Mostra-se necessário que o Fisco, ao analisar uma determinada consulta, não desvirtue de maneira sensível normas jurídicas historicamente pacíficas em nosso ordenamento.
No ano de 2018, foi publicada pelo Estado de São Paulo a Lei Complementar Estadual nº 1.320, que instituiu o Programa de Estímulo à Conformidade Tributária, apelidado de “Nos Conformes”, e tem como objetivo definir princípios para a melhora do relacionamento entre os contribuintes e o Fisco paulista. Nos termos do artigo 1º do referido diploma legal, seu objetivo é construir uma contínua e crescente relação de confiança recíproca entre os contribuintes e a administração tributária, mediante a implementação de medidas concretas inspiradas em princípios como o da simplificação do sistema tributário estadual, da boa-fé e previsibilidade das condutas, da segurança jurídica e coerência na aplicação da legislação tributária etc. Diante desse cenário, é possível notar que o intuito da legislação é melhorar a tão conturbada relação entre Fisco e contribuintes, tentado criar um ambiente de confiança recíproca entre eles.
Mostra-se necessário que o Fisco não desvirtue normas jurídicas historicamente pacíficas. Como é de conhecimento notório, o sistema tributário nacional é extremamente complexo, de maneira que a existência de dúvidas acerca das suas regras se mostra como uma situação até certo ponto corriqueira. Não é por acaso que o custo dos contribuintes brasileiros para conseguir entender quais são suas obrigações peranteo Fisco é alto.
Nesse contexto, um instrumento que se mostra muito importante para a evolução dessa desejada atmosfera de cooperação é a consulta fiscal, por meio da qual o contribuinte pode questionar diretamente o Fisco acerca da sua interpretação sobre a aplicação da legislação tributária em uma determinada situação. Dessa forma, é possível evitar futuros conflitos entre os dois polos da relação tributária, criando um ambiente mais propício à implementação dos princípios destacados na Lei Complementar Estadual nº 1.320.
Por isso, mostra-se importante que o contribuinte deixe de ver a consulta fiscal como um instituto que pretende apenas confirmar uma linha interpretativa que possui como objetivo o aumento da arrecadação, ao invés de buscar o verdadeiro sentido da regra tributária.
Entretanto, para isso, mostra-se necessário que o Fisco, ao analisar uma determinada consulta, não desvirtue de maneira sensível normas jurídicas historicamente pacíficas em nosso ordenamento, indo de encontro ao princípio da segurança jurídica. A título de ilustrativo, uma situação que fortalece ainda mais esse cenário de desconfiança acontece nos casos em que não se segue uma linha interpretativa que já está pacificada na jurisprudência dos tribunais superiores.
Nesse caso, um instrumento que deveria servir para aproximar o contribuinte e a administração tributária, reforçando o laço de confiança entre os dois sujeitos frente à complexidade de nossa legislação fiscal, acaba por enfraquecer ainda mais essa relação.
Um exemplo muito claro desse tipo de situação pode ser verificado na discussão acerca da equiparação das saídas destinadas à Zona Franca de Manaus (ZFM) à exportação. Isso porque a Fazenda paulista, contrariando os tribunais superiores, manifestou-se na linha de que aquelas operações não podem ser equiparadas às saídas para o exterior (Resposta à Consulta Tributária nº 20.223M1/2020).
O tratamento fiscal das operações que envolvem a ZFM já foi objeto de inúmeros julgamentos pelo STF (Recurso Extraordinário nº 592.891; Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 310), que reconheceram que, nos termos do artigo 40 do Ato das Disposições Constitucionais Tributárias, combinado com o artigo 4º do 29/11/2021 Decreto-Lei nº 288/67, as saídas de mercadorias à ZFM devem ser consideradas como “exportação”, sujeitas à imunidade tributária.
Acontece que, apesar desse cenário pacífico em nossa jurisprudência, o Fisco paulista, quando instado a se manifestar por meio de consulta fiscal de contribuinte, possui interpretação diversa, apresentando argumento baseado na premissa de que a Constituição Federal, por meio do seu artigo 151, III, vedou a isenção heterônoma, ou seja, não poderia a União, por meio do Decreto-Lei nº 288/67, conferir isenção de ICMS, pois se trata de um tributo estadual. Em resumo, não poderia uma lei federal conceder isenção de um imposto que é de competência estadual. Para a Fazenda paulista, as operações com mercadorias destinadas à ZFM só podem, em tese, usufruir de benefícios relativos ao ICMS se existir previsão expressa na legislação própria do imposto estadual.
Entretanto, entendemos que essa interpretação está equivocada, uma vez que, como já destacado, a imunidade das saídas para a ZFM, em decorrência da sua equiparação a uma exportação, não se trata de uma isenção heterônoma, mas sim de um comando constitucional de eficácia plena e alcance nacional. Dessa forma, deve ser aplicada por todos os entes da Federação, ou seja, não apenas pela União, mas também pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios.
Por isso, o argumento da isenção heterônoma não pode servir como justificativa para afastar o tratamento equivalente à exportação nas saídas destinadas à ZFM, como fez a Fazenda paulista, afinal de contas, a jurisprudência já está pacificada no sentido de que essa interpretação do Fisco está equivocada.
Como se pode perceber, estamos diante de uma situação que apenas aumenta a desconfiança do contribuinte em relação a um instituto tão importante quanto o da consulta fiscal, em nada contribuindo para promover a segurança jurídica tão desejada em nosso sistema jurídico e proclamada como princípio de orientação obrigatória pela Lei Complementar Estadual n° 1.320.
Sergio Villanova Vasconcelos é advogado tributarista do escritório Buttini Moraes Advogados
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Valor Econômico – Por Sergio Villanova Vasconcelos, 29/11/2021.