O STF concluiu no dia 4 de dezembro o julgamento do Recurso Extraordinário 688.223, com Repercussão Geral, e confirmou a incidência do ISSQN sobre o licenciamento e cessão de programas de computador (softwares). A Corte afastou a possibilidade de incidência do ICMS, adotando a mesma ratio decidendi dos acórdãos recentemente proferidos nas ADIs 1.945 (MT), 5.576 (SP) e ADI 5.659 (MG).
Mas a grande novidade do julgado é que o Supremo julgou, pela primeira vez, a constitucionalidade do ISSQN sobre serviços provenientes ou iniciados no exterior, manifestando-se sobre as diversas questões levantadas pela recorrente (Tim Celular S.A.) contra a incidência do §1º, do artigo 1º, da Lei Complementar nº 116/03, cuja redação é a seguinte: “artigo 1º (…) §1º. O imposto [ISSQN] incide também sobre o serviço proveniente do exterior do País ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior do país”.
Debate acerca da incidência do ISSQN sobre serviços provenientes do exterior
O recurso extraordinário arguía a inconstitucionalidade da incidência do ISSQN sobre softwares contratados pela recorrente junto a empresas estrangeiras, e que eram destinados a auxiliar os serviços de roaming prestados por ela Brasil, podendo-se resumir assim os seus argumentos:
” — O Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza — ISSQN incide sobre o serviço em si, i.e., sobre a sua prestação. Não se trata, portanto, de imposto incidente sobre o consumo do serviço;
— Ao contrário do que ocorre com os outros tributos, não há em nossa Constituição Federal previsão expressa determinando a incidência do ISS na importação de serviços. Isto porque, à exceção do IPI, todos os demais tributos que recaem sobre as operações de importação, o fazem segundo previsão expressa da Constituição Federal: (artigo 153, I — Imposto de Importação; artigo 195, IV — PIS/Cofins importação; artigo 155, II e §2º IX “a”, ICMS sobre serviços e mercadorias provenientes do exterior);
— a materialidade do imposto municipal pode ser resumida, como simplesmente, prestar serviços, onde aparece o verbo prestar e o complemento serviços. (…) a Lei Complementar n° 116/03 não poderia definir como fato gerador do ISS a mera fruição do serviço advindo do exterior, à míngua de prestação do referido serviço no Brasil;
— impossibilidade de determinada municipalidade tributar outra prestação de serviço que não aquela realizada no seu próprio território;”
Por sua vez, o recorrido (Município de Curitiba) e a Abrasf — Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais (amicus curiae) alinharam argumentos e fundamentos antagônicos à tese recursal, defendendo a constitucionalidade do parágrafo 1º do artigo 1º da Lei Complementar nº 116/2003, nos termos abaixo resumidos:
— A matriz constitucional do imposto municipal é sobre serviços de qualquer natureza — e não sobre prestações — diante da textualidade do inciso III, do artigo 156 da Constituição. Portanto em nada difere dos demais impostos sobre o consumo (IPI e ICMS) que incidem sobre bens oriundos do exterior e internados no Brasil;
— O ISSQN não invade a competência tributária da União, pois não é um imposto sobre comércio exterior, mas sobre o consumo de serviços — havendo consumo no Brasil, ainda que os serviços sejam provenientes do exterior;
— A incidência do ISSQN segue a sistemática constitucional de desoneração das exportações e oneração das importações, a qual entroniza o “princípio do destino” no ordenamento tributário brasileiro e preconiza a vedação à “exportação de tributos”;
— A Lei Complementar nº 116/2003 consagrou essa lógica numa moeda de dupla face: serviços iniciados ou provenientes do exterior, em oposição a serviços destinados ao exterior, sob o critério do resultado (jurídico) do serviço, conforme se depreende da redação do mencionado §1º do artigo 1º e da sua contraparte: o artigo 2º do mesmo diploma nacional. Portanto, uma vez verificado o resultado, a utilidade jurídica do software no Brasil, seria devido o ISSQN no país;
— A matriz constitucional do ISSQN e o critério delineado pela norma geral tributária (LC 116/2003) espancam a tese de que o imposto municipal incide sobre prestação, no sentido de conduta, fazer humano ou prática de atos materiais. Sobretudo em tema de programas de computador, já na era da inteligência artificial, os próprios sistemas e softwares implantam atualizações, ajustes e customizações, sem qualquer intervenção humana imediata e contemporânea. Portanto, a incidência do ISSQN deve ser dar sobre serviços cujo resultado-utilidade jurídica se verifique no Brasil.
— O afastamento da incidência provocaria tratamento favorecido às empresas estrangeiras que vendem softwares para o Brasil, em detrimento das empresas nacionais, ofendendo o princípio da igualdade e isonomia tributárias.
Leading case e entendimento do STF: constitucionalidade do §1º do artigo 1º da LC 116/2003
O voto do ministro Dias Toffoli (Relator) rejeitou a tese da inconstitucionalidade da incidência do ISSQN sobre serviços provenientes do exterior, inclusive softwares, tendo sido acompanhado à unanimidade pelos outros sete julgadores participantes, especialmente pelo ministro Alexandre de Moraes. No conjunto, os votos acolheram expressamente três dos seis fundamentos defendidos pela Abrasf, acima mencionados, quais sejam:
— Deferência ao princípio do destino na tributação internacional, consagrado em relação ao ISSQN no artigo 1, §1º, da LC 116/03 para serviços provenientes ou iniciados no exterior e no artigo 2, I e §único, relativamente as exportações de serviços, sendo esta a primeira vez que o dispositivo é analisado e confirmado em sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal;
— Ofensa a isonomia de tratamento entre os prestadores estabelecidos no Brasil e aqueles localizados no exterior, e a consequente violação ao princípio da livre concorrência;
— Delegação constitucional para a lei complementar disciplinar a questão, com vistas à prevenção de conflitos de competência;
Para o relator, apesar da elaboração do programa de computador ter sido concluído no exterior, o serviço tributado é o licenciamento ou a cessão do direito de uso do software, tendo afirmado em seu voto que: “o uso decorrente do ato de licenciamento, que culmina o serviço, aconteceu no país”.
Com isso, acolheu também o critério do resultado (utilidade jurídica), igualmente sustentado nas razões da Abrasf e que há muito tenho defendido em artigos sobre o tema [1] .
O ministro Dias Toffoli acresceu, ainda, que:
“é plenamente válida a incidência do ISS sobre serviço proveniente do exterior do País ou sobre serviço cuja prestação se tenha iniciado no exterior do País, nos termos do artigo 1º, § 1º, da LC nº 116/03.
Esse dispositivo, em harmonia com o texto constitucional, prestigia o princípio da tributação no destino.
A propósito, note-se que, a teor do artigo 156, §3º, da Constituição Federal, cumpre a lei complementar excluir da incidência do imposto em questão exportações de serviços para o exterior, justamente em atenção ao referido princípio.
A ideia é que, a partir do mencionado preceito, a tributação dos bens ou serviços exportados ocorram no país em que são eles consumidos. Nessa toada, o país exportador deixa de os tributar e o país importador exerce, sobre os bens ou serviços importados, a competência tributária pertinente. É disso que se trata no referido dispositivo constitucional e na disciplina presente na LC nº 116/03.”
Por sua vez, o ministro Alexandre de Moraes também dedicou espaço em seu voto-vogal para tratar da questão dos serviços provenientes ou iniciados do exterior, agregando à ratio decidendi o fundamento de isonomia entre prestadores estabelecidos no Brasil e fora do país, diante do inegável favorecimento a empresas estrangeiras, em detrimento das empresas brasileiras, ofendendo, ainda, o princípio da livre concorrência, verbis:
“Ora, vedar a incidência do ISS sobre importação de serviços viola o princípio da isonomia, haja vista que apenas os serviços prestados por empresas situadas no território nacional seriam tributados. Observa-se, ainda, que favorecer a prestação de serviços estrangeiros, desonerando-os do ISS, viola também o princípio da livre concorrência, basilar da atividade econômica (artigo 170, IV, da CF/1988).”
Com este julgamento, o STF põe fim a uma das mais desencontradas teses manejadas contra a Lei Complementar 116/2003, garantindo a higidez do ISSQN no plano da tributação internacional, impondo às empresas estrangeiras exportadoras de serviços para o Brasil, idêntico tratamento dispensado às empresas nacionais — num cenário em que as prestações remotas são crescentes e a desoneração das “importações” de modo privilegiado ou mais favorecido em relação às atividades das empresas estabelecidas, provoca a “exportação de empregos” e o fechamento de empresas nacionais.
Outras questões compreendidas na ratio decidendi
Para além da definição da constitucionalidade da incidência sobre serviços provenientes do exterior, o entendimento adotado pelo Acórdão em exame consolida a compreensão de que o núcleo do fato gerador do ISSQN não se cinge a “uma conduta ou fazer humano”.
Isto fica nítido quando os votos dos ministros consideram desimportante, para a verificação da ocorrência do fato gerador, a ausência de estabelecimento prestador ou de intermediário no Brasil, ou mesmo a prática de atos materiais no território nacional.
E este entendimento se aplica ao ISSQN como um todo, na medida em que a definição normativa do fato gerador densificada a partir da norma constitucional, não se prevê uma hipótese destinada exclusivamente aos serviços “provenientes do exterior”. Com efeito, não existe um “ISSQN-importação”, como uma espécie impositiva distinta de um “ISSQN-consumo”. O ISSQN é um único imposto, derivado da matriz de incidência insculpida no inciso III do artigo 156 da Constituição.
Portanto, o julgado concorda com a afirmação de que a prestação se verifica com a realização eficiente do serviço, como resultado e utilidade jurídica [2] .
Conclusão
Portanto, pode-se dizer que, além de afirmar a constitucionalidade da incidência sobre os serviços provenientes do exterior, a ratio decidendi adotada pelo Acórdão do Recurso Extraordinário 688.223 contribui para espancar a tese que resume ou atrela o núcleo material do fato gerador do ISSQN a um “fazer humano”, consolidando a compreensão de que o núlcelo do fato gerador do ISSQN é o resultado do serviço, o seu préstimo, compreendido como a utilidade jurídica pela qual se obrigou o prestador perante o tomador do serviço.
Notas:
[1] “Núcleo do Fato Gerador e Base de Cálculo do ISSQN”. In: Revista da Fundação Escola de Direito Tributário — FESDT, nº 7, jan/jul 2011, p. 149-168.
[2] Cf. Ricardo Almeida Ribeiro da Silva. “Fato Gerador e Base de Cálculo do ISSQN”. In: Revista Dialética de Direito Tributário, n. 110, Porto Alegre: Editora Dialética, 2004, p. 80-94.
Por Ricardo Almeida Ribeiro da Silva
Ricardo Almeida Ribeiro da Silva é advogado, procurador do Município do Rio de Janeiro, assessor jurídico da Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais (Abrasf) e professor da pós-graduação em Direito Tributário da Uerj e do PJ/ABDF.
Revista Consultor Jurídico, 26 de dezembro de 2021.
https://www.conjur.com.br/2021-dez-26/opiniao-stf-issqn-incide-servicos-provenientes-exterior