Após derrota no STF, Barueri passou a exigir o que deixou de ser recolhido no passado.
Barueri, cidade da região metropolitana de São Paulo conhecida por atrair empresas com a alíquota reduzida de ISS – cobra 2%, enquanto na capital, por exemplo, o percentual chega a 5% -, trava agora um embate com os contribuintes. O município ampliou a base de cálculo do imposto, elevando os valores a serem recolhidos, e passou a cobrar o passado.
Uma única empresa, por exemplo, foi notificada a recolher cerca de R$ 20 milhões. O montante corresponde a valores que não haviam sido cobrados e, obviamente, não foram pagos nos anos de 2016 e 2017.
Dez empresas, pelo menos, recorreram à Justiça e obtiveram decisões, em caráter liminar, para suspender essas cobranças. Atuam nos setores de tecnologia, construção e saúde. Outras, do setor financeiro, dizem advogados, também devem buscar o Judiciário.
A previsão é de que esse número possa chegar a milhares. Isso porque, segundo os advogados, o movimento de Barueri é coordenado, ou seja, atinge empresas de todos os setores que têm sede no município e são contribuintes do ISS.
Essas cobranças têm como pano de fundo uma decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em agosto do ano passado. Os ministros analisaram o Código Tributário do Município (CTM), com redação dada pela Lei Complementar nº 185, de 2007, e vetaram a aplicação do artigo 41, que tratava sobre o cálculo do ISS.
O dispositivo permitia retirar da base de incidência do imposto municipal os tributos federais – Imposto de Renda (IRPJ), CSLL, PIS e Cofins. O município cobrava ISS, portanto, somente sobre o preço do serviço efetivamente prestado pelo contribuinte.
Os ministros declararam o artigo 41 inconstitucional com o argumento de que o artigo 88 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) estabelece, para o ISS, a alíquota mínima de 2%. Afirmaram que o município, pela sua base de cálculo diferenciada, estaria reduzindo esse percentual de forma indireta.
Os contribuintes acreditavam que essa decisão, no entanto, não teria efeito prático. Isso porque em 2017 houve uma nova alteração no CTM, pela Lei Complementar nº 419. Essa norma retirou a previsão que excluía os tributos federais do cálculo. Entrou em vigor no dia 1º de janeiro de 2018. Desde lá, portanto, paga-se o imposto de acordo com o que ficou definido no STF.
O município, porém, entende ter o direito de cobrar os valores de forma retroativa – dos cinco anos anteriores. E é o que vem fazendo: exige das empresas o pagamento da diferença correspondente aos anos de 2016 e 2017 – os últimos em que o cálculo anterior esteve vigente.
As notificações de que tais débitos existem e serão inscritos em dívida ativa começaram a chegar para os contribuintes, em maior número, no mês passado. O advogado Luca Salvoni, do escritório Cascione, tem um cliente nessa situação. “Não teve sequer instauração de procedimento administrativo. O contribuinte não pode se defender”, diz.
Para o advogado, a cobrança, além de ilegal, “é uma afronta absoluta à segurança jurídica”. “Os contribuintes precisam ter o mínimo de garantia. Não podem ser penalizados por cumprir o que estava na lei”, afirma. O cliente para quem ele atua conseguiu suspender a cobrança na Justiça
Os dez processos aos quais o Valor teve acesso foram julgados pela juíza Graciella Lorenzo Salzman, da Vara de Fazenda Pública de Barueri. Segundo a magistrada, a conduta do município viola o artigo 146 do Código Tributário Nacional (CTN). Consta nesse dispositivo que a modificação nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa só podem ser efetivados para fatos geradores ocorridos posteriormente.
“A decisão que alterou o critério jurídico a ser adotado para a base de cálculo foi a decisão do STF, publicada em sessão de julgamento na data de 28 de agosto de 2020. Portanto, somente fatos geradores ocorridos após esta data poderiam utilizar os critérios por ela fixados”, afirma ela em praticamente todos os casos julgados (processos nº 1012018-94.2021.8.26.0068, nº 1010962-26. 2021.8.26.0068 e nº 1011206-52. 2021.8.26.0068, entre outros).
O advogado Luís Alexandre Barbosa, sócio do escritório LBMF, diz que três de seus clientes receberam notificação e estão se preparando para entrar com ação contra as cobranças. Ele destaca que o processo no STF, que vem sendo usado por Barueri como base para as autuações fiscais, sequer está encerrado.
“Há recurso ainda pendente de julgamento. Foi apresentado pelo próprio município de Barueri e existe pedido de modulação”, afirma Barbosa. Trata-se de uma medida que pode ser usada pelos ministros do STF para limitar, no tempo, os efeitos das próprias decisões – geralmente contrária à aplicação retroativa.
O advogado aponta ainda que a mudança nas regras de Barueri foi motivada pela edição de uma Lei Complementar Federal, a nº 157, de 2016. Essa norma incluiu o artigo 8-A na Lei Complementar nº 116, de 2003, que impede os municípios de fazerem qualquer tipo de redução na base de cálculo do imposto.
A mesma lei, no artigo 6º, diz o advogado, concedeu prazo de um ano, contado da data da publicação da legislação, para que os municípios fizessem adequações às normas, revogando dispositivos contrários.
“Significa dizer, portanto, que somente após 30 de dezembro de 2017 estaria impedida qualquer alíquota de ISS abaixo de 2%. Foi exatamente o que o município de Barueri fez ao editar a Lei Complementar nº 419. Cobrar os valores de forma retroativa viola a legalidade, a irretroatividade, a não surpresa e a confiança legítima do contribuinte”, afirma Barbosa.
O município de Barueri foi procurado pelo Valor, mas não deu retorno até o fechamento da edição
Valor Econômico – Por Joice Bacelo, 23/08/2021.