Inúmeras ações judiciais discutem a tributação da taxa Selic aplicada ao indébito tributário reconhecido por sentença judicial. Há, inclusive, uma repercussão geral aguardando julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) – Tema 962. Em boa parte delas, o Poder Judiciário vem declarando a legalidade da tributação sob os argumentos de que o acréscimo da taxa Selic tem a natureza de juros moratórios para compensar lucros cessantes e de que esses juros ingressam no patrimônio do contribuinte como elemento novo e positivo, sem reservas ou condições. Justificam, assim, a incidência do IRPJ, da CSLL, do PIS e da Cofins.
No entanto, esses argumentos são inconsistentes. Tomemos o primeiro deles, segundo o qual o acréscimo Selic corresponde a juros de mora que indenizam lucros cessantes. O argumento carece de suporte fático. Os juros incidem em razão da mora, sem mora não há juros. A mora do devedor consiste no retardo do pagamento por razões a ele imputáveis. Dois elementos compõe o seu suporte fático: a certeza da dívida e a violação do dever de conduta. Quando um contribuinte não recolhe o tributo na data aprazada configura-se a mora – a dívida é certa e o dever de conduta é violado – incidindo os juros de mora, conforme preconiza o artigo 161, do Código Tributário Nacional (CTN).
“A Selic tem o objetivo de restabelecer o equilíbrio de patrimônios frente ao enriquecimento sem causa da Fazenda”
Mas esses elementos não são encontrados na repetição do indébito tributário. Antes do trânsito em julgado da condenação não há dívida certa, portanto, também não há dever de conduta por violação. Mesmo assim, o acréscimo Selic incide antes mesmo do trânsito em julgado, ou seja, desde o recolhimento indevido do tributo. Que espécie de mora é essa? E, o que dizer dos casos em que o contribuinte opta pela compensação? Nessa hipótese, após o trânsito em julgado, a disponibilidade dos créditos só depende da sua habilitação.
Além do mais, a taxa Selic permanecerá incidindo sobre os créditos, até o seu integral aproveitamento. Não há mora na repetição de indébito tributário e muito menos lucros cessantes. Bem por isso, façamos jus aos redatores do parágrafo único do artigo 167 do CTN e do parágrafo 4º do artigo 39 da Lei nº 9.250, de 1995, porque eles não cometeram essa impropriedade. Ambos os artigos se referem a juros, sem qualquer adjetivo.
Quanto ao argumento de que o acréscimo Selic se integra ao patrimônio do contribuinte como elemento novo e positivo, sem reservas ou condições. Sim, essa é uma das notas do conceito. Mas há casos em que ela está presente e não há receita, exemplos: o aporte de capital, a subvenção para investimentos. Por isso, uma segunda nota estabelece o diferencial e, conforme a jurisprudência do STF, receita é ingresso que tem origem no exercício das atividades empresariais em sentido amplo (RE 766203, RE 853463, RE 574706, AG. REG. no RE 1240737; AG. REG. no RE 816363, AG. REG. no RE nº 737937). Resta, então, verificar se a Selic sobre o indébito tem essa origem. Porém, antes devemos posicionar o tema no lugar que lhe é reservado pelo sistema jurídico.
O suporte fático da repetição de indébito não é o ilícito, no sentido anteriormente apontado, e sim a ausência de causa. Na repetição de indébito tributário, uma decisão judicial invalida a norma de exação. Desaparece a causa justificativa do pagamento. Significa dizer que o lugar do instituto é a teoria do enriquecimento sem causa. Embora de cunho civilista, a doutrina é perfeitamente aplicável ao direito tributário. Afinal, se ao particular é vedado o enriquecimento sem causa, maio ainda é esse dever para a administração tributária em um Estado de Direito. Ademais, a regulamentação da matéria no CTN e no parágrafo 4º do artigo 39 da Lei nº 9.250, de 1995, satisfazem ao princípio da reserva legal que é peculiar ao direito tributário.
A doutrina reconhece no enriquecimento sem causa e no pagamento indevido institutos dotados de autonomia. Caio Mario da Silva Pereira (em Instituições, Volume II, RJ, Forense, 2017, p. 286) adverte que não devem ser confundidos com a responsabilidade civil. Esta repara um dano sofrido pela vítima; aqueles, restabelecem um equilíbrio de patrimônios por uma justa compensação. Essa compensação, conforme Pontes de Miranda (Tratado, Volume XXVI, SP, Revista dos Tribunais, 2012, p. 321) não é apenas a restituição do que foi recebido sem causa, mas tudo o que foi obtido, inclusive os frutos estantes.
Portanto, a única conclusão lógica que se pode tirar é que, para os fins do parágrafo 4º do artigo 39 da Lei nº 9.250, de 1995, a aplicação da Selic – taxa de composição híbrida (atualização monetária e juros) – tem o objetivo de restabelecer o equilíbrio de patrimônios frente ao enriquecimento sem causa da Fazenda Pública. Logo, sua origem não é o exercício de atividades empresariais. Portanto, não se trata de receita, muito menos lucros cessantes. Trata-se de simples transferência patrimonial, não se sujeitando ao IRPJ, a CSLL, ao PIS e a Cofins.
Para concluir, é oportuno – porque também se aplica ao Poder Judiciário – lembrar a advertência feita pelo ministro Luiz Galloti, do STF, no RE 71758: “se a lei pudesse chamar de compra o que não é compra, de importação o que não é importação, de renda o que não é renda ruiria todo o sistema tributário”.
Atílio Dengo é doutor em Direito Tributário pela UFRGS, professor universitário e sócio do escritório Atílio Dengo Advogados
Fonte: Valor Econômico – Por Atílio Dengo, 27/04/2021.