necessidade de proteger empregos enquanto perdurar a crise econômica.
No entanto, certo é que na hipótese de não haver decisão que suspenda o pagamento de tributos estaduais ou norma em nível estadual com efeito similar, as consequências jurídicas do entendimento recente do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal sobre a questão do ICMS podem incrementar ainda mais a crise econômica.
Caso as empresas priorizem o pagamento de salários e a manutenção de empregos a detrimento do pagamento de impostos, correm o risco de terem seus administradores massivamente processados na esfera criminal pelo não recolhimento de ICMS. Ao revés, a priorização do pagamento de impostos pode potencializar a crise econômica e contribuir para o aumento do desemprego em momento em que o mercado de trabalho já se encontra extremamente fragilizado.
Pode-se dizer, então, que as críticas feitas à criminalização do inadimplemento tributário do ICMS ganharam sobrevida e nunca foram tão atuais. E são sob estas circunstâncias – a calamidade pública – que o Judiciário novamente passará a ser demandado a enfrentar a questão tributária, restando saber se entre suas idas e vindas na criminalização do não pagamento do tributo, restaurará sua posição de que a esfera criminal não é um meio legítimo para atuar nos casos de mera inadimplência.
Fonte: Valor Econômico – Por João Daniel Rassi e Pedro Luís Camargo – 29 de abril de 2020.