A demora na conclusão do julgamento sobre o fim do voto de qualidade no STF pode gerar um cenário dantesco. Após quase dois anos da extinção do voto de qualidade para julgamento de processos administrativos federais com exigência de crédito tributário pela Lei nº 13.988/2020, e o gradual aumento de valores de alçada para julgamentos no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) tem-se percebido nos últimos meses a real dimensão dos efeitos dessa alteração legislativa e seu impacto no contencioso administrativo tributário federal.
A cada dia mais e mais julgamentos têm aplicado o in dubio pro contribuinte. Temas tradicionais pautados em questões de direito como juros sobre capital próprio (JCP) retroativo, aplicação de tratados internacionais em matéria de lucros do exterior, amortização fiscal de ágios, concomitância de multas isoladas e de ofício, afastamento da trava de 30% na compensação de prejuízos fiscais em caso de extinção de empresas, dentre tantos outros, nos quais invariavelmente os contribuintes eram derrotados, passaram a ter desfechos favoráveis, materializando um cenário tido como inimaginável até pouco anos.
A demora na conclusão do julgamento sobre o fim do voto de qualidade pode gerar um cenário dantesco
Em muitas destas discussões os contribuintes já vinham alcançando vitórias expressivas no Poder Judiciário, até mesmo em decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), evidenciando assim o anacronismo do voto de minerva fazendário.
Apesar das ótimas novas, ainda paira uma certa apreensão tanto das empresas quanto do meio jurídico quanto a manutenção desse cenário e a estabilização das decisões que nele vem sendo proferidas. Isso porque pendem de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) três ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) promovidas pela Procuradoria-Geral da República, pelo Partido Socialista Brasileiro e pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil que visam, sob diferentes argumentos, invalidar a alteração promovida em abril de 2020 pelo Congresso Nacional.
A avaliação dessa contenda no STF teve início em junho deste ano com dois votos até o momento, o do ministro Marco Aurélio (atualmente aposentado) que propôs a inconstitucionalidade formal do dispositivo, em razão da inclusão de tema sem relação com a proposição original durante a fase de conversão da medida provisória em lei, e o do ministro Luís Roberto Barroso, que entendeu não haver inconstitucionalidade da norma, tendo apenas o legislador optado por mudar a sistemática de julgamento de processos relativos à determinação e à exigência dos créditos tributários.
Contudo, o julgamento iniciado por meio do Plenário Virtual foi suspenso por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, não havendo previsão para sua retomada. A demora em sua conclusão e o exponencial aumento do número de decisões favoráveis aos contribuintes nos casos de empate pode gerar um cenário dantesco caso as ADIs sejam julgadas procedentes, restabelecendo o voto de qualidade, sem que ocorra a adequada e necessária modulação temporal dos efeitos desta eventual decisão, prevista no artigo 27 da Lei nº 9.868/99.
Esse instrumento foi criado pelo legislador ordinário justamente para calibrar os efeitos de decisões proferidas em sede de controle concentrado, visando dentre outros valores preservar o princípio maior da segurança jurídica.
Apesar de acreditarmos piamente que a Lei nº 13.988 não padece de vício formal ou material, não se pode deixar de cogitar, ainda que hipoteticamente, sua eventual invalidação pelo Supremo com danosas consequências, caso não se estipule um marco temporal adequado para o início de seus efeitos.
Estarão em jogo bilhões de reais em autuações desconstituídas pelo Carf, que por um passe de mágica podem vir a se tornar exigíveis, ou no mínimo ter o restabelecimento do seu contencioso administrativo.
Quanto mais o STF demora a se pronunciar, mais evidenciada e mandatória se torna a modulação temporal dos efeitos da decisão, sob pena de se instaurar um cenário completamente heterodoxo e caótico.
Afinal, como explicar a um investidor estrangeiro que determinada contingência baixada do balanço por vitória obtida no contencioso administrativo, não só ressuscitou, como ainda pode vir a efetivamente comprometer o patrimônio da empresa investida bem como seus planos para investimento futuros. No mínimo, soa como algo surreal.
A estabilidade das relações jurídicas entre o poder público e os administrados não pode ser tratada como algo menor, muito pelo contrário, deve sempre observar boa-fé e porque não dizer o fair play tributário.
A realidade instaurada pela Lei nº 13.988/2020 não criou uma mera expectativa de direito, mas uma efetiva realidade que se desconstruída do dia para noite em relação aos seus efeitos pretéritos, ofenderá não só valores constitucionais, como também criará uma absoluta crise de confiança àqueles que acreditam e apostam neste país.
Por momento, só podemos acreditar que o inóspito e sombrio cenário aqui descrito não se materializará, seja pela improcedência das ADIs, seja pelos efeitos prospectivos de indesejada decisão que declare a inconstitucionalidade da alteração realizada em favor dos contribuintes.
Valor Econômico – Por Alessandro Barreto Borges, 14/01/2021
Alessandro Barreto Borges é sócio da área tributária do escritório Benício Advogados.