Como é de conhecimento geral, com o advento da Lei 13.670/18 houve uma sensível modificação na sistemática de compensação tributária, passando a ser viabilizada a chamada “compensação cruzada”, ou seja, compensação de débitos previdenciários com créditos tributários de outra natureza e vice-versa. Apesar da natureza autorizativa do novo regime legal de compensação, o Fisco federal tem restringido sua aplicação aos contribuintes no que diz respeito à compensação de créditos tributários oriundos de decisão judicial transitada em julgado.
O ponto central da discussão diz respeito à expressão “período de apuração anterior à utilização do Sistema de Escrituração Digital das Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas – eSocial” constante do artigo 26-A, §1º, I, “b”, da Lei 11.457/07, incluído pela Lei 13.670/18 [1].
Em síntese, o que o Fisco defende é que os créditos reconhecidos em decisão judicial transitada em julgada precisariam dizer respeito a “período de apuração” (competência) posterior à adoção do eSocial, razão pela qual o próprio sistema bloqueia automaticamente a tentativa de compensação. Como via de regra ações judiciais dizem respeito a períodos de apuração pretéritos, entende o Fisco pela vedação à compensação.
Acontece que não se pode olvidar que créditos decorrentes de decisões judiciais somente podem ser escriturados e utilizados após o seu trânsito em julgado, de forma que a interpretação do que seja “período de apuração” de tais créditos não parece poder seguir essa linha restritiva. Isso porque embora a competência originária de tais créditos seja anterior à adoção do eSocial, sua efetiva apuração somente poderá se dar posteriormente ao trânsito em julgado e, consequentemente, posteriormente à adoção do eSocial.
Trata-se de questão expressamente disciplinada pelo artigo 170-A do CTN [2] e pelo artigo 74, §12º, II, “d”, da Lei 9.430/96, que considera não declarada a compensação em que o crédito que se pretenda utilizar seja decorrente de decisão judicial ainda não transitada em julgado [3].
Significa dizer que a apuração do crédito reconhecido judicialmente, por previsão legal tanto da Lei 9.430/96 quanto do Código Tributário Nacional, somente pode ocorrer em momento posterior ao trânsito em julgado da respectiva ação judicial. Antes desse momento é vedado ao contribuinte reconhecer tal crédito tributário, sendo expressamente vetada a utilização do mesmo para fins de qualquer aproveitamento.
A própria Receita Federal do Brasil possui normativas que reconhecem e determinam que somente após o trânsito em julgado, com a respectiva liquidação do referido crédito reconhecido judicialmente, é que o contribuinte poderá reconhecer o crédito e oferecê-lo à tributação.
Verifica-se tal determinação no Ato Declaratório Interpretativo SRF nº 25/2003, através do qual é determinada a aplicação do regime de competência para a apuração dos créditos reconhecidos judicialmente, conforme se percebe do disposto do seu artigo 5º, caput e parágrafos, que estabelecem que créditos tributários decorrentes de ações judiciais devem ser reconhecidos, para fins de tributação de IRPJ e CSLL, alternativamente [4]:
1) Quando do trânsito em julgado da ação judicial, caso a decisão já liquide o respectivo valor;
2) Quando do trânsito em julgado da decisão dos embargos à execução, quando se discuta em tal expediente o montante do crédito;
3) Quando da expedição do respectivo precatório, quando não houve discussão pela Fazenda Nacional na fase de execução/liquidação do julgado.
Ou seja, a própria Receita Federal reconhece que a apuração e o reconhecimento fiscal de créditos decorrentes de decisões judiciais somente se dá após o trânsito em julgado [5]. Logo, como pode sustentar que a expressão “período de apuração” constante do artigo 26-A, §1º, I, “b”, da Lei 11.457/07, incluído pela Lei 13.670/18, diga respeito ao período originário dos créditos, simplesmente ignorando a existência de uma discussão judicial e todo regramento legal aqui exposto?
Esses dispositivos corroboram não apenas a comprovação quanto à previsão do contribuinte reconhecer o crédito oriundo de ação judicial somente após o trânsito em julgado, como também são expressos em reconhecer que a própria tributação desses valores deve respeitar tal condição de trânsito em julgado concomitante com se ter um valor líquido do referido crédito tributário.
Assim, estabelecido que o “período de apuração” de créditos tributários decorrentes de decisões judiciais somente pode ser o momento do seu trânsito em julgado ou posterior liquidação, com base na interpretação sistemática de todos os dispositivos legais e infralegais que regem a matéria, outra questão importante e relacionada ao quanto ora analisado diz respeito ao entendimento jurisprudencial a respeito do regramento aplicável à compensação.
Isso porque há um verdadeiro caleidoscópio jurisprudencial quanto ao tema, ora se deparando os contribuintes com decisões que fixam as normas vigentes quando do ajuizamento da ação e ora com decisões que fixam as normas vigentes quando do encontro de contas. Veja-se que os posicionamentos são antagônicos e redundam em consequências graves, pois relativamente a ações judiciais ajuizadas antes da Lei 13.670/18, o primeiro entendimento simplesmente impediria qualquer possibilidade de “compensação cruzada”.
A razão de ser dessa verdadeira confusão jurisprudencial decorre dos posicionamentos adotados pelo STJ, que, a pretexto de uniformizar seu entendimento quanto ao tema, acabou por não ser claro.
Com efeito, quando do julgamento do Resp 1.137.738/SP, o STJ estabeleceu, em recurso especial representativo de controvérsia, que a legislação aplicável é a vigente quando do encontro de contas, reafirmando jurisprudência pretérita (EResp 488.992/MG). Acontece que, paradoxalmente, nesse mesmo caso acabou por determinar a aplicação da legislação vigente quando do ajuizamento da ação, sob o fundamento de que não lhe seria possível reconhecer a aplicação da legislação superveniente por ausência de prequestionamento.
Há uma evidente confusão no julgado, que a pretexto de unificar o entendimento do Judiciário quanto ao tema, acabou por trazer ainda maiores incertezas. Numa tentativa de melhor esclarecer o quanto decidido pelo STJ, interessante analisar o Resp 1.164.452/MG, de relatoria do ministro Teori Zavascki (que havia relatado também o EResp 488.992/MG, invocado no recurso representativo de controvérsia). Nesse caso, há a expressa e clara afirmação de que não seria possível a superação do entendimento de que a legislação aplicável para fins de compensação de créditos tributários reconhecidos judicialmente é a legislação vigente quando do encontro de contas.
Esclareceu-se, ainda, que a alegação de ausência de prequestionamento era pertinente àquele caso então em análise, pois, de fato, a novel legislação então invocada não havia sido analisada pelas instâncias inferiores e, por isso, não poderia ser examinada no caso então em tela. Isso, todavia, não se prestaria a derrogar o entendimento pela aplicação da legislação vigente quando do encontro de contas.
Veja-se, contudo, que a tentativa de esclarecer o quanto decidido acabou por apenas repetir a mesma fundamentação aparentemente contraditória adotada pelo STJ quando do julgamento do caso representativo de controvérsia. Afinal, de que adianta afirmar a aplicação da legislação vigente quando do encontro de contas, se a superveniência de uma nova legislação quanto ao tema não será acolhida pelo Judiciário por ausência de prequestionamento?
Melhor seria ter simplesmente reafirmado seu posicionamento, visto que a superveniência de nova legislação, a bem da verdade, nada tem a ver com o requisito formal de admissibilidade recursal do prequestionamento, mas, sim, sobre um aparente conflito no tempo de normas que poderia facilmente ser resolvido pela simples reafirmação pelo STJ de seu histórico posicionamento.
Em síntese, tem-se que a legislação aplicável para casos de compensação de créditos tributários decorrentes de decisões judiciais é a vigente quando do encontro de contas. Todavia, em caso de superveniência de nova regulamentação sobre o tema durante o curso do processo, necessário atentar que o Judiciário não analisará a aplicabilidade da nova legislação, devendo o contribuinte se contentar com uma omissão pelo órgão julgador (que bem sabemos pode ensejar nova discussão com o Fisco).
Diante de todo o exposto, entendemos ter estabelecido algumas conclusões importantes:
1) A “compensação cruzada” de créditos reconhecidos em ações judiciais deve ter por “período de apuração” o momento do trânsito em julgado ou o posterior momento da sua respectiva liquidação, sob pena de violação a diversos dispositivos legais e infralegais aqui apontados;
2) A legislação aplicável no que diz respeito à compensação de créditos tributários reconhecidos judicialmente é a vigente quando do encontro de contas, conforme já definitivamente decidido e reafirmado pelo STJ, ainda que de forma um tanto confusa.
Como se vê, o tema não é singelo, mas esperamos ter contribuído para uma melhor depuração do melhor entendimento a ser aplicado.
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[1] “Art. 26-A. O disposto no art. 74 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996: I – aplica-se à compensação das contribuições a que se referem os arts. 2º e 3º desta Lei efetuada pela sujeito passivo que utilizar o Sistema de Escrituração Digital das Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas (eSocial), para apuração das referidas contribuições, observado o disposto no § 1º deste artigo; (…) § 1º Não poderão ser objeto da compensação de que trata o inciso I do caput deste artigo: I – o débito das contribuições a que se referem os arts. 2º e 3º desta Lei: (…) b) relativo a período de apuração posterior à utilização do eSocial com crédito dos demais tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil concernente a período de apuração anterior à utilização do eSocial para apuração das referidas contribuições” (grifo do autor)
[2] “Art. 170-A. É vedada a compensação mediante o aproveitamento de tributo, objeto de contestação judicial pelo sujeito passivo, antes do trânsito em julgado da respectiva decisão judicial”.
[3] “Art. 74. O sujeito passivo que apurar crédito, inclusive os judiciais com trânsito em julgado, relativo a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal, passível de restituição ou de ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a quaisquer tributos e contribuições administrados por aquele Órgão. § 12. Será considerada não declarada a compensação nas hipóteses: II – em que o crédito: d) seja decorrente de decisão judicial não transitada em julgado”.
[4] “Art. 5º. Pelo regime de competência, o indébito passa a ser receita tributável do IRPJ e da CSLL no trânsito em julgado da sentença judicial que já define o valor a ser restituído.
§1o No caso de a sentença condenatória não definir o valor a ser restituído, o indébito passa a ser receita tributável pelo IRPJ e pela CSLL:
I – na data do trânsito em julgado da sentença que julgar os embargos à execução, fundamentados no excesso de execução (art. 741, inciso V, do CPC); ou
II – na data da expedição do precatório, quando a Fazenda Pública deixar de oferecer embargos à execução.
§2o A receita decorrente dos juros de mora devidos sobre o indébito deve compor as bases tributáveis do IRPJ, da CSLL, da Cofins e da Contribuição para o PIS/Pasep, observado o seguinte:
I – se a sentença que julgar a ação de repetição de indébito já definir o valor a ser restituído, é, no seu trânsito em julgado, que passam a ser receita tributável os juros de mora incorridos até aquela data e, a partir dali, os juros incorridos em cada mês deverão ser reconhecidos pelo regime de competência como receita tributável do respectivo mês;
II – se a sentença que julgar a ação de repetição de indébito não definir o valor a ser restituído, é, no trânsito em julgado da sentença dos embargos à execução fundamentados em excesso de execução (art. 741, inciso V, do Código de Processo Civil), que passam a ser receita tributável os juros de mora incorridos até aquela data e, a partir dali, os juros incorridos em cada mês deverão ser reconhecidos pelo regime de competência como receita tributável do respectivo mês;
III – se a sentença que julgar a ação de repetição de indébito não definir o valor a ser restituído e a Fazenda Pública não apresentar embargos à execução, os juros de mora sobre o indébito passam a ser receita tributável na data da expedição do precatório”.
[5] Ainda quanto ao momento de oferecimento à tributação de créditos tributários reconhecidos judicialmente, há decisões do Carf na mesma linha do que aqui sustentando. Exemplificativamente, vide acórdão nº 1302-001.794 de 01.03.2016, em que recurso voluntário do contribuinte foi acolhido justamente com base na análise do ADI 25/2003.
FONTE: Conjur – Por Bruno Augusto François, 12 de fevereiro de 2021