Artigos e vídeos nas redes sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no caso da ADI 5.469 – ICMS Difal – mostram a insanidade tributária que assola o país. No caso, a Suprema Corte declarou por maioria que cláusulas do Convênio Confaz nº 93, de 2015, são inconstitucionais porque, em resumo, as matérias da Emenda Constitucional nº 87, de 2015, que incluiu o ICMS Difal na Constituição, deveriam ter sido reguladas por lei complementar.
Nesse sentido, finalizado o julgamento dos embargos em 18 de dezembro, alguns Estados editaram no “apagar das luzes” de 2021 decretos, medidas provisórias e leis estaduais para tentar impedir a aplicação do princípio da anterioridade em 2022.
Mas todos sabem que o ICMS tem implicações nacionais e que os Estados têm competência e são “obrigados” a instituir o imposto em seus territórios de acordo com regras gerais e uniformes, sob pena de “quebra” do pacto federativo e da exigibilidade de Convênio para obrigações tributárias extraterritoriais ou que superem os limites geográficos do território estadual e para casos de aplicação de alíquotas menores que as interestaduais (incentivos fiscais).
Entretanto, vários Estados não editaram em 2021 novas regras legais para exigir o tributo, o que impede a cobrança em 2022. Por outro lado, problema relevante ocorre com as leis estaduais que entraram em vigor antes da data de publicação do novo Convênio ICMS Difal nº 236, de 2021, publicado em 6 de janeiro.
As regras do Convênio ICMS nº 236, de 2021, devem estar expressamente previstas nos textos das leis estaduais
A Lei Complementar nº 190, de 4 de janeiro, estabeleceu diversas regras legais que dependeriam de convênio, inclusive para a regulação de um “portal” com biblioteca legislativa e um sistema de apuração centralizada, com controle de alíquota e divisão dos pagamentos entre os Estados, bem como para aplicação, se for o caso, de regras internas de incentivos fiscais sobre o próprio ICMS Difal em cada Estado.
Nota-se que a lei complementar estabeleceu imposição de obrigações tributárias extraterritoriais, isto é, o remetente de mercadoria a consumidor final localizado em um Estado deverá observar a legislação do Estado de destino do bem ou serviço, o que, de acordo com o Código Tributário, depende de convênio, sem o qual um contribuinte estabelecido em um Estado não estará sujeito à legislação e fiscalização de outro. É que, como se sabe, numa federação as normas de um Estado federado vigoram nos limites de seu território.
Nesse ponto, o STF entende que convênios no Confaz são etapas prévias à legislação estadual, em especial, nas situações que envolvam incentivos fiscais no ICMS (ADI 1.247, ADI 2.357 e ADI 5.929). Defender e preservar essa ordem do processo legislativo tributário reduz o caos do sistema normativo e garante neutralidade, harmonia federativa e segurança jurídica para as empresas.
Assim como convênios no Confaz não têm força para substituir matéria reservada à lei complementar, o inverso também não tem, pois cada norma jurídica tem sua função e finalidade no sistema tributário.
Na medida em que a Constituição, o Código Tributário e a Lei Complementar nº 190, de 2022, exigem a realização de convênio para operacionalizar o ICMS Difal extraterritorial, as leis estaduais anteriores à data de publicação do Convênio nº 236 são nulas e devem ser refeitas e aprovadas pelas assembleias legislativas: as regras do Convênio nº 236 devem estar expressamente previstas nos textos das leis estaduais.
Uma interpretação contrária afeta a proibição de constitucionalização superveniente de leis defeituosas em face do modelo constitucional posto em uma certa época. Tal assertiva é repetida pelo STF desde a ADI 2, cuja ementa consignou que “o vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração”. No RE 390.840-5, como exemplo, a Suprema Corte declarou que ou “a lei surge no cenário jurídico em harmonia com a Constituição Federal, ou com ela conflita, e aí afigura-se írrita, não sendo possível o aproveitamento, considerado texto constitucional posterior e que, portanto, à época não existia”.
Por outro lado, vale ressaltar que a solução controversa do STF no RE 1.221.330 não pode ser aqui utilizada, uma vez que não se trata de lei estadual aprovada após emenda constitucional e antes de lei complementar, caso em que as leis estaduais ficariam condicionadas à entrada em vigor da norma geral (lei complementar).
No caso da ADI 5.469 – ICMS Difal, ficou registrado no voto condutor do ministro Dias Toffoli, entre outras diretrizes, que a matéria deve ser regulada por lei complementar e que as leis estaduais/distrital prévias e as cláusulas primeira, segunda, terceira e sexta do Convênio nº 93, de 2015, são inconstitucionais e produzem efeitos apenas até 31 de dezembro de 2021 (modulação de efeitos).
Entretanto, como referido, a Lei Complementar nº 190 e o Convênio nº 236 foram publicados apenas em 2022 e a maior parte das leis estaduais são de 2021 ou anteriores.
Inclua-se nesse debate a previsão contida no artigo 3º da Lei Complementar nº 190, de 2022, quanto à aplicação do artigo 150, inciso III, alínea “c”, da Constituição, o qual pressupõe respeito à alínea “b” do mesmo dispositivo: princípio da anterioridade anual e de 90 dias por se tratar (ver acórdão do STF) de inovações tributárias por alterações em critérios da regra matriz de incidência. Portanto, com leis estaduais válidas, ICMS Difal deve ficar para 2023.
Daniel Andrade Pinto é advogado, mestre em Direito Constitucional pela ITE de Bauru-SP, especialista em Justiça Constitucional pela Universidade de Pisa na Itália, tributarista, diretor e editor do núcleo de pesquisa Tributo
Fonte: Valor Econômico