No dia 23 de fevereiro deste ano, com grande repercussão e preocupação pela comunidade jurídica, houve encerramento pelo plenário virtual do Supremo Tribunal Federal do RE 1.187.264 — Tema 1048 —, com a fixação da seguinte tese: “É constitucional a inclusão do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) na base de cálculo da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB)” [1].
Como é de conhecimento, a contribuição previdenciária sobre a receita bruta (CPRB) é fruto da Medida Provisória n° 540/2011, convertida na Lei n° 12.546/2001, a qual, em substituição à tributação sobre a folha, optou por exigir tais contribuições com incidência “sobre o valor da receita bruta” (artigos 7º e 8º).
Segundo exposição de motivos, a edição de referida medida se deu, com posterior aprovação pelo Congresso Nacional, pelas seguintes razões:
“18 — Além das medidas expostas, propõe-se substituir pela receita bruta a remuneração paga aos segurados empregados, avulsos e contribuintes individuais contratados, como base de cálculo da contribuição previdenciária devida pelas empresas que atuem nos setores contemplados.
19 — Nos últimos anos, em virtude da busca pela redução do custo da mão de obra, as empresas passaram a substituir os seus funcionários empregados pela prestação de serviços realizada por empresas subcontratadas ou terceirizadas. Muitas vezes, as empresas subcontratadas são compostas por uma única pessoa, evidenciando que se trata apenas de uma máscara para afastar a relação de trabalho.
20 — Em virtude dessa nova relação contratual, os trabalhadores ficam sem os direitos sociais do trabalho (férias, 13º salário, seguro desemprego, hora extra, etc.), pois se trata de uma relação jurídica entre iguais (empresa-empresa) e não entre trabalhador e empresa. Essa prática deixa os trabalhadores sem qualquer proteção social e permite que as empresas reduzam os gastos com encargos sociais.
21 — Apesar da melhora do cenário econômico após a crise de 2008/2009, as empresas que prestam serviços de tecnologia da informação — TI e tecnologia da informação e comunicação — TIC, bem como as indústrias moveleiras, de confecções e de artefatos de couro têm enfrentado maiores dificuldades em retomar seu nível de atividade. Nesse contexto, a medida proposta favorece a recuperação do setor, bem como incentiva a implantação e a modernização de empresas com redução dos custos de produção.
22 — A importância e a urgência da medida são facilmente percebidas em razão do planejamento tributário nocivo que tem ocorrido mediante a constituição de pessoas jurídicas de fachada com o único objetivo de reduzir a carga tributária, prática que tem conduzido a uma crescente precarização das relações de trabalho; bem como, em razão do risco de estagnação na produção industrial e na prestação de serviços nos setores contemplados”.
Com isso, um dado relevante, embora se sustente ser um “benefício”, percebe-se, nitidamente, que a efetiva razão da medida se deu visando a combater a diminuição de arrecadação de contribuição previdenciária sobre a folha, dada a utilização de supostos “planejamentos tributários nocivos”. Não se nega que há informação no sentido de que referida “medida proposta favorece a recuperação do setor, bem como incentiva a implantação e a modernização de empresas com redução dos custos de produção”.
Tal sistemática de tributação sobre a receita bruta, por sua vez, era obrigatória, passando a ser facultativa tão somente em dezembro de 2015, com a alteração legislativa promovida pela Lei n° 13.161/2015.
Sem nenhuma pretensão de análise desse julgado em si e respectivas críticas — embora tenhamos inúmeras —, o que se objetiva neste breve texto é esclarecer que referido precedente vinculante do Supremo Tribunal Federal não se aplica ao denominado Funrural exigido da agroindústria, nos termos do artigo 22-A da Lei n° 8.212/91, bem como o posicionamento no sentido de que o ICMS em referida contribuição deve ser excluído da base de cálculo.
Ora, conforme voto ministro Alexandre de Moraes, haveria constitucionalidade na inclusão do ICMS na base de cálculo da CPRB, prevista na Lei n° 12.546/2011, uma vez que:
“Conforme já mencionado, a partir da alteração promovida pela Lei 13.161/2015, as empresas listadas nos artigos 7º e 8º da Lei 12.546/2011 têm a faculdade de aderir ao novo sistema, caso concluam que a sistemática da CPRB é, no seu contexto, mais benéfica do que a contribuição sobre a folha de pagamentos. Logo, não poderia a empresa aderir ao novo regime de contribuição por livre vontade e, ao mesmo tempo, querer se beneficiar de regras que não lhe sejam aplicáveis. Ora, permitir que a recorrente adira ao novo regime, abatendo do cálculo da CPRB o ICMS sobre ela incidente, ampliaria demasiadamente o benefício fiscal, pautado em amplo debate de políticas públicas tributárias”.
Em geral, como também expôs em seu voto o ministro Dias Toffoli, as razões de decidir se fixaram no fato de que: 1) seria um benefício fiscal; 2) haveria, após 2015, facultatividade ao contribuinte para optar ou não; e 3) com isso, inexistindo previsão legal para excluir o ICMS, caberia respeitar a opção do legislador, já que, sendo benefício, somente seria possível tal pretensão com respeito ao artigo 150, § 6º, da Constituição Federal.
Existem, portanto, diversas razões para realizar o distinguishing entre referido precedente vinculante do Supremo Tribunal Federal com a tributação sobre a receita das agroindústrias, segundo artigo 22-A da Lei n° 8.212/91.
A primeira justificativa decorre das razões que levaram a tributação da agroindústria sobre a “receita”, conforme Mensagem 19 do presidente da República ao PL 3.998/2001:
“4 — Para incentivar a formalização do trabalho rural, estão sendo propostas uma série de alterações, na legislação pertinente, como a extensão da forma de contribuição da empresa rural para a agroindústria, o reconhecimento do consórcio simplificado de produtores rurais e um beneficio fiscal especial para o setor, assuntos sobre o qual passamos a tratar com mais detalhes.
(…)
12 — Está sendo proposto a introdução do artigo 22-A na Lei n° 8.212. de 1991, que além de definir o que é considerado agroindústria, determina que ela passa a contribuir com 2.5% do faturamento para a seguridade social, e 0,1% para o financiamento do beneficio previsto nos arts. 57 e 58 da Lei n° 8.213, de 1991, em substituição à contribuição devida sobre a folha de pagamento”.
Ora, como houve o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da inconstitucionalidade do Funrural previsto na Lei n° 8.870/94 (ADI 1.103), buscou-se, novamente, inserir no sistema jurídico tal exação. E essa medida, como se pode notar, decorreu da necessidade de incentivar a formalização do trabalho rural.
Aliás, no que toca à nova instituição de referida contribuição, ao se analisar a justificativa do governo federal, em momento algum, se sustenta ter dado um benefício.
Portanto, não se deu como incentivo ou benefício fiscal ao setor do ponto de vista fiscal, ao contrário, transferiu-se para a receita bruta exatamente para alcançar uma maior tributação e com mais facilidade para arrecadação e fiscalização da Receita Federal, bem como viabilizar o registro em carteira de trabalhadores rurais, este o verdadeiro “incentivo” ou finalidade de natureza sem correlação com aspectos fiscais, mas previdenciários e de direito do trabalho.
Tem-se, dessa maneira, a primeira e relevante distinção, uma vez que a tributação prevista no artigo 22-A da Lei n° 8.212/91 para a agroindústria não tem natureza de um benefício fiscal.
Essa, no entanto, não seria a única diferença.
Como visto nos votos vencedores, a correlação entre a natureza de incentivo fiscal e a facultatividade, impediriam o Judiciário de excluir o ICMS, já que seria fundamental previsão legal nesse sentido. Equivale dizer: o contribuinte poderia optar ou não, devendo aceitar as “regras do jogo”.
Mais uma vez, temos uma óbvia diferença, pois, a contribuição sobre a receita bruta devida pela agroindústria, não é facultativa. Isso porque, ao se caracterizar como agroindústria, obrigatoriamente, deverá tributar e recolher segundo disposto no artigo 22-A da Lei nº 8.212/91. Não há opção, tal como na CPRB.
Sendo assim, temos aqui mais uma diferença relevante com a CPBR, à luz do julgamento do Supremo Tribunal Federal.
Embora tais justificativas já fossem suficientes para impedir a aplicação de referido precedente aos casos de Funrural da agroindústria, a base constitucional para a exigência de tais contribuições também divergem.
Em especial, o ministro Alexandre de Moraes, ao tratar da Lei n° 12.546/2011, esclarece que a base constitucional de referido tributo estaria relacionada ao disposto no artigo 195, §13, da Constituição Federal, o qual foi inserido pela Emenda Constitucional n° 43/2003, que preconiza a substituição gradual ou total da folha pela receita e/ou faturamento.
Ora, no caso do Funrural, o único fundamento de validade possível, especialmente, se há pretensão de no futuro julgar constitucional tal exação, seria o artigo 195, I, “b”, que autoriza a União instituir contribuições sobre receita ou faturamento. Equivale dizer: inexiste possibilidade de aplicação do artigo 195, §13, da Constituição Federal, uma vez que a instituição do Funrural para a agroindústria se deu pela Lei n° 10.256/2001, ao passo que referido dispositivo surgiu com a Emenda Constitucional n° 43/2003.
Sendo assim, o fundamento constitucional de validade para referida exação seria o artigo 195, I, “b”, que, coincidentemente é exatamente mesmo para outras contribuições sociais, como o caso do Programas de Integração Social (PIS) e da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins).
Bem por isso, o legislador, quando da instituição de tais contribuições para a agroindústria, inequivocamente, deve respeitar os limites constitucionais do exercício da competência tributária, sendo inconstitucional qualquer pretensão de exigir tributo sobre ingressos que não representam faturamento e/ou receita bruta.
Para encerrar, ao analisar ambos os tributos, temos de um lado a CPRB, que impõe a incidência “sobre o valor da receita bruta” (artigos 7º, 8º e 9º, da Lei n° 12.546/2011), permitido expressamente certas exclusões da base.
Em contrapartida, já o Funrural, no artigo 22-A da Lei n° 8.212/91, tem uma previsão de receita muito mais restrita no sentido do “valor da receita bruta proveniente da comercialização da produção” agroindustrial [2]. Mais do que isso, não traz uma definição de receita bruta, o leva à forçosa interpretação do texto infraconstitucional à luz do conceito constitucional de faturamento e/ou receita bruta do artigo 195, I, “b”, dada a supremacia formal e material, bem como rigidez constitucional.
Daí porque é possível concluir pela clara impossibilidade de aplicação do Tema 1048, relacionado ao julgamento do RE 1.187.264, quanto à CPRB, para o Funrural previsto no artigo 22-A da Lei n° 8.212/91, dada a evidente diferença, sendo de rigor, em respeito à coerência e ao princípio da vinculação aos precedentes, permitir a exclusão do ICMS da base de cálculo desta última, mediante aplicação do tema 69 constante do RE 574.706 do Supremo Tribunal Federal [3], tendo em vista a identidade entre tais tributos e razoes decidir dessa decisão.
[1] “Decisão: O Tribunal, por maioria, apreciando o tema 1048 da repercussão geral, negou provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do Ministro Alexandre de Moraes, Redator para o acórdão, vencidos os Ministros Marco Aurélio (Relator), Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Rosa Weber. Foi fixada a seguinte tese: “É constitucional a inclusão do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS na base de cálculo da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta – CPRB”. Plenário, Sessão Virtual de 12.2.2021 a 23.2.2021.”
[2] CALCINI, Fábio Pallaretti. Quais receitas são tributadas pelo Funrural na pessoa jurídica? Coluna Direito do Agronegócio. CONJUR. 02/06/2017. https://www.conjur.com.br/2017-jun-02/direito-agronegocio-quais-receitas-sao-tributadas-funrural-pessoa-juridica
[3] “O ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da Cofins”.
Por Fábio Pallaretti Calcini
Fábio Pallaretti Calcini é advogado tributarista, sócio do escritório Brasil Salomão e Matthes Advocacia, professor da FGV Direito-SP e Ibet, doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra e ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
Revista Consultor Jurídico, 12 de março de 2021.