A maioria das decisões de 2ª instância tem sido desfavorável aos contribuintes em processos que discutem o momento de cobrança do diferencial de alíquota (Difal) de ICMS no caso de consumidor final não contribuinte do imposto. A informação é resultado de um levantamento realizado pelo JOTA, que localizou decisões monocráticas ou colegiadas relacionadas a 538 casos, sendo que em 515, ou seja, em 95,7%, o resultado foi favorável aos fiscos estaduais.
A busca compreendeu decisões em 2ª instância em ações nas quais os contribuintes pediam a suspensão da cobrança por um ano (anualidade), ou, alternativamente, por 90 dias (noventena) após a publicação da Lei Complementar (LC) 190/2022, sancionada em 5 de janeiro pelo presidente Jair Bolsonaro. A pesquisa engloba o período até 1º de abril.
O número de processos em tramitação no país sobre o tema, porém, pode ser maior do que o identificado pelo JOTA, já que o levantamento foi baseado na consulta de jurisprudência dos tribunais, que revelaram resultados discrepantes de estado para estado.
Agravos e suspensões de segurança
No ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os estados só poderiam cobrar o difal de ICMS mediante a regulamentação por lei complementar. O Congresso articulou a aprovação da LC 190 ainda em 2021 para evitar o impacto nos cofres estaduais. Após a sanção, no entanto, contribuintes impetraram ações argumentando que a cobrança imediata do diferencial de alíquota fere as alíneas ‘b’ e ‘c’ do inciso III do caput do artigo 150 da Constituição Federal.
Segundo o dispositivo, é vedado cobrar tributos no mesmo exercício financeiro em que tenha sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, ou antes de decorridos 90 dias da data da publicação. A LC 190, em seu artigo 3º, faz referência direta à alínea c, que estabelece a obrigatoriedade de observar a noventena sem prejuízo da observância da anualidade.
Entre os entendimentos desfavoráveis aos contribuintes, destaca-se a derrubada em massa de liminares por presidentes dos TJs estaduais em 13 estados (AL, BA, CE, ES, GO, MA, MT, PE, PB, PI, SC, SE e SP) e no Distrito Federal. No Mato Grosso, o TJMT chegou a suspender, de uma vez, mais de 100 liminares (processo 1004168-79.2022.8.11.0000). As decisões foram dadas em suspensão de segurança, mecanismo que pode ser usado em caso de ameaça à ordem, saúde, economia e segurança pública. Os presidentes dos tribunais entenderam que a suspensão da cobrança poderia causar impacto orçamentário e comprometer a prestação de serviços públicos.
Entraram no levantamento como decisões desfavoráveis aos contribuintes casos com confirmação do entendimento de 1ª instância que não concedeu a liminar ou a extinção do feito sem resolução do mérito. Entram no último tipo de decisão, por exemplo, mandados de segurança interpostos contra partes consideradas não legítimas pelos desembargadores.
Por outro lado, 23 entendimentos foram favoráveis aos contribuintes, com a concessão ou a manutenção de liminares de primeira instância. Apenas 12 empresas obtiveram o direito à anualidade, e os estados só poderão cobrar o diferencial a partir de janeiro de 2023, e seis garantiram a observância da noventena.
Em dois casos (processo 0460364-64.2022.8.13.0000, em Minas Gerais, e 1403706-30.2022.8.12.0000, no Mato Grosso do Sul) a cobrança do difal foi suspensa até o julgamento do mérito dos mandados de segurança individuais. Também no Mato Grosso do Sul, em duas decisões (processos 1402098-94.2022.8.12.0000 e 1402660-06.2022.8.12.0000), foi garantida a impossibilidade de cobrança nos quatro primeiros dias de 2022. No Rio de Janeiro (0002520-59.2022.8.19.0000), um desembargador suspendeu o processo até a decisão do Supremo sobre as ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) 7066, 7070, 7075 e 7078, que tratam do início da vigência da LC 190.
ADIs
Para Adolpho Bergamini, sócio do Bergamini Advogados e juiz do TIT-SP, o fato de as decisões nos tribunais estarem desfavoráveis neste momento não significa que os contribuintes estão perdendo a discussão. Ele destaca que, na maioria dos casos, foram analisados apenas os riscos aos cofres públicos, e não questões de mérito. Bergamini ressalta ainda que a questão será resolvida no STF, quando a Corte fixar entendimento no julgamento das ADIs.
Movidas, respectivamente, pela Associação Brasileira da Indústria de Máquinas (Abimaq) e pelo Sindicato Nacional das Empresas de Produtos Siderúrgicos (Sindisider), as ADIs 7066 e 7075 requerem a suspensão imediata dos efeitos da LC 190 por todo o ano de 2022, com postergação da vigência para janeiro de 2023. Por sua vez, as ADIs 7078 e 7070 foram propostas pelos governos do Ceará e Alagoas e buscam garantir a cobrança do difal do ICMS desde a publicação da lei complementar, em 5 de janeiro.
Em parecer sobre o tema enviado ao Supremo, a Advocacia-Geral da União (AGU) se manifestou a favor da cobrança só em 2023, e, caso a Corte não entenda dessa forma, a favor da observância pelo menos da noventena. Nesta quarta-feira (5/4), foi a vez de a Procuradoria-Geral da República (PGR) se posicionar, enviando parecer com o mesmo teor ao STF.
Para Breno Vasconcelos, pesquisador no Insper e na FGV-SP e sócio do Mannrich e Vasconcelos Advogados, o levantamento mostra um cenário bastante desfavorável aos contribuintes, além de um controle por parte dos presidentes dos TJs com as suspensões de liminares. Ele aponta, ainda, para o aumento do contencioso mesmo após decisão do Supremo e regulamentação da matéria em lei.
“Veja como o Brasil é capaz de gerar contencioso. O STF decidiu e modulou para que a decisão produzisse efeitos somente a partir de 2022. O Congresso correu para aprovar [a LC 190]. O Senado foi ágil, mas, na Câmara, por motivos que desconheço, demorou a ser deliberado. Foi enviado ao presidente para sanção em 20 de dezembro [de 2021], com prazo suficiente, mas, não sei o porquê, foi sancionado só em 5 de janeiro [de 2022]. Todos os Poderes deliberaram e resolveram, todo mundo com uma parcela de culpa, e a gente está convivendo, agora, em uma análise subestimada, com 538 ações. A gente está vivendo o contencioso do contencioso”, observa.
Procurado pela reportagem, o Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda dos Estados e do Distrito Federal (Comsefaz) afirmou, em nota, que as decisões judiciais assegurando a cobrança do difal do ICMS ainda em 2022 estão corretas. “A maioria das decisões nos judiciários estaduais corroboram com tese sempre defendida pelos Estados: é primordial a continuidade da cobrança da difal, não há motivos legais para sua interrupção. Não há aumento de tributo, a lei apenas regulamenta uma sistemática aplicada há anos e apenas define uma forma mais equitativa da distribuição da arrecadação, prezando pelo equilíbrio federativo”, diz.
Interesse público
Um dos pontos do levantamento do JOTA que mais chamou a atenção dos especialistas foi o movimento dos presidentes dos tribunais de Justiça para derrubada das liminares que garantiam aos contribuintes a postergação da cobrança do diferencial de alíquota. Breno Vasconcelos observa que há previsão para a suspensão no ordenamento jurídico, nas leis 8.437/92 e 12.016/2009. Contudo, ele vê o risco de as afirmações dos governos estaduais sobre impacto orçamentário da postergação da cobrança do difal gerarem pressão sobre os presidentes dos TJs
“Do ponto de vista de desenho institucional, há uma questão a ser colocada. O orçamento dos tribunais de Justiça estaduais é deliberado pelos próprios magistrados, mas encaminhado pelo Executivo à assembleia legislativa. Os governos estaduais têm uma espécie de poder de pressão sobre o Judiciário estadual.”
Além disso, Vasconcelos questiona a justificativa de que assegurar a cobrança seria resguardar o interesse público. “Nesse ponto, me parece que há uma discussão equivocada sobre o que é interesse público e o que é interesse do Estado. O interesse público não é só o interesse do Estado, mas de toda a sociedade, inclusive do contribuinte. Me parece que essas decisões estão trabalhando com conceitos muito abstratos sobre o que é interesse público, o que é ordem pública. O ambiente de negócios, a segurança jurídica, o interesse dos contribuintes, também são de interesse da sociedade”, afirma.
Adolpho Bergamini também considera as decisões que suspenderam as liminares barrando a cobrança do difal “essencialmente políticas”. “A figura da suspensão de segurança, em que o ente político pode pedir a suspensão de liminar por conta do risco ao erário [risco aos cofres públicos], é um mecanismo jurídico essencialmente político, porque ele não olha o direito do envolvido”, diz.
Fonte: JOTA/ MARIANA RIBAS / MARIANA BRANCO / BÁRBARA MENGARDO