O recente e vertiginoso crescimento do número de aberturas de capital de companhias brasileiras e, especialmente, do número de pessoas físicas que passaram a investir em ações listadas sugere que, a partir de agora, serão cada vez mais comuns casos de doações ou heranças tendo por objeto esses ativos.
À primeira vista, a tributação da herança ou doação de ações de companhias abertas não se diferencia daquela aplicável a bens móveis em geral e das participações societárias em particular, exceto pelo fato de terem valor de mercado passível de aferição e demonstração pública.
O imposto estadual de heranças e doações (Imposto de transmissão causa mortis e doação ou ITCMD) incide sobre referidas transferências gratuitas de bens e direito a alíquotas que atualmente podem chegar a até 8%, a depender da legislação local. Quis nosso constituinte adotar como critério de competência, no caso de bens móveis, incluindo ações, que o imposto seja devido ao estado onde se processar o inventário ou arrolamento ou tiver domicílio o doador.
Apesar de o contribuinte do imposto ser o herdeiro ou donatário, é comum as leis estaduais atribuírem responsabilidade solidária pelo recolhimento do imposto devido ao inventariante, doador, assim como à instituição financeira a quem couber a responsabilidade do registro ou prática de ato que implique na transmissão do bem e respectivo direito ou ação. Como a base de cálculo do bem herdado ou doado é seu valor venal, assim considerado o valor corrente de mercado, no caso de ações de companhia listada, objeto de negociação pública, a definição desse valor deveria ser fácil e segura. Utilizamos o verbo no condicional porque, como se poderá verificar com base em exemplos, nem sempre isso ocorre.
De fato, o elevado grau de exigências regulatórias e características específicas desses bens podem dar causa a peculiaridades e ineficiências na tributação das transferências por herança e doação, que nem sempre são antecipadas pelo investidor. Neste artigo examinamos quatro situações especiais, entre outros exemplos possíveis. A primeira delas, positiva para os contribuintes, não se limita a casos de ações listadas. Já as demais, potencialmente negativas para os contribuintes, se singularizam justamente por envolverem ações de companhia aberta negociadas em bolsa.
1) Doações e heranças internacionais
Em março de 2021, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) pôs fim a uma discussão de décadas ao decidir, por maioria de votos, como tema de repercussão geral, que os Estados e o Distrito Federal não possuem competência legislativa para cobrar ITCMD sobre doações e heranças instituídas no exterior [1].
Com vistas a evitar situações de dupla ou múltipla tributação, a Constituição Federal sempre previu que o ITCMD “terá competência para sua instituição regulada por lei complementar” a) “se o doador tiver domicílio ou residência no exterior”; e b) “se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior” (artigo 155, §1º, “c”). Ocorre que referida lei complementar jamais foi editada pelo Congresso Nacional, embora já tramitem projetos para sua criação. Como consequência, os Estados nunca dispuseram de competência para instituir o ITCMD sobre referidos casos internacionais.
Sem prejuízo do silêncio do legislador nacional, a maioria dos Estados brasileiros simplesmente ignorava a mencionada exigência constitucional e previam em suas leis a incidência do ITCMD sobre doações internacionais. Essa prática deu causa a imenso contencioso judicial que foi finalmente resolvido pelo STF, com o precedente acima mencionado.
Ainda assim, a maioria dos ministros aderiu a proposta de modulação dos efeitos para que a decisão só produza efeitos a contar da publicação do acórdão (20/04/2021). Foram ressalvados os casos de ações judiciais pendentes de conclusão até aquele momento, em redação um tanto confusa, que ainda pode ser objeto de esclarecimento em sede de embargos de declaração opostos por ambas as partes, aguardando julgamento.
Em resumo, o STF concluiu que, até a edição de lei complementar que regulamente a competência dos Estado, são intributáveis pelo ITCMD a) as heranças internacionais, quando a pessoa falecida possuía bens, era residente ou teve seu inventário processado no exterior, que naturalmente são imprevisíveis por natureza, e b) as doações internacionais, quando o doador é residente no exterior, ainda que os bens doados se localizem no Brasil. Apesar de heranças serem fato imprevisível por natureza, o precedente do STF abriu oportunidade para reorganizações patrimoniais e sucessórias com eficiência tributária, caso envolvam residentes no exterior e beneficiários residentes no Brasil, incluindo ações de companhia aberta e ativos financeiros localizados no exterior ou mesmo no Brasil.
2) Divergências sobre critérios para determinação da base de cálculo do ITCMD
Uma pessoa física, ao doar ações de companhia que, naquela data, tinha capital fechado, considerou como base de cálculo o valor patrimonial das participações, tal como determinava literalmente a lei estadual em vigor. No mês seguinte à doação, a companhia em questão obteve registro de capital aberto junto à Comissão de Valores Mobiliários e suas ações passaram a ser negociadas em bolsa de valores. O preço de negociação, na abertura do pregão, excedeu substancialmente (mais de 20 vezes) o valor patrimonial que havia sido considerado como base de cálculo para incidência de imposto na doação.
As autoridades fazendárias estaduais lavraram autos de infração para cobrança do ITCMD, sob a alegação de que sua base de cálculo não corresponderia ao valor patrimonial da ação, também devendo considerar outros fatores de avaliação que incluíam a perspectiva de rentabilidade futura da companhia. Após longas discussões administrativas, o caso foi judicializado e atualmente aguarda julgamento de recursos especial e extraordinário.
Independentemente de seus detalhes e especificidades, esse caso sinaliza preocupações importantes sobre como apurar a base de cálculo na doação ou herança de participações societárias, quando passe a ocorrer sua negociação pública ou mudanças relevantes no preço de sua negociação. Guardadas as devidas proporções, discussões semelhantes também se verificam no caso de companhias fechadas brasileiras ou estrangeiras, quando há diferença substancial no valor de seu patrimônio líquido entre o encerramento do exercício anterior (último balanço patrimonial) e a data do fato gerador (doação ou herança). Essas diferenças positivas ou negativas podem ser atribuíveis aos fatores mais diversos, como resultados não operacionais, ganhos ou perdas de variação cambial.
3) Riscos relativos ao momento da incidência do ITCMD
O tempo também pode ser decisivo na apuração da base de cálculo do ITCMD de outras formas, com especial relevância para ativos com valor de mercado conhecido, de que são exemplo as ações de companhias abertas. Segundo diversas leis estaduais, na transmissão de bens e direitos a herdeiros, o imposto incide no momento da abertura do inventário, com fundamento no artigo 1.784 do Código Civil.
Porém, como se sabe, não é nada difícil ou incomum um inventário se alongar por muito tempo, especialmente quando há desavenças entre herdeiros. Nesses casos, a volatilidade do preço de ativos pode ser especialmente perigosa, caso se considere que o valor de mercado aplicável seria aquele da data da abertura do inventário e não da efetiva transferência das participações ao final do rito sucessório, quando o imposto se tornará devido.
Embora ainda não haja jurisprudência pacificada sobre o assunto, há discussões judiciais em curso questionando o lançamento de ITCMD sobre ações recebidas em herança quando, durante o inventário, houve desvalorização substancial daqueles ativos. Em casos extremos, o valor presente das mesmas ações não seria sequer suficiente para pagamento do imposto supostamente devido, se considerado como base de cálculo o valor de mercado daquelas participações na abertura do inventário.
4) Ações localizadas no Brasil recebidas por herdeiros ou donatários residentes no exterior
As aplicações por investidor não residente no Brasil nos mercados financeiro e de capitais brasileiro e as respectivas transferências financeiras do e para o exterior estão sujeitas a registro no Banco Central do Brasil (BCB), na forma da Resolução nº 4.373, de 2014, do Conselho Monetário Nacional (Registro 4373). Isso inclui ações de companhia aberta disponíveis para negociação em bolsa.
Assim, caso uma pessoa física residente no exterior (ou seja, um “investidor não residente”) adquira ações de uma companhia brasileira junto a cedente residente no Brasil, inclusive por herança ou doação, essas participações deverão ser registradas no BCB. Além de obrigação legal e regulamentar, esse registro constitui requisito indispensável para realização de quaisquer movimentações financeiras relativas àquela participação, como por exemplo remessas pela companhia ao acionista de dividendos e juros sobre capital próprio, bem como para remessa do preço em uma venda dessas ações.
No caso de companhias de capital fechado ou de companhias de capital aberto cujas ações não sejam passíveis de negociação em bolsa, esse registro no BCB pode ser feito de forma mais simples e menos onerosa (módulo investimento externo direto, Registro Declaratório Eletrônico de Investimento Externo Direto ou RDE/IED). Permite-se até mesmo que o registro seja feito em moeda nacional, sem a necessidade de operações simultâneas de câmbio (“câmbio simbólico”).
Por sua vez, caso haja interesse na negociação pública dessas ações em bolsa, o investidor não residente (nos casos aqui examinados, herdeiro ou donatário) deve obter e manter o mencionado Registro 4373, que é bastante mais burocrático e oneroso.
Mais especificamente, as obrigações relacionadas à obtenção desse registro incluem a) constituição de representantes no Brasil, que deve ser instituição financeira e não se confunde, necessariamente, com aquele exigido pela legislação tributária; b) obtenção de registro na Comissão de Valores Mobiliários (CVM); c) constituição de custodiantes para seus ativos, autorizado pela CVM. Todas elas estão sujeitas a custos administrativos relevantes. Além disso, o acionista não residente deve contratar operações simultâneas de câmbio (“câmbio simbólico”) relativas ao investimento registrado. Essas operações estão sujeitas ao Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) à alíquota de 0,38% sobre o valor do investimento e são equiparadas pelo fisco federal — diga-se, de forma bastante questionável — a uma alienação do investimento, portanto, sujeita a apuração de eventual ganho de capital. Assim, caso o custo histórico das ações registradas seja inferior ao valor de mercado das mesmas na data da contratação do câmbio simbólico, será apurado ganho de capital tributável pelo imposto de renda na fonte (IRRF) a alíquotas que variam de 15% (parcela do ganho até R$ 5 milhões) a 22,5% (parcela do ganho superior a R$ 30 milhões) [2]. Por outro lado, após a obtenção desse registro, novos ganhos que venham a ser obtidos por aquele investidor não residente na negociação de suas ações em bolsa de valores brasileira, que já terão sido objeto do Registro 4.373, passam a estar isentos de tributação pelo imposto de renda [3].
Não é raro verificar situações em que o herdeiro não residente, ao receber ações listadas no Brasil, precisa vender parte dessas ações para pagar o ITCMD. Nesses casos, além do próprio imposto de herança, também deverá recolher o IRRF sobre eventual ganho obtido e o IOF, além de arcar com os custos relacionados à obtenção e manutenção do Registro 4.373.
Herdeiros ou donatários residentes no exterior que recebam ações de companhias abertas brasileiras, ou ativos financeiros no Brasil, devem estar atentos ainda a interpretações que vêm sido atribuídas à Solução de Consulta Cosit nº 309, de 2018, com pretensão de sujeitar a incidência do IRRF à alíquota de 15% valores remetidos a título gratuito a residentes no exterior. Tal solução de consulta e, em especial, interpretações extensivas que por vezes vêm sendo atribuídas a seu conteúdo nos parecem equivocadas, além de ser questionável com base em argumentos muito sólidos. Ainda assim, o simples risco de adoção dessa interpretação pelas instituições financeiras envolvidas, aliado aos custos que possam ser necessários para afastá-la já reforçam a importância de se ter atenção redobrada aos casos de doação ou heranças que possam ser atribuíveis a residentes no exterior.
Os casos descritos nos itens acima são apenas alguns exemplos de como características objetivas do patrimônio a ser doado ou herdado podem afetar de forma significativa a tributação aplicável ao beneficiário. A existência ações de companha aberta, com valor de mercado conhecido, sobretudo se aliada à existência de elementos internacionais pode trazer complexidades que recomendam cuidado atento e, eventualmente, preparações prévias no planejamento patrimonial e sucessório, a fim de evitar consequências tributárias indesejadas.
[1] Recurso Extraordinário (RE) 851.108-SP, com repercussão geral reconhecida (Tema 825), rel. Dias Toffoli, DJe 20/04/2021.
[2] Ver Ato Declaratório Interpretativo RFB nº 1, de 18/01/ 2016.
[3] Sobre a tributação do investidor não residente nas operações em bolsa, ver artigo desta mesma série o Conjur, de autoria de nossos sócios Luis Henrique da Conceição Costa e Felipe de Albuquerque Destri, intitulado “Aspectos tributários das ofertas públicas iniciais de ações (IPO)”: https://www.conjur.com.br/2021-mar-17/opiniao-ofertas-publicas-iniciais-acoes-ipo (acesso em 16/06/2021).
Por Hermano Notaroberto Barbosa e Debora Bacellar de Almeida
Hermano Notaroberto Barbosa é doutor em Direito pela Universidade de Paris (Panthéon-Assas), diretor da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), professor convidado de Uerj, FGV e PUC-Rio e sócio do escritório BMA Advogados.
Debora Bacellar de Almeida é sócia em Direito Tributário do escritório BMA Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 20 de junho de 2021.
https://www.conjur.com.br/2021-jun-20/opiniao-tributacao-doacao-heranca-acoes-bolsa