ADI 7774 MC / MT – MATO GROSSO
MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
Relator(a): Min. FLÁVIO DINO
Julgamento: 26/12/2024
Publicação: 07/01/2025
Publicação
PROCESSO ELETRÔNICO
DJe-s/n DIVULG 19/12/2024 PUBLIC 07/01/2025
Partes
REQTE.(S) : PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL E OUTRO(A/S)
ADV.(A/S) : BRUNA DE FREITAS DO AMARAL
ADV.(A/S) : PAULO MACHADO GUIMARAES
ADV.(A/S) : LAURO RODRIGUES DE MORAES RÊGO JUNIOR E OUTRO(A/S)
INTDO.(A/S) : GOVERNADOR DO ESTADO DE MATO GROSSO
PROC.(A/S)(ES) : PROCURADOR-GERAL DO ESTADO DE MATO GROSSO
INTDO.(A/S) : ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MATO GROSSO
PROC.(A/S)(ES) : PROCURADOR-GERAL DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MATO GROSSO
REQTE.(S) : PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE (P-SOL)
ADV.(A/S) : PRISCILLA SODRÉ PEREIRA
REQTE.(S) : REDE SUSTENTABILIDADE
REQTE.(S) : PARTIDO VERDE
ADV.(A/S) : RAPHAEL SODRE CITTADINO
DECISÃO
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Partido Comunista do Brasil – PCdoB, pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL, pelo Partido Verde e pelo Rede Sustentabilidade contra os arts. 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 6º da Lei Estadual Ordinária nº 12.709/2024 do Estado do Mato Grosso.
Os autores sustentam que “O objetivo declarado do diploma normativo em tela é acabar com o acordo setorial conhecido como “Moratória da Soja”, que consiste em um “acordo firmado entre empresas comercializadoras de grãos (em especial soja), organizações da sociedade civil que trabalham pela conservação ambiental e órgãos públicos, incluindo o Ministério do Meio Ambiente – MMA, através do qual se definiu que as empresas signatárias, de forma voluntária, criariam e implementariam políticas e protocolos internos que evitassem a aquisição de soja oriunda de áreas desmatadas no bioma Amazônia após 22 de julho de 2008”.
Narram que a lei “proíbe a concessão de incentivos fiscais, bem como a concessão de terrenos públicos, a empresas do setor agroindustrial que tenham políticas internas de compra que busquem evitar a aquisição de bens agrícolas (soja, milho, gado etc.) produzidos em áreas recentemente desmatadas”.
Relatam que a Moratória da Soja é um acordo que “tem o objetivo explícito de eliminar o desmatamento da cadeia de produção da soja no bioma amazônico, por entender que ele seria prejudicial não apenas do ponto de vista ambiental, ao empurrar a floresta para um ponto de não retorno, mas também, mais imediatamente, do ponto de vista comercial, por atrelar a imagem das empresas comercializadoras dessa commodity à destruição da mais rica e importante floresta do Planeta”.
Afirmam que “Nos seus 18 anos de existência, a Moratória da Soja é reconhecida como um dos mais bem sucedidos programas de conciliação do desenvolvimento da produção agrícola de larga escala com a sustentabilidade ambiental. Ao vetar a compra de soja produzida em novas áreas desmatadas, a iniciativa gerou um esperado efeito positivo: o de incentivar o melhor aproveitamento de áreas já desmatadas, mas subutilizadas. Assim, desde que passou a vigorar, o acordo não impediu a expansão dos plantios de soja no país, na Amazônia ou mesmo no Mato Grosso, apenas a direcionou para áreas de pastagens degradadas”.
Ressalta que “Desde a safra 2007/08 – quando foi cultivada uma área de 1,64 milhões de hectares (Mha) – a soja vem seguindo em franca expansão no bioma Amazônia, a uma taxa média de 403 mil hectares ao ano, chegando a 7,28 Mha na safra 2022/234 , o que indica claramente que a Moratória não coibiu a expansão da soja no bioma Amazônia, mas direcionou a produção para áreas já desmatadas anteriormente”.
Destacam que “Em vigor há tantos anos, o acordo não só vem tendo seu cumprimento estritamente monitorado por um grupo de organizações da sociedade civil, com o apoio do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE, como vem sendo estudado por acadêmicos para medir seu impacto. Um estudo publicado em 2020 no renomado periódico científico Nature avaliou o impacto do acordo no controle do desmatamento na Amazônia e chegou à conclusão de que ele teria sido diretamente responsável por evitar a derrubada de pelo menos 18 mil km2de florestas em sua primeira década de vigência, tendo sido um dos principais responsáveis pela queda do desmatamento que se verificou a partir de 2006 e seguiu até 2014”.
Informam que “Anualmente os resultados do acordo são monitorados e divulgados à sociedade. Segundo os dados divulgados para a safra 2022/23, apenas 3,4 % do total de área plantada com soja na Amazônia está em desacordo com o protocolo estabelecido pelo acordo – ou seja, quase a totalidade (96,6%) da soja atualmente existente no bioma, cuja área alcançou impressionante cifra de 7,28 milhões de hectares (mais de duas vezes o estado de Sergipe), foi plantada em áreas de pastagens mal aproveitadas”.
Mencionam que “Enquanto os municípios monitorados pela Moratória tiveram uma redução de 69% no desmatamento (entre 2009 e 2022), a área plantada de soja no bioma Amazônia cresceu 344%”, o que demonstraria que “é possível expandir a produção, fazendo melhor uso na terra agricultável, sem precisar grilar terras, desmatar, queimar e destruir a biodiversidade”.
Com base nesses fundamentos, pedem concessão do pedido de tutela de urgência para suspender os efeitos dos dispositivos da Lei Estadual nº 12.709/2024.
É o relatório. Decido.
Transcrevo a íntegra da Lei Estadual Ordinária nº 12.709/2024 (eDoc. 15):
“Art. 1º Ficam estabelecidos critérios adicionais para a concessão de incentivos fiscais e concessão de terrenos públicos no Estado de Mato Grosso.
Art. 2º Ficam vedados os benefícios fiscais e a concessão de terrenos públicos a empresas que:
I – participem de acordos, tratados ou quaisquer outras formas de compromissos, nacionais ou internacionais, que imponham restrições à expansão da atividade agropecuária em áreas não protegidas por legislação ambiental específica, sob qualquer forma de organização ou finalidade alegada;
II – VETADO;
III – VETADO.
Parágrafo único A operação comercial que adotar requisitos distintos dos previstos na legislação brasileira, visando o cumprimento da legislação vigente no local de destino do produto, não será considerada em desacordo com os critérios para a concessão de benefícios fiscais previstos nesse artigo, ficando sujeita à fiscalização pelos órgãos competentes.
Art. 3º O descumprimento das disposições previstas nesta Lei resultará na revogação imediata dos benefícios fiscais concedidos e na anulação da concessão de terrenos públicos, sem prejuízo à restituição dos benefícios fruídos irregularmente no ano do calendário vigente, bem como a indenização pelo uso de terreno público concedido em desacordo com este diploma.
Art. 4º Além dos requisitos elencados nos incisos I a III do art. 6º da Lei nº 7.958, de 25 de setembro de 2003, as empresas interessadas na obtenção dos incentivos fiscais decorrentes do módulo previsto no inciso I do parágrafo único do art. 1º da referida norma, não poderão estar organizadas em acordos comerciais nacionais ou internacionais que restrinjam mercado a toda produção de propriedades rurais que operam legalmente, ocasionando perda de competitividade do produto mato-grossense e obstrução ao desenvolvimento econômico e social dos municípios.
Art. 5º O Poder Executivo regulamentará esta Lei.
Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de 1º de janeiro de 2025.”
Dos princípios da ordem econômica (art. 170, cf)
Em um primeiro exame, a Lei Estadual nº 12.709/2024 parece afrontar o princípio constitucional da livre iniciativa, previsto no art. 170, caput, da Constituição Federal, que estabelece como fundamento da ordem econômica a busca por um mercado justo, equilibrado e competitivo. O Ministro Eros Grau ensina que o princípio da livre iniciativa apresenta os seguintes sentidos:
“(…)
- b) liberdade de concorrência:
b.1) faculdade de conquistar a clientela, desde que não através de concorrência desleal – liberdade privada;
b.2) proibição de formas de atuação que deteriam a concorrência – liberdade privada;
b.3) neutralidade do Estado diante do fenômeno concorrencial em igualdade de condições dos concorrentes – liberdade pública.”1
Na mesma linha, esta Corte já decidiu que ” a livre iniciativa significa também livre concorrência, e nessa ideia se contém uma opção pela economia de mercado assentada na crença de que é a competição entre os agentes econômicos de um lado e a liberdade de escolha dos consumidores do outro que produzirão os melhores resultados sociais, que são a qualidade dos bens e serviços a um preço justo (…) o Estado pode incentivar ou desincentivar comportamentos onde o livre mercado não realiza adequadamente os valores constitucionais. Porém, a regulação estatal não pode afetar o núcleo essencial da livre iniciativa, privando os agentes econômicos do direito de empreender, inovar, competir” (RE 1054110 – Tema 967, Rel. Min. Roberto Barroso).
No caso dos autos, a norma estadual pode criar um ambiente de concorrência desleal. Empresas que adotariam, por vontade própria, práticas como evitar a aquisição de produtos oriundos de áreas recentemente desmatadas ou de fornecedores envolvidos em práticas ilegais, seriam excluídas de benefícios fiscais e econômicos disponibilizados a concorrentes que não adotam tais compromissos.
Contudo, cada empresa é livre para estabelecer a sua política de compras e não pode ser punida por exercer essa liberdade inerente ao DIREITO DE PROPRIEDADE (art. 5º, inciso XXII, CF). O tratamento discriminatório em questão viola os princípios da isonomia (art. 5º, caput, CF), da livre iniciativa e da livre concorrência (art. 170, caput, CF). Todas as empresas, independentemente de suas práticas comerciais ou de adesão voluntária a acordos setoriais como a “Moratória da Soja”, devem ter igualdade de condições no acesso a políticas públicas de fomento econômico. Conclui-se que a intervenção normativa em análise resulta em uma distorção no mercado.
Do desvio de finalidade da norma tributária
A Lei Estadual nº 12.709/2024 também tem indícios de vício de desvio de finalidade pois utiliza norma tributária como instrumento punitivo. Ao vedar a concessão de incentivos fiscais e benefícios econômicos a pessoas jurídicas que adotam livremente determinadas políticas de compras, a lei penaliza empresas que voluntariamente privilegiam fornecedores comprometidos com a preservação ambiental. A orientação normativa desvirtua a função precípua do sistema tributário, utilizando-o como ferramenta de retaliação a práticas empresariais legítimas.
Do Parecer da CCJ da Assembleia Legislativa
Em consulta ao site da Assembleia Legislativa do Mato Grosso, verifica-se que sobre o Projeto de Lei nº 2.256, que deu origem à Lei Estadual nº 12.709/2024, a Comissão de Constituição e Justiça e Redação, emitiu parecer no sentido da inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa do projeto “haja vista tratar de matéria cuja iniciativa é privativa do chefe do Poder Executivo”, o que viola o art. 61, §1°, inciso Il, alínea “e” da Constituição Federal. Transcrevo trecho do parecer (https://www.al.mt.gov.br/storage/webdisco/reuniaocomissao/20895456886668ac0f45c09.pdf):
“nos termos do art. 1º da Lei Estadual nº 7.958, de 25 de setembro de 2003, que “Define o Plano de Desenvolvimento do Mato Grosso, cria Fundos e dá outras providências”, a qual se pretende alterar, ficou estabelecido que o Plano de Desenvolvimento do Mato Grosso será executado por meio dos módulos de programas do Poder Executivo, junto de suas Secretarias, vejamos:
Art. 1º Fica definido o Plano de Desenvolvimento de Mato Grosso, orientado pelas diretrizes da Política de Desenvolvimento do Estado, com o objetivo de contribuir para a expansão, modernização e diversificação das atividades econômicas, estimulando a realização de investimentos, a renovação tecnológica das estruturas produtivas e o aumento da competitividade estadual, com ênfase na geração de emprego e renda e na redução das desigualdades sociais e regionais.
Parágrafo único O Plano definido nos termos do caput será executado por meio dos módulos de Programas adiante elencados, observada a seguinte vinculação:
(…)
II – Programa de Desenvolvimento Rural de Mato Grosso – PRODER, vinculado à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Rural, que obedecerá aos objetivos e diretrizes da política de desenvolvimento das atividades do agronegócio do Estado;
(…)
V – Programa de Desenvolvimento Ambiental – PRODEA, vinculado à Fundação Estadual do Meio Ambiente – FEMA, que obedecerá aos objetivos e diretrizes da política de desenvolvimento dos respectivos setores no Estado.”
A citada Comissão Parlamentar também considerou haver inconstitucionalidade material e inobservância da juridicidade e da regimentalidade.
Ainda que a Lei Estadual nº 12.709/2024 tenha sido sancionada pelo Chefe do Poder Executivo estadual, tal sanção não convalida o vício de iniciativa presente no processo legislativo, conforme pacífica jurisprudência desta Corte (ADI 6337, Rel. Min. Rosa Weber).
Da súmula 544 do stf
A revogação imediata de benefícios fiscais prevista na Lei Estadual nº 12.709/2024 pode contrariar a Súmula 544 do Supremo Tribunal Federal, que dispõe que “isenções tributárias concedidas, sob condição onerosa, não podem ser livremente suprimidas”. Essa orientação jurisprudencial tem como fundamento proteger a segurança jurídica e o princípio da boa-fé. Ao conceder benefícios fiscais condicionados a contrapartidas específicas, o Estado estabelece uma relação bilateral com as empresas, que ajustam seus investimentos e práticas empresariais com base nessas condições.
Revogar unilateralmente e imediatamente esses benefícios, como propõe a norma impugnada, representa uma ruptura injustificada dessa relação, desestabilizando os direitos adquiridos e desincentivando práticas empresariais responsáveis.
Do artigo 225 da CF
O teor da Lei Estadual nº 12.709/2024 implica vislumbrar afronta ao princípio da vedação ao retrocesso ambiental, previsto no art. 225 da Constituição Federal, ao enfraquecer avanços significativos alcançados em prol da sustentabilidade e da proteção ambiental. Conforme mencionado pelos autores, a “Moratória da Soja”, em vigor há 18 anos, é amplamente reconhecida como um dos programas bem-sucedidos na conciliação entre o desenvolvimento da produção agrícola de larga escala e a preservação ambiental. Ao punir empresas que voluntariamente aderem a essa iniciativa, a lei traz desestímulo a práticas sustentáveis que têm demonstrado impacto positivo na conservação do bioma amazônico.
Dos requisitos para concessão da tutela de urgência
Diante desses fundamentos, está demonstrada a plausibilidade jurídica do pedido. Por sua vez, o perigo da demora está configurado pelo fato de que a Lei Estadual nº 12.709/2024 está prevista para entrar em vigor no dia 1º de janeiro de 2025, com revogação imediata de benefícios e anulação de concessão de terrenos públicos, conforme seu art. 3º. Isso torna urgente a concessão de medida liminar para suspensão de seus efeitos.
Não há perigo de irreversibilidade da tutela de urgência (art. 300, §3º, do Código de Processo Civil). A suspensão temporária da lei estadual não impede que, caso seja eventualmente declarada a constitucionalidade da norma no julgamento de mérito, seus efeitos sejam retomados de forma integral, garantindo assim a plena execução de suas disposições.
Por essas razões, com fundamento no art. 10, §3º, da Lei nº 9.868/1999, defiro a medida cautelar, para suspender a eficácia da Lei Estadual nº 12.709/2024.
Comunique-se, com urgência, o teor desta decisão ao Presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Estado do Mato Grosso e ao Governador do Estado do Mato Grosso.
Solicitem-se informações ao Presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Mato Grosso e ao Governador do Estado do Mato Grosso no prazo de 30 (trinta) dias, na forma do art. 6º da Lei nº 9.868/1999. Após, abra-se vista, sucessivamente, no prazo de 15 (quinze) dias, ao Advogado-Geral da União e ao Procurador-Geral da República, nos termos do art. 8º da Lei nº 9.868/1999.
Solicito referendo da medida liminar, tão logo seja possível, sem prejuízo do seu cumprimento imediato.
Publique-se.
Brasília, 26 de dezembro de 2024.
Ministro FLÁVIO DINO
Relator