TRIBUTÁRIO. IRPJ. CSLL. ÁGIO. LEI N. 9.532/1997. DEDUÇÃO. ABUSO DE DIREITO. IMPOSSIBILIDADE.
I – O ordenamento jurídico brasileiro passou a tratar da figura do ágio por meio do Decreto-Lei n. 1.598/1977, podendo ser conceituado como preço adicional ao custo de aquisição de participação societária, representado pela diferença positiva entre o custo de aquisição e o valor contábil do investimento adquirido, justificada pela perspectiva de obtenção de receitas futuras. Em outras palavras, a empresa adquirente aceita pagar pela aquisição valor superior ao contabilizado no patrimônio líquido da empresa adquirida, considerando a expectativa de auferimento de lucros, que necessariamente deve ser justificada mediante demonstração contábil.
II – Sob as perspectivas contábil e societária, o ágio é passível de amortização na apuração de resultado da empresa investidora, impedindo o reconhecimento de ganhos inexistentes. Ou seja, a rentabilidade da sociedade adquirida não constituirá lucro da sociedade investidora até o montante equivalente ao ágio pago. Uma vez que, sendo neutralizado o ágio, os resultados positivos da empresa investida refletem no aumento do patrimônio da investidora.
Entretanto, sob a perspectiva fiscal, o ágio é tratado de forma distinta, uma vez que a legislação tributária impõe que todo ágio ou deságio contabilmente amortizado deve ter seus efeitos fiscais anulados perante o IRPJ e CSLL, enquanto não houver a alienação ou liquidação do investimento adquirido. Paralelamente a isso, o registro contábil é preservado para futuro aproveitamento quando da alienação, momento em que é autorizada a integração do ágio ao custo de aquisição para apuração do ganho de capital. Exceção à regra ocorre apenas na hipótese em que a empresa investida é incorporada pela investidora, porque não mais subsiste a possibilidade de sua alienação, impossibilitando a recuperação fiscal do ágio em face dos itens patrimoniais da investida se fundirem e se confundirem com os da própria investidora.
III – Na exposição de motivos da Medida Provisória n. 1.602/1997, da qual se originou a Lei n. 9.532/1997, consta expressamente que o propósito era o de evitar as situações envolvendo planejamentos tributários abusivos, restringindo o tratamento tributário de ágio às hipóteses de casos reais. Os arts. 7º e 8º da Lei n. 9.532/1997 foram inseridos no ordenamento jurídico pelo legislador com o fim específico de coibir a prática de planejamentos tributários abusivos em que empresas superavitárias adquiriam com ágio empresas deficitárias para serem em seguida incorporadas por ela, sem que houvesse um propósito negocial que não fosse a geração de ganhos de natureza tributária.
IV – A Lei n. 9.532/1997 estabeleceu um caminho natural em que determinada empresa, adquirindo participação societária com ágio, ao incorporar a empresa coligada ou controlada, poderia amortizar esse valor de rentabilidade futura na base de cálculo do IRPJ e da CSLL devidos. Tudo isso com o objetivo específico de afastar da tributação o eventual ganho futuro que, em verdade, somente poderia ser aferido em posterior venda, frustrada pela extinção da empresa adquirida.
V – Toda a descrição do mecanismo de funcionamento da amortização do ágio conduz à ideia de que as normas estabelecidas buscavam regular operações societárias usuais, em que a dinâmica do mercado promovia um regime de circulação do capital e de potencialização de resultados nos diversos segmentos econômicos. Nesse contexto, as definições do Direito Empresarial são inarredáveis, especialmente as advindas com o Código Civil de 2002, no qual se conceitua o exercício da atividade empresarial como aquela atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens e serviços (art.
966). Assim é que uma sociedade empresária não existe como um fim em si mesma. Independentemente da corrente que se adote a respeito do sentido da existência de uma personalidade jurídica diferente da personalidade das pessoas naturais dos sócios (se da ficção ou da realidade), fato é que uma empresa deve ter por objetivo, evidentemente, o exercício de atividades empresariais. Em outras palavras, não se concebe que o ordenamento tolere a existência de sociedades empresárias não direcionadas à prática econômica, ou seja, desprovidas de qualquer atividade empresarial.
VI – É importante cotejar a assertiva com a liberdade de contratar e de auto-organizar seus negócios de que qualquer cidadão é titular.
Não se trata de obstar o exercício de um direito, mas sim de coibir o denominado “abuso no exercício de direitos”. Veja-se que o manejo das expressões não é mera logomaquia como pode parecer a uma análise mais superficial da questão. A diferença entre exercício de direito e abuso no exercício de um direito é assente na doutrina contratual já há muito tempo. Advém desta conjugação do exercício da atividade empresarial, por meio de pessoas jurídicas com o abuso na constituição de sociedades empresárias, a definição do chamado “abuso da personalidade jurídica”, que pode se destinar a diversos objetivos, sempre antijurídicos, de maneira que a ilicitude se encontre caracterizada.
VII – No caso específico do ágio interno, ou ágio próprio, ou ágio de si mesmo, uma característica necessária é a inexistência de qualquer relação jurídica com membros que não fazem parte do mesmo grupo societário. É dizer, todas as operações acontecem entre partes vinculadas. Outro ponto indispensável para se caracterizar o ágio de si mesmo é a completa ausência de operação societária envolvendo a efetiva transferência de recursos financeiros. As transações precisam relacionar participações societárias cujo valor é atribuído em consenso entre as partes envolvidas que, em verdade, são exatamente a mesma pessoa nos dois polos da relação jurídica.
Finalmente, e este é um evento havido no caso concreto, o ágio interno pode ser gerado por meio de uma chamada “empresa veículo”, cuja existência no mundo jurídico somente se justifica para criar a mais valia para o grupo societário. Cuida-se de sociedade completamente desprovida de propósito negocial em absoluto descompasso com o regime do direito societário. Não há “empresa” nos termos definidos pelo Código Civil, porque não há exercício de atividade econômica organizada para a circulação de bens ou serviços. E exatamente neste ponto pode-se identificar o abuso de direito caracterizado pelo abuso da personalidade jurídica. O próprio codex de 2002 fez questão de definir o abuso de direito como um ato ilícito em seu art. 187 (Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes).
VIII – Com efeito, não é demais asseverar que a função social da propriedade preconizada no Texto Constitucional irradia efeitos em diversos campos do direito privado, inclusive no Direito Empresarial. Tanto assim que é recorrente a utilização da “função social da empresa” como elemento indissociável da exploração da atividade econômica por uma sociedade. À evidência, uma empresa que não exerce nenhum objeto social não possui função social.
IX – Sobre o ágio interno e sua relação com o abuso de direito, é importante mencionar que este abuso, para que seja considerado antijurídico, demanda, para além da utilização de um instituto para fins aos quais o ordenamento não o destina, que esta utilização afete direito de terceiros, ainda que não haja a intenção de prejudicar por parte daquele que o exerce. A inexistência de direitos absolutos e a limitação destes direitos a partir do momento em que outros direitos ou prerrogativas são atingidos é lugar comum em assertivas gerais e abstratas, mas que encerram dificuldades quando é necessária a aplicação destas premissas nos casos concretos.
X – Sob essas lentes, data vênia, não são admissíveis as conclusões tomadas pelo Tribunal de origem e mesmo em precedente citado pela recorrida, nos quais se admite que a liberdade de auto-organização comporta a construção de estruturas artificiais para a economia de tributos. É evidente que não se está a defender o argumento pueril de que a economia de tributos só pode acontecer de maneira “casual”.
O contribuinte pode sim organizar seus negócios de maneira a escolher o caminho menos oneroso tributariamente, desde que as estruturas jurídicas utilizadas se compatibilizem com o ordenamento jurídico, exatamente porque a liberdade contratual se limita aos termos em que o constituinte concebeu esta e outras prerrogativas. O que se impõe é pura e simplesmente o rule of law, consagrado no Texto Constitucional como o chamado “devido processo legal substantivo”.
XI – O abuso de direito perpetrado com a criação de estruturas artificiais para aproveitamento do ágio e pagamento a menor de tributos agride a juridicidade do ordenamento. Para além do reconhecimento legal como ato ilícito previsto no art. 187 do Código Civil, o abuso de direito no caso encerra violação dos primados da capacidade contributiva, em sua condição de corolário da própria isonomia. Por esse motivo, o abuso de direito materializado na amortização de ágio gerado em operações internas, sem nenhum propósito negocial, desrespeitou o ordenamento jurídico vigente, ensejando a neutralização dos efeitos do ato abusivo pela autoridade fiscal. No caso, portanto, deve ser mantida a glosa dos créditos amortizados.
XII – Recurso especial provido.
(REsp n. 2.152.642/RJ, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 5/11/2024, DJe de 11/11/2024.)