Os bens e serviços mais essenciais deverão ter menor oneração tributária do que os bens e serviços menos essenciais.
Ao buscar inspiração para o tema do primeiro artigo deste ano de 2022, refleti sobre o que mais seria essencial ao conhecimento do leitor.
E a palavra essencialidade logo se conectou à temática tributária desta coluna, que já merecia, há tempos, uma justa reflexão à luz do direito tributário nacional.
O princípio da essencialidade está previsto na Constituição Federal como critério para a adoção seletiva de alíquotas do imposto sobre produtos industrializados (IPI) e operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS).
Diz a Constituição Federal que o IPI “será” seletivo em função da essencialidade do produto (art. 153, § 3º, I), ao passo que o ICMS “poderá ser” seletivo em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços (art. 155, § 2º, III).
Vale dizer, enquanto o IPI deverá obrigatoriamente ser seletivo em função da essencialidade dos produtos, o ICMS poderá ser seletivo e, se o for, deverá também respeitar a essencialidade dos produtos e serviços.
Os bens e serviços mais essenciais deverão ter menor oneração tributária do que os bens e serviços menos essenciais. Até aqui, parece inexistir grandes polêmicas.
Mas o que é essencial?
A adoção de critérios de seletividade em função do nível de essencialidade de bens e de serviços não é uma mera faculdade. A carga tributária orientada pela essencialidade não pode submeter-se à perspectiva injustificada do legislador ou de qualquer grupo específico.
A essencialidade não guarda relação com preferências individuais. Não carrega uma perspectiva meramente subjetiva. A restrição à subjetividade é meta ancorada e vinculada aos valores constitucionais prestigiados explícita ou implicitamente na norma.
Na economia, diz-se que os consumidores maximizam a utilidade ou a satisfação pessoal. As empresas maximizam os lucros. Os políticos maximizam votos. As burocracias maximizam as receitas. As organizações beneficentes maximizam o bem-estar social (Cooter e Ulen). Os vegetarianos desprestigiam a carne. Os nudistas desprestigiam as roupas. E assim por diante. Não é disto que trata a essencialidade tributária.
A essencialidade tributária conecta-se com determinado valor constitucional. A desoneração de livros materializa o desejo constitucional de democratizar e difundir o conhecimento e a informação. A cesta básica é essencial por prover a necessidade alimentar básica dos cidadãos. Os materiais de construção contribuem com o direito de todos a uma moradia. Os medicamentos são essenciais à manutenção da saúde e da vida das pessoas.
A própria percepção do que é essencial transforma-se com a sociedade, não podendo sucumbir às legislações estáticas, ao surgimento de novos bens e serviços ou novos valores sobre a essencialidade de outros.
Notem, por exemplo, que o relatório “Special Rapporteur” divulgado pela Organização das Nações Unidas em 16 de maio de 2011, definiu que o acesso à internet é um direito humano. Enquanto em 1988 a internet sequer existia, o seu acesso foi ganhando gradual importância na sociedade moderna, ao ponto de ser elevada à tal condição. Foi uma resposta da entidade a leis de alguns países que bloqueavam o acesso à internet aos que praticassem crimes contra direitos autorais.
E o faz ao mesmo tempo em que os entes tributantes no Brasil, ainda em 2021, tratam o provimento de acesso à internet como um serviço de comunicação tributado pelo ICMS, na maior parte dos Estados, à alíquota de 25%.
De outro lado, a fixação de alíquota zero de IPI para produtos como armas de fogo e a redução substancial deste mesmo imposto para jogos de videogame ou jet skis, não se poderia deixar de levar em consideração o critério da essencialidade constitucional.
Significa dizer que, quanto maior a vinculação instrumental do bem ou serviço à satisfação de direitos fundamentais (alimentação, moradia, tratamento médico, vestuário) das classes mais numerosas da população, menores devem ser as alíquotas que sobre eles deve incidir.
O que a legislação e os governos fazem, todavia, distancia-se da essencialidade tributária na acepção consagrada constitucionalmente. Por vezes, reputam essencial o que viabiliza uma maior arrecadação, o que atrai mais votos ou o que atende a grupos específicos de interesse.
É o engodo da essencialidade.
De forma pioneira, o STF interferiu nos critérios de essencialidade tributária por ocasião do julgamento do RE nº 714.139/SC, reduzindo alíquotas de ICMS sobre energia elétrica e telecomunicação, sinalizando que outros controles da mesma natureza poderão ocorrer.
É fundamental a vigilância, reafirmando que o essencial é o que atende a valores constitucionais bem identificados, sob pena de declaração de inconstitucionalidade da respectiva norma.
Valor Econômico – Por Eduardo Salusse, 07/01/2022.