Decisão
Trata-se de ação declaratória de constitucionalidade com pedido de medida cautelar ajuizada pelo Presidente da República para declarar a constitucionalidade dos arts. 1°, II; 3°, I; e 4°, do Decreto 11.374/2023, os quais repristinam dispositivos do Decreto 8.426/2015, anteriormente à alteração promovida pelo Decreto 11.322/2022, referentes às alíquotas da Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público – PIS/Pasep e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – Cofins incidentes sobre receitas financeiras auferidas pelas pessoas jurídicas sujeitas ao regime de apuração não cumulativa das referidas contribuições. Eis o teor dos referidos dispositivos: “Art. 1°. Ficam revogados: […] II – o Decreto n° 11.322, de 30 de dezembro de 2022; e […] Art. 3°. Ficam repristinadas as redações: I – do Decreto n° 8.426, de 1° de abril de 2015, anteriormente a alteração promovida pelo Decreto n° 11.322, de 2022; e […] Art. 4°. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação”. O requerente relata que “[…] no dia 30 de dezembro de 2022, sem que houvesse participação do governo de transição, foi editado pelo então Vice-Presidente da República, no exercício do cargo de Presidente, o Decreto n° 11.322/2022, que reduziu a metade as alíquotas de PIS/PASEP e COFINS sobre receitas financeiras auferidas por pessoas jurídicas sujeitas ao regime de apuração não-cumulativa de tais contribuições. Veja-se: ‘Art. 1°. O Decreto n° 8.426, de 1° de abril de 2015, passa a vigorar com as seguintes alterações: ‘Art. 1°. Ficam estabelecidas em 0,33% (trinta e três centésimos por cento) e 2% (dois por cento), respectivamente, as alíquotas da Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público – PIS/PASEP e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS incidentes sobre receitas financeiras, inclusive decorrentes de operações realizadas para fins de hedge, auferidas pelas pessoas jurídicas sujeitas ao regime de apuração não-cumulativa das referidas contribuições. (NR) Art. 2° Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação e produz efeitos a partir de 1° de janeiro de 2023.’ No momento da edição desse decreto, as alíquotas vigentes eram de 0,65% (sessenta e cinco centésimos por cento) e 4% (quatro por cento), nos termos do artigo 1° do Decreto n° 8.426, de 1° de abril de 2015. Ou seja, o Decreto n° 11.322/2022 determinou uma redução da ordem de 50% (cinquenta por cento) nas referidas alíquotas, gerando uma vultosa renúncia de receita.” (pág. 3 da inicial). Prossegue, assinalando que “[n]o dia 1° de janeiro de 2023, sobreveio o Decreto n° 11.374/2023, objeto da presente ação declaratória, que entrou em vigor na mesma data (artigo 4°) e revogou imediatamente as disposições do diploma anterior, repristinando, por conseguinte, as alíquotas de PIS/COFINS sobre as receitas financeiras constantes do Decreto n° 8.426/2015. O cenário, em síntese, e o seguinte: o Decreto n° 11.322/2022 entrou em vigor no dia 30/12/2022 com previsão expressa de produção de efeitos somente a partir de 171/2023, mas foi revogado pelo Decreto n° 11.374/2023, justamente nesta mesma data, com a manutenção do percentual das alíquotas anteriormente vigentes desde 2015. Não é difícil perceber que a redução de alíquota implementada pelo Decreto n° 11.322/2022 jamais chegou a se aplicar, porquanto revogada no mesmo dia em que se iniciaria a sua eficácia. Trata-se de uma disposição natimorta, que não veio a produzir efeitos na esfera jurídica dos contribuintes.” (pág. 4 da inicial). Assevera, então, que “[…] foram proferidas decisões contrarias [sic] a União – reconhecendo a incidência do princípio da anterioridade nonagesimal na espécie – bem como decisões favoráveis a União, as quais percebem que o Decreto n° 11.374/2023 não impôs aumento de tribute [sic], pois manteve as alíquotas vigentes desde 2015, as quais sequer foram reduzidas, porque a norma que assim determinava não chegou a produzir efeitos.” (pág. 5 da inicial). Sustenta que há controvérsia judicial relevante, em razão da “existência de decisões judiciais proferidas pela Justiça Federal que, aplicando incorretamente o disposto nos artigos 150, inciso III, alínea “c” ou 195, § 6°, da Carta da República, afastam a aplicação do Decreto n° 11.374/2023, possibilitando o recolhimento da contribuição ao PIS/COFINS pelas alíquotas de 0,33% e 2%, respectivamente, nos moldes pretendidos pelo revogado Decreto n° 11.322/2022. O Sistema de Acompanhamento Judicial da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional registra que, somente no período de 1° de janeiro a 2 de fevereiro de 2023 (documento anexo), foram protocoladas 279 ações cíveis nas quais se questiona a aplicabilidade do Decreto n° 11.374/2023.” (pág. 7 da inicial). Indica, também, que, “[n]a medida em que o curto período de vigência do Decreto n° 11.322/2022 tem provocado consequências normativas relevantes, postula-se, desde já, que, a presente ação declaratória contemple também a invalidação do ato normativo do governo anterior.” (pág. 14 da inicial). Na sequência, aponta que “[…] o Decreto revogado nunca chegou a produzir efeitos, por duas razoes: (i) no exíguo prazo em que existiu, não houve sequer um dia útil com expediente bancário ou pregão na Bovespa a possibilitar o auferimento de receita financeira (fato gerador das contribuições); (ii) o decreto foi revogado no dia assinalado para início de sua eficácia (art. 2°).” (pág. 17 da inicial). Alega, outrossim, que, “[d]entro desse contexto, não há como vislumbrar violação ao princípio da não-surpresa [sic]. Como é sabido, tal princípio tem por objetivo evitar que os contribuintes se vejam sobressaltados com alterações não esperadas do sistema tributário, que resultem na criação ou no aumento de impostos, taxas ou contribuições, o que não se verifica no presente caso.” (pág. 17 da inicial). Indica, em acréscimo, que “[…] nenhum contribuinte chegou a auferir rendimento financeiro e a recolher PIS/COFINS com a suposta alíquota reduzida no sábado ou no domingo – até porque a norma sequer tinha começado a produzir efeitos. Ademais, ainda que tivesse havido, na mais remota das hipóteses, alguma percepção de receita financeira, e precise relembrar que a apuração do PIS/COFINS se dá mensalmente e não diariamente, conforme previsto no art. 1° das Leis n° 10.833/2003 e n° 10.637/2002.” (pág. 18 da inicial). O requerente aduz, ainda, que não há como defender, “[…] na espécie, a aplicação da anterioridade nonagesimal. Como visto, a lógica que orienta a anterioridade e a existência de um período de transição, diante de um aumento ou criação de tributo. Não foi o que ocorreu na espécie: a redução pretendida pelo Decreto n° 11.322/2022 sequer gerou efeitos na esfera jurídica dos contribuintes, porquanto foi revogado no mesmo dia que iniciaria a sua eficácia.” (pág. 21 da inicial). Acrescenta a possibilidade de cumulação de pedidos em ações de controle concentrado, advertindo a inconstitucionalidade do Decreto 11.322/2022, que “[t]rata-se de uma hipótese de claro abuso do poder de desoneração tributária, vez que exercido sem transparência, sem justificação adequada e de modo afrontoso aos deveres de cooperação que devem reger as relações institucionais de transição em um Estado Democrático de Direito. Ademais, a edição de ato, no último dia de governo, para gerar renúncia de receita que viria a ser suportada pelo novo governo, também atenta a não mais poder contra os princípios republicano, da impessoalidade e da moralidade administrativas (artigos 1° e 37 da Constituição Federal).” (pág. 25 da inicial). Justifica a necessidade da concessão de medida cautelar “[…] em razão da possibilidade de proliferação de decisões destoantes relativas à questão constitucional suscitada. Como visto, a aplicação do Decreto n° 11.374/2023 tem sido afastada por decisões judiciais que, ao assim procederem, violam preceitos da Carta Constitucional. A situação relatada, além de caracterizar o cumprimento do requisito do fumus boni iuris, comprova a necessidade de urgente intervenção desse Supremo Tribunal Federal, pois a existência de tais decisões gera insegurança jurídica sobre matéria de inegável relevância, com desprestigio a adequada prestação da tutela jurisdicional. Por sua vez, o requisito do periculum in mora mostra-se presente diante da constatação de que recentes decisões judiciais, ao desconsiderarem os comandos do Decreto n° 11.374/2023, entendendo pela aplicação de Decreto que sequer teve eficácia no mundo jurídico, encerram risco real de proliferação da controvérsia.” (pág. 27 da inicial). Por essas razões, requer seja concedida “[…] liminarmente, a suspensão da eficácia de decisões judiciais que, de modo expresso ou implícito, tenham afastado a aplicação do Decreto n° 11.374/2023 para possibilitar o recolhimento da contribuição ao PIS/COFINS pelas alíquotas de 0,33% e 2% respectivamente, nos moldes determinados pelo revogado Decreto n° 11.322/2022; b) no mérito, o julgamento pela procedência do pedido, para declarar a constitucionalidade do Decreto n° 11.374/2023, assentando o entendimento de que a aplicação do Decreto n° 11.374/2023 não está sujeita a anterioridade nonagesimal; c) tendo em vista a possibilidade de cumulação de pedidos em ações de controle concentrado (cf. ADI MC n° 5316, Relator: Ministro LUIZ Fux, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgamento em 21/05/2015, Publicado em 06/08/2015), e diante da absoluta particularidade da hipótese sob exame, seja também declarada a inconstitucionalidade do revogado Decreto n° 11.322/2022, por afronta aos princípios republicano, da moralidade e da proporcionalidade.” (pág. 29 da inicial). É o relatório. Decido. De início, anoto que a presente ação me foi distribuída por dependência à ADI 7.342/DF (art. 77-B, Regimento Interno do STF), de minha relatoria, na qual foi questionada a inconstitucionalidade dos referidos arts. 1°, II; 3°, I; e 4°, do Decreto 11.374/2023. Bem examinados os autos, verifico, em juízo de cognição sumária, compatível com esta fase procedimental, que estão presentes os requisitos para o deferimento da medida cautelar. Nos termos do art. 102, I, a, da Constituição Federal, cabe ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originariamente, a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, cujas decisões definitivas de mérito produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, nos termos do § 2° do referido artigo. Por sua vez, a lei regulamentadora do dispositivo constitucional acima mencionado, a saber, a Lei 9.868/1999, prescreve que a petição da ação declaratória deverá indicar “a existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação da disposição objeto da ação declaratória” (art. 14, III). De acordo com a abalizada doutrina, a controvérsia judicial manifesta-se por meio de “pronunciamentos contraditórios da jurisdição ordinária sobre a constitucionalidade de determinada disposição”, o que indica “o estado de incerteza imprescindível para instauração da ação declaratória de constitucionalidade”. Dessa forma, “são múltiplas as formas de manifestação desse estado de incerteza quanto à legitimidade da norma”.1 Nessa direção, é o entendimento desta Suprema Corte: “AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 15-A DA LEI Nº 9.096/95, COM REDAÇÃO DADA PELA LEI Nº 12.034/2009. CONTROVÉRSIA JUDICIAL RELEVANTE CARATERIZADA PELA EXISTÊNCIA DE DECISÕES JUDICIAIS CONTRADITÓRIAS E PELO ESTADO DE INSEGURANÇA JURÍDICA. REGRA LEGAL QUE PREVÊ A RESPONSABILIDADE EXCLUSIVA DO ÓRGÃO PARTIDÁRIO NACIONAL, ESTADUAL OU MUNICIPAL QUE, INDIVIDUALMENTE, DER CAUSA A DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO, A VIOLAÇÃO DE DIREITO, OU A DANO A OUTREM. CARÁTER NACIONAL DOS PARTIDOS POLÍTICOS. PRINCÍPIO DA AUTONOMIA POLÍTICO-PARTIDÁRIA. AUTONOMIAS ADMINISTRATIVA, FINANCEIRA, FUNCIONAL E OPERACIONAL. CAPACIDADE JURÍDICA E JUDICIÁRIA. INCOMPATIBILIDADE ENTRE O TEXTO CONSTITUCIONAL E O DISPOSITIVO OBJETO DA AÇÃO NÃO VERIFICADA. NATUREZA PECULIAR E REGIME JURÍDICO ESPECIAL E DIFERENCIADO DAS AGREMIAÇÕES PARTIDÁRIAS. ORGANIZAÇÕES DE PADRÃO MULTINÍVEL. VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE INEXISTENTE. OPÇÃO VÁLIDA DO LEGISLADOR. AUTOCONTENÇÃO JUDICIAL. PEDIDO PROCEDENTE. 1. Desde o julgamento da ADC nº 1/DF (Rel. Min. Moreira Alves , Tribunal Pleno, DJ de 16/6/95), o Supremo Tribunal Federal firmou orientação no sentido de exigir, para a caracterização de uma controvérsia judicial relevante, antagonismo interpretativo em proporção que gere um estado de insegurança jurídica apto a abalar a presunção de constitucionalidade imanente aos atos legislativos, sem o qual a ação declaratória se converteria em inadmissível instrumento de consulta sobre a validade constitucional de determinada lei ou ato normativo.” (ADC 31/DF, Rel. Min. Dias Toffoli). “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 2º DA LEI FEDERAL Nº 13.064, DE 30 DE DEZEMBRO DE 2014. CONTROVÉRSIA JUDICIAL RELEVANTE NÃO CONFIGURADA. INEXISTÊNCIA DE CONTRADIÇÃO, OMISSÃO OU OBSCURIDADE. REDISCUSSÃO DE TEMAS JÁ DEBATIDOS NA DECISÃO EMBARGADA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO REJEITADOS. 1. A configuração do requisito previsto no art. 14, inciso III, da Lei nº 9.868/1999 (controvérsia judicial relevante) pressupõe a existência de dissídio judicial em proporções relevantes acerca da constitucionalidade da norma que gere um estado de incerteza apto a abalar a presunção de constitucionalidade imanente aos atos legislativos. Precedentes: ADC 41, Rel. Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe de 17/8/17; ADC 23-AgR, Rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, DJe de 1/2/16; ADC 19, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJe de 29/4/14; ADC 8 MC, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJe de 4/4/03.” (ADC 40-AgR-ED/DF, Rel. Min. Dias Toffoli). “DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO DO TRABALHO. AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE E AÇÕES DECLARATÓRIAS DE CONSTITUCIONALIDADE. ÍNDICES DE CORREÇÃO DOS DEPÓSITOS RECURSAIS E DOS DÉBITOS JUDICIAIS NA JUSTIÇA DO TRABALHO. ART. 879, §7º, E ART. 899, §4º, DA CLT, NA REDAÇÃO DADA PELA LEI 13. 467, DE 2017. ART. 39, CAPUT E §1º, DA LEI 8.177 DE 1991. POLÍTICA DE CORREÇÃO MONETÁRIA E TABELAMENTO DE JUROS. INSTITUCIONALIZAÇÃO DA TAXA REFERENCIAL (TR) COMO POLÍTICA DE DESINDEXAÇÃO DA ECONOMIA. TR COMO ÍNDICE DE CORREÇÃO MONETÁRIA. INCONSTITUCIONALIDADE. PRECEDENTES DO STF. APELO AO LEGISLADOR. AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE E AÇÕES DECLARATÓRIAS DE CONSTITUCIONALIDADE JULGADAS PARCIALMENTE PROCEDENTES, PARA CONFERIR INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO AO ART. 879, §7º, E AO ART. 899, §4º, DA CLT, NA REDAÇÃO DADA PELA LEI 13.467, DE 2017. MODULAÇÃO DE EFEITOS. 1. A exigência quanto à configuração de controvérsia judicial ou de controvérsia jurídica para conhecimento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC) associa-se não só à ameaça ao princípio da presunção de constitucionalidade – esta independe de um número quantitativamente relevante de decisões de um e de outro lado –, mas também, e sobretudo, à invalidação prévia de uma decisão tomada por segmentos expressivos do modelo representativo.” (ADC 58/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes). Pois bem. A Constituição Federal e a lei de regência não elegeram como pressuposto para o ajuizamento da ADC a existência de um número expressivo de pronunciamentos judiciais antagônicos sobre a constitucionalidade do ato normativo, mas, tão somente, como já dito, “a existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação da disposição objeto da ação declaratória”. A esse respeito, em importante obra doutrinária, Hely Lopes Meirelles, Arnoldo Wald e Gilmar Mendes assinalam que “a tentativa de solver a controvérsia com dados estatísticos revela-se completamente inadequada”.2 Assim sendo, não se pode apenas por critérios quantitativos, diminuir o alcance da ADC, sob pena de esvaziar tão relevante instrumento de solução de controvérsia atinente à presunção de constitucionalidade de leis e atos normativos federais, ajuizada diretamente perante o STF. Na espécie, o requerente aponta a existência de controvérsia jurisprudencial ante as decisões proferidas pela Justiça Federal que, tanto afastam como aplicam as alíquotas previstas no Decreto 11.374/2023. Como se percebe dos precedentes coligidos na exordial, não há, de fato, uniformidade de entendimento quanto ao tema (documentos eletrônicos 9 a 16). Além disso, conforme o Sistema de Acompanhamento Judicial da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, “no período de 1° de janeiro a 2 de fevereiro de 2023, foram protocoladas 279 ações cíveis nas quais se questiona a aplicabilidade do Decreto n° 11.374/2023”. (pág. 8 da inicial). Assim, reputo presente controvérsia judicial relevante acerca da aplicação dos dispositivos em tela e conheço da ação. Passo ao exame da cautelar. Num exame perfunctório, de mera delibação, próprio desta fase ainda embrionária da demanda, entendo presentes os requisitos para o deferimento da liminar, quais sejam: a presença de elementos que evidenciem a probabilidade do direito (tradicionalmente conhecida como fumus boni iuris) e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo (periculum in mora). No âmbito da plausibilidade jurídica do pedido, verifica-se, ainda no âmbito de juízo perfunctório, que o Decreto 11.374/2023, ao revogar o Decreto 11.322/2022, repristinou as alíquotas até então vigente nos termos do Decreto 8.426/2015, sem, com isso, majorar tributo de modo a atrair o princípio da anterioridade nonagesimal. Com efeito, os arts. 150, III, c, e 195, § 6º, da Constituição Federal, ao tratar da anterioridade preveem o seguinte: “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: […] III – cobrar tributos: […] c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b”. “Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: […] § 6º As contribuições sociais de que trata este artigo só poderão ser exigidas após decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado, não se lhes aplicando o disposto no art. 150, III, ‘b’”. Ora, o dispositivo em comento é inequívoco no sentido de que o princípio da anterioridade nonagesimal impõe a existência de um prazo de 90 dias entre a lei que institui ou majora um tributo e o início de sua vigência.3 Roque Carrazza refere-se à anterioridade como “princípio da vedação da surpresa”. Vejamos: “De fato, o princípio da anterioridade veicula a ideia de que deve ser suprimida a tributação surpresa (que afronta a segurança jurídica dos contribuintes). Ele impede que da noite para o dia, alguém seja tolhido por nova exigência fiscal. É ele, ainda, que exige que o contribuinte se depare com regras tributárias claras, estáveis e seguras. E, mais do que isso: que tenha o conhecimento antecipado dos tributos que lhe serão exigidos ao longo do exercício financeiro, justamente para que possa planejar, com tranquilidade, sua vida econômica.”4 (grifei) Em sentido análogo, Misabel Derzi, em notas à obra de Aliomar Baleeiro, destaca que “a Carta Magna resguarda o contribuinte contra a surpresa tributária, impondo um interstício de noventa dias entre a data da publicação da lei e de sua eficácia e aplicação” (grifei).5 Portanto, o princípio da anterioridade nonagesimal se coaduna ao primado da segurança jurídica e da proteção da confiança e, portanto, tem como função a previsibilidade. A esse respeito, leciona Humberto Ávila, que “[o] princípio da segurança jurídica exige um estado de calculabilidade, para cuja realização é necessária a capacidade de antecipação e de medição de um espectro reduzido e pouco variável de consequências atribuíveis abstratamente a atos, próprios e alheios, ou a fatos. […] Esse prazo serve para permitir que o destinatário possa preparar-se para a vindoura mudança, sem ser pego desprevenido.”6 No caso dos autos, o Decreto 8.426/2015 previa as alíquotas de 0,65% e 4%, respectivamente, para PIS/Cofins incidentes sobre receitas financeiras. Em 30/12/2022, foi publicado o Decreto 11.322 que reduziu pela metade as referidas alíquotas (0,33% e 2%), com efeitos a partir de 1º/1/2023. Ainda no primeiro dia do ano de 2023, o Presidente da República publicou o Decreto 11.374, com vigência imediata, revogando o supracitado Decreto 11.322/2022 e repristinando o Decreto 8.426/2015, ou seja, mantendo os índices que vinham sendo pagos pelo contribuinte desde 2015 (0,65% e 4%). Logo, verifico, ainda em juízo sumário, que o Decreto 11.374/2023 não pode ser equiparado a instituição ou aumento de tributo e, por isso, não viola os princípios da segurança jurídica e da não surpresa, na medida em que o contribuinte já experimentava, desde 2015, a incidência das alíquotas de 0,65% e 4%. Destarte, não há falar em quebra da previsibilidade ou que o contribuinte foi pego desprevenido. Por oportuno, esclareço que não desconheço o precedente desta Suprema Corte no RE 1.043.313/RS (Tema 939 da Repercussão Geral) e na ADI 5.277/DF, ambos de relatoria do Ministro Dias Toffoli, cuja tese transcrevo a seguir: “É constitucional a flexibilização da legalidade tributária constante do § 2º do art. 27 da Lei nº 10.865/04, no que permitiu ao Poder Executivo, prevendo as condições e fixando os tetos, reduzir e restabelecer as alíquotas da contribuição ao PIS e da COFINS incidentes sobre as receitas financeiras auferidas por pessoas jurídicas sujeitas ao regime não cumulativo, estando presente o desenvolvimento de função extrafiscal”. Nessa mesma oportunidade, o STF decidiu que a redução e o subsequente restabelecimento de alíquotas de PIS/Cofins devem submeter-se ao princípio da anterioridade nonagesimal, já que esse se consubstancia como uma garantia do contribuinte. Contudo, não se trata também, no caso sub judice, de restabelecimento de alíquota de PIS/Cofins incidentes sobre receitas financeiras, mas tão somente manutenção do índice que já vinha sendo pago pelo contribuinte. No mesmo sentido, cito os seguintes precedentes do STF: RE 584.100/SP (Rel. Min. Ellen Gracie) e RE/RG 566.032/RS (Rel. Min. Gilmar Mendes). No voto condutor desse último precedente, o relator consignou o seguinte: “[…] não constato majoração da alíquota de modo a atrair o disposto no art. 195, § 6º, da CF. Primeiro porque os contribuintes, durante o exercício financeiro de 2002 e 2003, vinham pagando a contribuição de 0,38% e não de 0,08%. Como visto, a EC nº 42/2003 manteve a alíquota de 0,38% para 2004 sem, portanto, instituir ou modificar alíquota diferente da que o contribuinte vinha pagando. Poder-se-ia dizer que existiria uma expectativa de diminuição da alíquota para 0,08%, porém, o dispositivo que previa esse percentual para 2004 foi revogado antes de efetivamente ser exigível, ou seja, antes do início do exercício financeiro de 2004. Cabe lembrar que esta Corte, reiteradamente, afasta a tese de direito adquirido a regime jurídico, hipótese que se aproxima a este caso. Segundo, porque não constato violação a segurança jurídica, princípio sustentador do art. 195, § 6º, da CF, na medida em que o contribuinte, há muito tempo, já experimentava a incidência da alíquota de 0,38% e, pois, não sofreu ruptura com a manutenção da alíquota de 0.38% durante o ano de 2004. Assim, se a prorrogação de contribuição não faz incidir o prazo nonagesimal, conforme jurisprudência pacífica desta Corte (v.g. ADI nº 2.666/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 6.12.2002; AI 392574 AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJ 23-05-2008), quando se poderia alegar ‘expectativa’ do final da cobrança do tributo, por maior razão não se deve reconhecer a incidência de tal prazo quando havia mera ‘expectativa’ de alíquota menor. Como visto, a EC nº 42/2003 manteve para o exercício financeiro de 2004, ‘sem solução de continuidade’, percentual que já fazia parte do cotidiano do contribuinte” (RE/RG 566.032/RS, Voto do relator, Min. Gilmar Mendes; grifos no original). Ainda a este respeito, relembro trecho do voto do Ministro Cezar Peluso naquele caso: “[…] a norma do artigo 84, § 3º, inciso II, com a redação introduzida pela Emenda Constitucional nº 37, nunca vigorou, não incidiu; nenhum contribuinte pagou a contribuição por alíquota menor. De modo que, tendo sido revogada essa norma antes que ela fosse aplicada a qualquer situação concreta, não se pode – a não ser por metáfora ou por crítica metajurídica – falar que tenha havido aumento de imposto. O tributo era o mesmo; a alíquota era a mesma e não houve interregno nenhum que separasse valores diferentes da mesma alíquota” (RE 566.032/RS, Voto do Min. Cezar Peluso; grifei). De outro giro, observo que o regime tributário é definido pela lei vigente à data da ocorrência do fato gerador, nos termos do art. 144 do Código Tributário Nacional, litteris: “Art. 144. O lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então vigente, ainda que posteriormente modificada ou revogada”. No presente caso, as contribuições ao PIS/Cofins incidentes sobre receitas financeiras, com incidência não cumulativa, têm como fato gerador o faturamento mensal, nos termos das Leis 10.637/2002 e 10.833/2003. Desse modo, a lei aplicável será aquela vigente à data da ocorrência do fato gerador, ou seja, o art. 1º do Decreto 8.426/2015, repristinado pelo Decreto 11.374/2023. Como se vê, no seu exíguo prazo no ordenamento jurídico, o Decreto 11.322/2022 não foi aplicado ao caso concreto, pois não houve sequer 1 (um) dia útil a possibilitar auferimento de receita financeira – isto é, como não ocorreu o fato gerador, o contribuinte não adquiriu o direito de se submeter ao regime fiscal que jamais entrou em vigência. Nesse sentido, rememoro trecho do voto da Ministra Ellen Gracie, no já citado RE 566.032/RS: “O regime tributário, com diz a melhor doutrina e a jurisprudência desta Casa, define-se pela lei vigente à data da ocorrência do fato gerador. E, no caso, antes da ocorrência de qualquer fato tributável, ou seja, de qualquer movimentação financeira sobre a qual incidisse a alíquota, definiu-se uma prorrogação da alíquota até então vigente. Não houve majoração de alíquota, não houve criação de novo tributo, portanto, não há necessidade de respeito à noventena”. Dito isso, embora ainda num exame prefacial, próprio das decisões cautelares, entendo que não houve aumento ou restabelecimento de alíquota de PIS/Cofins incidentes sobre receitas financeiras auferidas pelas pessoas jurídicas sujeitas ao regime de apuração não cumulativa, de modo a afastar a anterioridade nonagesimal. Por fim, penso que, caracterizada a probabilidade do direito quanto à constitucionalidade do Decreto 11.374/2023, ficou devidamente evidenciado o requisito do perigo da demora ante a constatação da controvérsia constitucional relevante e a existência de decisões judiciais conflitantes acerca do tema. Ante o exposto, concedo a medida cautelar requerida, ad referendum do Plenário desta Suprema Corte (art. 21 da Lei 9.868/1999 cumulado com o art. 5º, §1º, da Lei 9.882/1999), para suspender a eficácia das decisões judiciais que, de forma expressa ou tácita, tenham afastado a aplicação do Decreto 11.374/2023 e, assim, possibilitar o recolhimento da contribuição para o PIS/Cofins pelas alíquotas reduzidas de 0,33% e 2%, respectivamente, até o exame de mérito desta ação. Solicite-se inclusão do referendo desta medida cautelar para julgamento no Plenário Virtual, nos termos do art. 21, V, do RISTF, com a redação dada pela Emenda Regimental 58/2022. Publique-se. Comunique-se com urgência. Brasília, 8 de março de 2023. Ministro Ricardo Lewandowski Relator 1 MEIRELLES, Hely Lopes et al. Mandado de Segurança e Ações Constitucionais. 35. ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 487. 2 Ibidem, p. 487. 3 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2021. p. 343. 4 CARRAZZA, Roque. Curso de Direito Constitucional Tributário. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 189; grifei. 5 DERZI, Misabel. Notas de atualização de BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p.69; grifei. 6 ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 4. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 616-617.