Parece incabível um mesmo software sofrer incidências tributárias tão díspares apenas pela distinção do modo de acesso
Na atual sociedade em que vivemos, a “transformação digital” é sem dúvida um dos fenômenos mais presentes, já que temos cada vez mais incorporado a tecnologia digital em nosso dia a dia. É nítido que esse processo tem sido acelerado exponencialmente pela pandemia da covid-19, na medida em que, em vista do distanciamento social, temos nos servido da tecnologia mais do que nunca, seja para fins profissionais (home office), para fins de socialização (mídias sociais), para fins médicos (telemedicina), para fins de consumo (comércio eletrônico), entre tantas outras áreas da vida moderna.
As ferramentas tecnológicas que possibilitam toda essa interação digital são, no mais das vezes, os já conhecidos “softwares”, ou programas de computador, sofisticados, é claro, pelo avanço da tecnologia e pelas demandas geradas pela crescente complexidade das relações sociais.
Parece incabível um mesmo software sofrer incidências tributárias tão díspares apenas pela distinção do modo de acesso
São exatamente esses softwares, que tanto avanço e comodidade trazem para a sociedade contemporânea, que têm estado novamente na mídia, mas não por alguma programação inovadora ou por uma recém-descoberta tecnologia de ponta, e sim por uma antiga discussão judicial encampada pelo setor, já que o Supremo Tribunal Federal (STF) recentemente decidiu, por maioria, pela incidência do ISS municipal, em detrimento do ICMS estadual.
Nessa decisão de mérito, proferida pelo STF em 18 de fevereiro de 2021, o tribunal alterou sua jurisprudência formada há décadas e, ao definir a incidência do ISS sobre o licenciamento ou cessão de direito de uso de software, vai ao encontro dos anseios dos players do setor, já que a alíquota do ISS é sensivelmente menor que a do ICMS, finalmente trazendo segurança jurídica para esse mercado.
A decisão faz bastante sentido do ponto de vista jurídico, pois o licenciamento de software não implica transferência de propriedade, que é indispensável para a incidência do ICMS, já que esse tributo incide sobre a circulação de mercadorias. Além disso, já existe, há tempos, uma lei complementar, a nº 116 de 2003, que regula matéria, tendo optado pela incidência do ISS, no item 1.05 da lista de serviços anexa à lei.
Não bastasse, foi acatada a proposta de modulação dos efeitos da decisão feita pelo ministro Dias Toffoli, tendo sido, numa decisão inédita, definidas oito hipóteses de modulação, primando-se, sempre que possível, pela produção de efeitos a partir da data de publicação da decisão.
É claro que essa disputa tributária fragilizou o setor e trouxe, por décadas, uma imensa insegurança jurídica para os seus players, que foram muitas vezes cobrados por ambos os tributos, num flagrante e inconstitucional caso de bitributação.
No entanto, esse imbróglio jurídico-tributário está, infelizmente, longe de ser o único envolvendo as operações com softwares no Brasil – um exemplo disso é o caso das remessas ao exterior a título de remuneração por softwares importados.
Quando uma empresa brasileira importa um programa de uma software house no exterior pelo método tradicional (e já ultrapassado) do “download”, ou seja, baixando e rodando o software desde o seu servidor local, será devido, basicamente, o pagamento do ISS (2,9% no município de São Paulo) e do IOF-Câmbio (0,38%). Isso porque a própria Receita Federal já disse que não incide Imposto de Renda na fonte por se tratar de um software de larga escala e que não incidem PIS e Cofins por não se tratar de serviço prestado. Além disso, não é devida a Cide, já que não há, em geral, abertura do código-fonte do programa ao usuário.
Por outro lado, se a mesma empresa importa o mesmo e idêntico software pelo método mais moderno e atual que é via “nuvem” (cloud computing), ou seja, acessando o software à distância sem transferência do programa para o disco local (no chamado SaaS – Software as a Service), haverá incidência, segundo as autoridades fiscais, do Imposto de Renda (15%), da Cide (10%), do PIS (1,65%), da Cofins (7,6%), do ISS (2,9%) e do IOF-Câmbio (0,38%), totalizando a inacreditável alíquota efetiva de quase 40%, o que, em muitos casos, inviabiliza a operação.
Isso ocorre porque a Receita Federal, em 2017, entendeu, por meio da Solução de Consulta Cosit nº 191, que os softwares adquiridos e acessados por meio da nuvem são considerados serviços técnicos e, como tal, estariam sujeitos a uma carga fiscal muito mais elevada.
Se, de um lado, parece incabível um mesmo software sofrer incidências tributárias tão díspares apenas pela distinção do modo de acesso (download ou SaaS, mesmo que, neste último caso, alguns serviços conexos sejam prestados, tais como armazenamento, suporte, atualização etc), por outro lado, claramente quem perde é o Brasil, que deixa de assimilar as inovações produzidas nos grandes centros tecnológicos estrangeiros. Vale dizer que o acesso dos programas via nuvem, por ser mais moderno e elástico, é o que tem ganhado, de longe, mais espaço no Brasil e no mundo.
Não há dúvidas de que alguma política de reserva de mercado pode e deve ser implementada, a fim de fomentar a produção tecnológica local. Contudo, a incidência de uma carga fiscal tão pesada sobre as importações de software, como essa que pretende o Fisco nos acessos via nuvem, deverá ter um efeito reverso, pois a matéria-prima da tecnologia é a própria tecnologia, e a redução no seu fluxo para dentro do país, causada por uma tributação impraticável, só pode deixar o Brasil digitalmente isolado e pouco competitivo.
Valor Econômico – Por Georgios Theodoros Anastassiadis, 12/05/2021.
Georgios Theodoros Anastassiadis é sócio do escritório Gaia Silva Gaede Advogados