Não é raro, quando se questiona a validade de exigências tributárias junto ao Poder Judiciário, que a administração tributária argumente com a perda de arrecadação que seria gerada pelo reconhecimento da invalidade. Tanto para defender a validade da exigência como, principalmente, para pleitear a limitação temporal (modulação) dos efeitos da decisão que reconhece essa invalidade.
Foi o que se assistiu quando o Supremo Tribunal Federal decidiu pela necessidade de exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins. Quando começou a se debruçar sobre as alíquotas seletivas de ICMS, mais elevadas sobre itens mais essenciais como a energia elétrica. E, também, quando reconheceu a necessidade de regramento em lei complementar nacional para que se possa cobrar o diferencial de alíquota do ICMS nas operações com consumidores finais não contribuintes do imposto.
O argumento, contudo, não se sustenta, seja do ponto de vista jurídico, seja do ponto de vista lógico. E é muito mais perigoso do que parece à primeira vista.
Sob um prisma jurídico, a circunstância de haver queda na arrecadação não é motivo para que se reconheça a validade de uma exigência. Se a cobrança do tributo se dá em termos incompatíveis com a Constituição e as leis do país, discrepando do que prescrevem regras e princípios vigentes, sua invalidade deve ser reconhecida, sob pena de a Constituição, as leis, as regras e os princípios, não possuírem mais qualquer razão de ser.
O reconhecimento da invalidade de uma cobrança, e, se for o caso, da necessidade de restituição do que a esse título já houver sido pago, é uma decorrência da ideia de Estado de Direito, e da força cogente das normas que disciplinam como os tributos podem ser instituídos, majorados e cobrados. Se o tributo é cobrado em desrespeito à anterioridade, ou à legalidade, reconhecer a invalidade da cobrança, e a necessidade de devolução do que tiver sido pago, é consequência da necessidade de respeito à anterioridade, ou à legalidade. Enfim, as regras que determinam como os tributos devem ser exigidos não farão qualquer sentido caso, em sendo violadas, nada acontecer, sendo o tributo cobrado mesmo assim (e dá no mesmo quando não se devolve o que se cobrou em desrespeito a elas).
É a própria ideia de Estado de Direito, assim entendido aquele que se submete a regras pré-estabelecidas, portanto, que sucumbe, quando o argumento da “perda de arrecadação” entra em cena.
Do ponto de vista jurídico, há ainda outras falhas em seu emprego, principalmente quando utilizado para fundamentar pedido de modulação de efeitos de decisões que reconhecem invalidades, algo que se tem tornado incrivelmente frequente. Nesse particular, têm florescido violações ao devido processo legal, no que tange à análise de fatos pelas Cortes Superiores.
Como se sabe, um dos maiores obstáculos ao conhecimento de recursos, pelo Superior Tribunal de Justiça ou pelo Supremo Tribunal Federal, reside no entendimento firmado na Súmula 7/STJ, segundo a qual não se pode, em tais instâncias, rediscutir fatos e provas. A ideia é a de que “questões de fato” devem ser resolvidas, em definitivo, pelas instâncias ordinárias, reservando-se ao STF e ao STJ o deslinde de questões “de direito”, relativas à validade, ao sentido e ao alcance das normas aplicáveis aos fatos, tal como definidos pelas instâncias inferiores. Essa ideia, aliás, é aplicada, muitas vezes, de forma excessiva e equivocada, levando a que recursos nos quais não se discutem fatos ou provas, mas apenas o significado jurídico de fatos incontroversos, não sejam conhecidos por indevida aplicação da Súmula 7/STJ, dentro do que se conhece por “jurisprudência defensiva”.
Apesar disso, não é raro que, no meio do julgamento de um Recurso Extraordinário, o Ministro receba memoriais nos quais a Fazenda invoca fatosque sequer foram previamente debatidos no processo, sobre os quais a parte adversa sequer teve a oportunidade de se manifestar, e que não são amparados por qualquer meio de prova, dentro dos autos ou fora deles. Simplesmente atravessam-se alegações de fato — sobre a perda de bilhões de arrecadação, por exemplo — e estas terminam sendo decisivas para o posicionamento adotado pela Corte. É preciso, no mínimo, dedicar-se um pouco mais de atenção a esse procedimento, bastante contrário ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório. E, mesmo pondo de lado tais aspectos processuais, é o caso de lembrar: a perda de arrecadação é consequência lógica do reconhecimento da invalidade de qualquer exigência tributaria.
Chega-se, então, ao equívoco lógico do argumento calcado na perda de arrecadação. É que toda, toda exigência de tributo, sem exceção, se for considerada inválida, não poderá ser levada adiante. O tributo não poderá ser cobrado, ou, se o foi, há de ser restituído. Então se a perda na arrecadação for motivo para não se reconhecer a invalidade de uma cobrança, nenhum tributo poderá jamais ser considerado inválido, ilegal, ou inconstitucional. Do ponto de vista lógico, o equívoco do argumento salta aos olhos, pois é óbvio que todo tributo, se restituído, ou não cobrado, implicará uma diminuição na receita pública. Se o argumento puder ser usado em uma situação, poderá em todas, e será a própria ideia de Estado de Direito, novamente, que sucumbirá.
Lembre-se, a esse respeito, que os recursos não se perdem, quando o Estado não os arrecada. Fala-se na “perda de milhões”, como se o dinheiro fosse queimado com a decisão que declara inválido um tributo, mas não é isso o que acontece. Apenas se reconhece que não há autorização legal para forçar o cidadão a entregar o dinheiro ao Estado, mas os recursos continuarão com o cidadão, que os aplicará na economia, comprando, empregando, produzindo. O valor do ICMS que o Estado não cobra continua com o contribuinte, que pode usá-lo para comprar mais mercadorias, para pagar seu aluguel, seus empregados… É preciso abandonar a ideia de que apenas quando entra nos cofres públicos a riqueza produzida pela sociedade passa a existir ou ter utilidade. Às vezes é mesmo o contrário que acontece.
Poder-se-ia alegar que o argumento da “perda de arrecadação” só seria pertinente, na verdade, quando o montante da diminuição fosse muito muito expressivo, excepcional, abalando o equilíbrio das contas públicas e o desempenho de funções essenciais do Estado. Isso afastaria o equívoco lógico apontado, pois não seria sempre que ele teria pertinência, de modo que seria exagerado falar-se em “fim do Estado de Direito”. Diversas dificuldades subsistiriam, não afastadas, contudo.
A primeira delas seria a de que quanto mais grave a ilegalidade, e maior o número de pessoas atingidas por ela, menores as chances de ela ser corrigida de modo eficaz, o que por si só recomenda o abandono do argumento.
A segunda seria a de que o Fisco precisaria, ainda assim, provar, pelos meios processuais próprios — com respeito à Súmula 7/STJ! — esse fato, que seria invocado como razão de decidir pela validade de uma cobrança, ou pela limitação temporal dos efeitos da decisão que reconhecesse a invalidade. Não bastaria alegar! E provar não só a perda excepcional de arrecadação, mas principalmente a impossibilidade de prever essa perda, ou seja, a surpresa causada pela decisão que reconhece a invalidade. Esse aspecto é de suma importância, pois quando o Estado institui um tributo em respeito à jurisprudência e ao entendimento consolidado na doutrina, e o Judiciário o surpreende com uma decisão declarando a invalidade, tem-se a boa fé e a previsibilidade que devem ser respeitadas, mas isso não ocorre quando já se cria o tributo de forma incompatível com a jurisprudência dominante — o Estado cria SABENDO que é inconstitucional, mas confiando que poucos questionarão… — situação na qual não se pode razoavelmente cogitar em boa fé ou previsibilidade.
É exatamente o que ocorre com os casos citados no início deste texto. Quanto ao ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, o STF havia firmado maioria pela inconstitucionalidade há muito tempo, bem antes da decisão que limitou temporalmente os efeitos do julgado. ICMS “seletivo” sobre energia os Estados sabem inconstitucional há muito tempo também. E, quanto ao Difal, ultrapassaram-se todos os limites do razoável: o STF declarou inconstitucional a sua cobrança enquanto não editada lei complementar nacional, mas modulou os efeitos para aos Estados tempo suficiente para que obtivessem a edição da lei complementar. Os Estados sabiam que o Difal estava declarado inconstitucional, com a invalidação de toda a legislação autorizadora da cobrança, a partir de 31 de dezembro de 2021. A partir de então, a menos que se corrigisse a falta de lei complementar, não haveria mais amparo legislativo para exigi-lo, o que já foi uma enorme concessão temporal do Judiciário. Apesar de tudo isso, atraso na publicação da lei, havida apenas em 2022, está levando autoridades das fazendas estaduais (que correram tanto para conseguir a LC ainda em 2021 porque sabiam da necessidade de respeito à anterioridade) a forçar (mais) um desrespeito à Constituição, para não precisarem esperar até 2023 para cobrar o tributo. Tudo porque, de outro modo, “perderão arrecadação”.
Se o argumento colar, melhor deixar de lado o Direito, pois o importante será permitir ao Estado manter, apenas, a arrecadação.
Por Hugo de Brito Machado Segund
Hugo de Brito Machado Segundo é mestre e doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado), membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA), advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität de Viena (Áustria).
Revista Consultor Jurídico, 12 de janeiro de 2022.
https://www.conjur.com.br/2022-jan-12/consultor-tributario-perda-arrecadacao-nao-justifica-validade-exigencia-tributaria