O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma nesta sexta-feira (29/4) o julgamento que deve trazer uma resposta ao imbróglio causado pela decisão que afastou a incidência de ICMS em operações de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo dono localizados em estados distintos. A principal questão é definir se o contribuinte poderá manter o crédito de ICMS obtido na compra de mercadorias e utilizá-lo em outro estado.
De um lado, os contribuintes esperam que o STF autorize essa manutenção e transferência dos créditos de ICMS. De outro, os estados se dividem sobre o tema. Fontes ouvidas pelo JOTA afirmam que, a depender do estado, permitir a transferência do crédito de ICMS não necessariamente será uma solução. Em tese, a unidade federativa que ficará com a arrecadação de ICMS, será o remetente da mercadoria, ao passo que o estado destinatário não terá esses recursos.
A discussão é objeto da ADC 49. No julgamento que será realizado até 6 de maio, por meio do plenário virtual, os ministros analisam um pedido de modulação de efeitos feito pelo estado do Rio Grande do Norte. Nos embargos de declaração, opostos em maio de 2021, a unidade federativa pede que a decisão tenha efeitos para frente, de modo a resguardar as operações realizadas e não contestadas na Justiça até a publicação da ata de julgamento da ação, ou seja, 19 de abril de 2021.
Para tributaristas ouvidos pelo JOTA, além da modulação de efeitos, a principal expectativa é que o STF analise outras duas questões: se as empresas podem manter o crédito de ICMS que obtiveram ao comprar as mercadorias e, em caso positivo, se essas empresas podem transferir esse crédito para as filiais em outros estados juntamente com esses bens.
O tributarista Eduardo Pugliese Pincelli, do escritório do Schneider Pugliese, afirma que, embora positiva sob o aspecto da não incidência do ICMS sobre as transferências, a depender do resultado do julgamento dos embargos, a decisão pode prejudicar alguns contribuintes. A preocupação afeta sobretudo os varejistas, que se ramificam por meio de filiais em vários estados. Calcula-se que as dez maiores empresas do varejo brasileiro podem perder R$ 5,6 bilhões de créditos tributários de ICMS por ano.
Pugliese explica que, na prática, em função do regime da não cumulatividade, ao comprar uma mercadoria e pagar ICMS sobre essa operação, a empresa apropria um crédito correspondente ao valor do tributo pago. Em um segundo momento, no da transferência de mercadorias para uma filial em outro estado, a empresa podia utilizar esse crédito para pagar o ICMS incidente nessa operação e, em função dessa nova tributação, ganhava um novo crédito. Por fim, quando a filial vendia o produto já no outro estado, por exemplo para o consumidor final, ela aproveitava esse segundo crédito para pagar o ICMS incidente nessa venda.
“Na prática, a incidência do ICMS na transferência da mercadoria representa a própria transferência do crédito. A depender do caso, não incidir o ICMS na transferência de mercadorias, com o bloqueio do crédito, é pior para o contribuinte, que vai ter de tirar dinheiro do caixa para pagar o ICMS quando vende a mercadoria ao consumidor, por exemplo”, afirma Pugliese, que representa a Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), admitida como amicus curiae na ADC 49.
Estorno dos créditos
A tributarista Ariane Costa Guimarães, sócia do Mattos Filho Advogados, afirma que a controvérsia vai além da transferência do crédito. Discute-se ainda se, por não pagar mais ICMS na transferência de mercadorias, o contribuinte vai ter de devolver aos estados o primeiro crédito que recebeu ao comprar esses bens.
“Quando o STF diz que não incide mais ICMS na transferência de mercadorias, qual é a consequência disso? Uma das interpretações pode ser que, primeiro, se não há mais a operação tributável, não há o crédito dessa operação para utilizá-lo na próxima etapa, na venda da mercadoria. Segundo, se a transferência não é tributada, outra consequência possível é a empresa ter de estornar todos os créditos anteriores, o que já foi rechaçado pelo ministro Edson Fachin”, afirma a advogada.
Atento a essa questão, o estado do Rio Grande do Norte sugeriu nos embargos de declaração que a decisão do STF implicará o estorno dos créditos aproveitados na primeira operação.
“Em não havendo determinação contrária na legislação – e não o há -, a decisão proferida neste feito autoriza o Estado de origem a exigir o estorno dos créditos das operações anteriores àquela não sujeita à incidência do tributo, autorizando o Estado de destino, de igual modo, a exigir o ICMS integral (sem crédito) nas operações de saída internas de mercadorias”, afirma o estado, nos embargos de declaração.
A respeito do estorno, o argumento do estado do Rio Grande do Norte é que, com a decisão do STF, incidiria a norma do artigo 155, parágrafo segundo, inciso II, alínea “b”, da Constituição. De acordo com esse dispositivo, salvo determinação em contrário da legislação, a isenção ou não incidência do ICMS “acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores”.
A tributarista Rebeca Müller, do Figueiredo e Velloso Advogados, discorda do argumento do estado do Rio Grande do Norte. A seu ver, não se está falando de não incidência ou isenção de ICMS porque não há uma “saída” da mercadoria, mas uma mera transferência física.
“A Constituição permite que os estados cancelem esses créditos (originados da operação anterior, na compra da mercadoria) caso a saída do bem enseje uma não incidência ou isenção do ICMS (ou seja, caso não tenha a tributação pelo ICMS). O que se argumenta, pelos contribuintes, é que não há essa operação de saída, mas uma mera transferência física da mercadoria”, diz.
O tributarista Igor Mauler Santiago, do escritório Mauler Advogados, reforça que, uma vez que o STF reconheceu que, nesse caso, os estabelecimentos são autônomos, não há a “saída” da mercadoria.
“Se a pessoa jurídica é uma só e eu transfiro o bem de um estabelecimento para o outro, esse bem continua na propriedade da mesma pessoa jurídica. O que determina o estorno é a saída isenta ou não tributada. Mas não há sequer uma saída, uma vez que estamos no âmbito da mesma pessoa jurídica”, diz Mauler.
Para o advogado, se o crédito não puder ser transferido, isso será ruim tanto para o contribuinte quanto para o fisco. Na prática, um estado terá um débito de ICMS para com o contribuinte e o outro receberá todo o crédito.
Para Pugliese, o que está em jogo é o princípio da não cumulatividade: “O ICMS não incide sobre as transferências, inclusive interestaduais, mas isso não pode implicar o estorno do crédito nem impedir que a filial no estado de destino aproveite o crédito, sob pena de violação ao princípio da não-cumulatividade”, diz o advogado.
Rebeca observa que outra preocupação dos contribuintes diz respeito a benefícios fiscais obtidos a partir da incidência do ICMS na transferência de mercadorias a estabelecimentos em outros estados.
“Essa é uma questão mais contábil. Alguns benefícios, por exemplo o de crédito presumido de ICMS, condicionam que o contribuinte destaque o ICMS na nota fiscal no momento da transferência de mercadorias. Se o tributo não incide, ele não será destacado e, consequentemente, o contribuinte perde o benefício fiscal”, diz Rebeca.
De acordo com o diretor institucional do Comitê Nacional dos Secretários de Estado da Fazenda (Comsefaz), André Horta, os estados trabalham conjuntamente na elaboração de uma minuta de um convênio que trate do assunto.
“Os estados estão na expectativa de que, ao final, se delegue ao Comsefaz a competência para regulamentar a nova sistemática, de modo que os próprios estados possam esclarecer os procedimentos a serem tomados com relação às transferências, bem como, eventualmente, ao crédito de ICMS, e possam prevenir eventuais distorções tributárias, como uma possível agudização de guerra fiscal, por exemplo”, afirma.
Cenários para a modulação
Advogados esperam que o STF traga uma resposta a essas questões na votação que será retomada nesta sexta-feira. Caso contrário, a própria decisão do Supremo de afastar a incidência do ICMS em operações de transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo dono localizados em estados distintos perde o sentido.
“Se o crédito não puder ser mantido e transferido, do que me adianta ter a decisão? O contribuinte, apesar de ter o direito a não tributar a transferência, preferirá recolher o tributo para ter direito ao crédito”, afirma Mauler.
O julgamento dos embargos de declaração opostos pelo estado do Rio Grande do Norte foi iniciado ainda em 2021 em plenário virtual, mas suspenso duas vezes a pedido dos magistrados. Da última vez, ele foi interrompido em 20 de dezembro de 2021 após os ministros formarem um placar que impedia a modulação de efeitos.
São necessários oito ministros para formar esse quórum. No entanto, os oito ministros que haviam votado até aquele momento se dividiam entre três soluções distintas. Assim, matematicamente, não era mais possível modular os efeitos da decisão.
Diante desse cenário, Gilmar Mendes pediu destaque, o que faria com que o julgamento recomeçasse do zero no Plenário. Mais tarde, o magistrado desistiu do destaque, o que devolveu o caso à pauta virtual que começa nesta sexta-feira. O julgamento, agora, deverá ser retomado com o voto de Gilmar Mendes, e a expectativa é que outros ministros ajustem seu voto de modo que o quórum necessário para a modulação de efeitos seja alcançado.
Durante a discussão em plenário virtual, formaram-se três correntes de modulação, mas elas podem sofrer ajustes, sobretudo porque algumas colocavam o início do ano 2022 como parâmetro. As três correntes reconheceram o direito dos contribuintes de manter os créditos de ICMS da operação anterior à transferência, mas não está claro como esse crédito poderá ser transferido juntamente com a mercadoria.
O relator, ministro Edson Fachin, propôs uma eficácia pró-futuro, a partir do próximo exercício financeiro, na época, em 2022. Agora, é preciso saber se ele manterá essa posição. Além disso, Fachin concluiu que a decisão “não afasta o direito de crédito da operação anterior”. Na ocasião, Fachin foi acompanhado pelos ministros Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski.
O ministro Dias Toffoli, por sua vez, propôs que os efeitos da decisão tivessem eficácia após o prazo de 18 meses, contados da data de publicação da ata de julgamento dos embargos. Toffoli acompanhou o relator, para reconhecer “o direito de os contribuintes não estornarem o crédito de ICMS concernente às operações anteriores”. Além disso, Toffoli afirmou que essa questão da compensação e transferência de créditos deve ser regulamentada por meio de lei complementar. Os ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux acompanharam Toffoli.
Já o ministro Luís Roberto Barroso propôs que os estados regulamentassem a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos de mesmo titular localizados em estados diferentes até o fim do ano de 2021 – o que já passou. Caso contrário, a falta de regulamentação garantiria aos contribuintes o direito à transferência a partir de 2022. O ministro também propôs que a decisão só valesse a partir de 2022 e também que fossem ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito. O ministro poderá ajustar o voto com novas datas.
Se nenhum magistrado mudar o voto já proferido, não haverá quórum, e a decisão não será modulada, ou seja, não terá seus efeitos projetados apenas para o futuro. Isso significa, na prática, que as normas declaradas inconstitucionais pelo STF serão tidas como inconstitucionais desde sempre, afetando também situações passadas e implicando em devolução de valores cobrados pelos estados. Consequentemente, seriam discutidos créditos de ICMS também concedidos no passado.
Para Ariane, do Mattos Filho Advogados, a decisão do STF poderá trazer impactos como a reestruturação das empresas e sobre a economia como um todo. A seu ver, por exemplo, se os estabelecimentos precisarem tirar dinheiro do bolso para pagar o ICMS na saída das mercadorias, esse custo poderá ser repassado aos consumidores.
“A depender do caminho que tomar, a decisão do STF vai causar reestruturação societária, migração de empresas entre estados e queda nas vendas. É uma decisão que pode ter um impacto trágico em um contexto econômico já complicado”, diz a advogada.
Fonte: JOTA/CRISTIANE BONFANTI